Se a pandemia de Covid-19 não tivesse cancelado a maioria dos eventos previstos para 2020, no fim de semana que passou Lisboa estaria a ser palco da Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos e Tiago Pitta e Cunha, CEO da Fundação Oceano Azul seria um dos anfitriões. Quando falámos com ele, no início deste ano, este era o calendário mas o tema não se esgotava aí. Tiago Pitta e Cunha faz parte do conjunto de nomes que o SAPO24 convidou para nos ajudar a pensar na próxima década na série 20/30 — que agora retomamos depois de três meses em que as prioridades quase todas convergiram numa quase única preocupação.

E, quando se fala de mar em Portugal, podemos começar por falar do prato — ou da barriga, se preferirem. Porque, afirma Tiago Pitta e Cunha, essa é a nossa ligação mais profunda e umbilical ao mar, do bacalhau à sardinha, do robalo à dourada. Não é por acaso que Portugal é dos países com maior consumo de peixe por pessoa no mundo, comparando no mundo com países como o Japão e a Islândia. São mais de 60 quilos de peixe por português, enquanto na Europa, a média está abaixo dos 30 quilos.

Além do peixe, os portugueses gostam do mar na literatura — de Camões a Sophia de Mello Breyner, para falar de dois nomes maiores. E, na verdade, pouco mais se passa, mesmo que há 10 anos que se ande a falar a economia do mar e sempre nos terem contado uma história de um povo de marinheiros.  Mais uma vez, os números ajudam. Diz o CEO da Fundação Oceano Azul: "sabemos que em Portugal temos mais de 400 mil licenças de caça, licenças de navegação há menos de 20 mil".

O que faz com que afirme que "é um mito esta ligação de sermos um país tão marítimo. Se vamos para os países realmente marítimos da Europa, como a França Atlântica, a Holanda, os países nórdicos, Dinamarca, Suécia e Noruega, compreendemos que não somos um país mar, porque eles vivem verdadeiramente do mar ao longo do ano, nas festas, nas procissões, na cultura deles, na navegação, nos tempos livres, e nós não o fazemos". O que não tem de ser mau, acrescenta, nem forçosamente mudado — apenas devemos tomar consciência disso. "Os portugueses gostam do campo, gostam de encontrar 2 metros quadrados e plantar umas couves".

O que precisa mesmo de ser mudado é a forma como Portugal e o mundo olham para os oceanos — e essa é a grande frente de batalha da Fundação Oceano Azul. Quer pela conservação das espécies "neste momento, continuamos a comer à mesa os tigres e os leões, porque comemos os predadores dos oceanos" — quer pela preservação e recuperação das áreas marítimas da qual depende todo o equilíbrio do planeta.

Em associação com outras fundações e ONG, a Fundação Oceano Azul tem vindo a trabalhar uma ideia pouco convencional: não é o ambiente que tem de mudar, é a economia que tem de mudar. "O problema da sustentabilidade do nosso planeta é de tal magnitude que não poderá ser resolvido com todas as medidas de todas as políticas de ambiente que sejam adotadas no futuro; não serão todos os ministros do ambiente, não serão todas as fundações e as filantropias como a Fundação Oceano Azul, não serão todas as ONG juntas que vão poder resolver um problema que é  criado pela economia, pelo nosso modelo de desenvolvimento económico e que, por isso, só poderá ser solucionado pela economia".

Para isso, a proposta é que passe a doer — ou a custar, se quisermos ser politicamente mais corretos — onde geralmente mais efeitos provoca, que é no bolso. Dos Estados, das empresas, dos cidadãos em geral. Como? Invertendo um conceito do direito romano — o Res nulius, que quer dizer coisa de ninguém. "A natureza é de quem a apanhar, por isso é que quando vamos a uma floresta podemos apanhar uma flor do chão, podemos cortar uma árvores, podemos tirar um ramo de uma árvore, apanhar uma pedra e levar para casa - porque não pertence a ninguém, pertence a quem a apanhar". A proposta: "a natureza tem de entrar na análise custo-benefício que utilizamos na nossa economia ortodoxa tradicional".

Uma entrevista para ler e pensar, neste que é o Dia Mundial dos Oceanos, e para ver no episódio da série "20/30 - 20 perguntas daqui até 2030", que ficará disponível no final desta semana.

Tiago Pitta e Cunha
créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Vamos começar por uma frase que encontrei numa entrevista sua em que dizia que Portugal está ligado ao mar pela barriga, porque gostamos de comer peixe. Isto foi dito num sentido irónico e o que lhe pergunto é porquê?

Por vezes, as pessoas ficam um pouco perplexas, principalmente se não são portuguesas, quando descobrem o peso do mar na economia portuguesa. Porque é um peso relativamente baixo, ou pelo menos não é um peso tão elevado como noutros países marítimos, que identificamos como países de mar, como a Noruega, por exemplo.

O que acontece é que há alguns mitos urbanos que levaram a que nós, portugueses, tenhamos uma ideia sobre nós próprios que não é verdadeira no que respeita à nossa relação com o mar. Um dos exemplos disso também é que somos um país de pescadores, mas a maior parte da pesca que fizemos foi em mares longínquos. O mar português não é um mar rico em peixe, é um mar pobre em peixe, não temos muito peixe, temos é muita diversidade de peixes, o que é ótimo. Vamos buscar o bacalhau por alguma razão — íamos buscar o bacalhau porque queríamos encontrar a proteína que não encontrávamos aqui.

Quando olhamos para Portugal conseguimos compreender que, de facto, o mar foi altamente empolado por toda a propaganda do Estado Novo; o mar cunhava as moedas com a caravela, o mar estava nas estátuas dos heróis do mar que tínhamos nas nossas praças, o Estado Novo alicerçou muito o "orgulhosamente sós" na divulgação da gesta dos descobrimentos e isso contribuiu muito para a nossa ideia de sermos um país do mar. Há uma relação muito forte com o mar na literatura portuguesa, desde Luís de Camões, mas mesmo antes das cantigas de amor, de amigo, de escárnio e maldizer. Fala-se muito nas ondas do mar e isso vem por aí fora, com o expoente máximo mais recente que é a Sophia de Mello Breyner.

E nós gostamos muito de comer peixe, porque de facto, somos um país que consome mais de 60 quilos de peixe per capita por ano, que é brutal.

O que acontece é que há alguns mitos urbanos que levaram a que nós, portugueses, tenhamos uma ideia sobre nós próprios que não é verdadeira no que respeita à nossa relação com o mar

E isso compara com o quê, só para termos noção?

No mundo, só compara com o Japão e a Islândia, ou seja, na Europa, para ter uma ideia, a média está abaixo dos 30 quilos, e nós consumimos mais de 60.

E esse peixe todo que comemos, a maior parte não é pescado aqui. Que tipo de peixe é?

Metade desse consumo é bacalhau, somos o consumidor nº1 mundial de bacalhau. Acho que é importante compreender que, por consumirmos tanto peixe, devíamos ter uma responsabilidade muito maior sobre a sustentabilidade do pescado, porque somos muito responsáveis, diretamente responsáveis de alguma maneira, por essa diminuição do pescado e pela pressão que existe sobre os recursos.

Não acha que muitos dos consumidores, e precisamente por gostarmos tanto de peixe, têm uma noção de que o peixe é mais ou menos infinito?

Acho que sim e acho que em Portugal não nos questionamos sobre o facto de o peixe ser um recurso a prazo. Hoje em dia começamos a perceber — é tão caro o peixe selvagem, o capturado no mar, que começamos a perceber. A maior parte do peixe que comemos neste país não é capturado no mar ou oceano, nos tais mares longínquos e congelados; os peixes que comemos nas cantinas dos nossos hospitais, das nossas escolas, dos nossos lares não são o mesmo  robalo e a dourada que comemos quando vamos a um restaurante naquele fim de semana em que passeamos com a família.

Mas quando ligamos isso à questão ambiental não significa que tenhamos essa preocupação enquanto cidadãos?

Não, eu acho que não. A nossa sociedade é uma sociedade que está muito pouco sintonizada ainda com os grandes problemas da sustentabilidade e com uma auto-responsabilização. Não nos preocupamos com o lixo que produzimos, não nos preocupamos com o número de detritos que geramos. Não somos muito preocupados.

Só para tentar perceber: no nosso futuro vão dizer-nos que não podemos comer algum do peixe que estamos habituados a comer?

Seguramente que muito do peixe que estamos habituados a comer, se não se mudar drasticamente a indústria das pescas, não existirá, não vai estar cá mais. Neste momento, continuamos a comer à mesa os tigres e os leões, porque comemos os predadores dos oceanos - e isso é como se estivéssemos a comer tigres e leões. Estamos a comer peixe que leva muito tempo a crescer, a ter maturidade, levam anos, como o atum, por exemplo, a corvina, peixes que são grandes predadores e, portanto, vão desaparecer; os tubarões estão em extinção, vai ser muito difícil termos estes peixes do topo da cadeia alimentar connosco daqui a 15/20 anos no máximo, se não fizermos nada, se não mudarmos totalmente de atitude em relação à natureza, em relação à economia.

Neste momento, continuamos a comer à mesa os tigres e os leões, porque comemos os predadores dos oceanos - e isso é como se estivéssemos a comer tigres e leões

Mas também temos bons casos, estou a lembrar-me, por exemplo, do que aconteceu com a pescada ...

Vou falar um bocadinho da pescada, mas antes deixe-me só completar porque é que eu disse que não somos um país de mar. Somo-lo, como disse, na literatura, somo-lo na gastronomia, mas não somos na nossa cultura, não somos ligados ao mar, não gastamos dinheiro a comprar os barcos para ir navegar. Aliás, a Comissão Estratégica dos Oceanos, em 2004, foi a que pensou o mar pela primeira vez em Portugal, como uma política do estado. No relatório que fez  descobriu-se que Portugal teria, julgo eu, uma embarcação para 164 habitantes e nos países nórdicos há uma embarcação para 7 habitantes. Há países nórdicos em que há mais embarcações do que carros. Sabemos também que em Portugal temos mais de 400 mil licenças de caça, de pesca nem sei quantas há de pesca lúdica, mas sei que licenças de navegação, por exemplo, há menos de 20 mil. Portanto, há menos de 20 mil portugueses que têm carta de marinheiro, de patrão de costa, e isso diz tudo sobre o nosso procedimento.

descobriu-se que Portugal teria uma embarcação para 164 habitantes e nos países nórdicos há uma embarcação para 7 habitantes. Há países nórdicos em que há mais embarcações do que carros

Ou seja, estamos num país que tem quarenta vezes mais mar do que terra e estamos a dizer que há imensa gente com vontade de caçar num retângulo relativamente escasso e pouca gente com vontade de ir para o mar. Como é que isto se explica?

Porque é um mito esta ligação de sermos um país tão marítimo. Se vamos para os países realmente marítimos da Europa, como a França Atlântica, a Holanda, os países nórdicos, Dinamarca, Suécia e Noruega, compreendemos que não somos um país mar, porque eles vivem verdadeiramente do mar ao longo do ano, nas festas, nas procissões, na cultura deles, na navegação, nos tempos livres, e nós não o fazemos. Conseguimos compreender quando viajamos e vemos essas culturas, que são culturas marítimas vibrantes, que em Portugal não é o caso.

Isso é possível de ser mudado?

Não sei se tem necessariamente de ser mudado. Somos um país inerentemente rural, os portugueses gostam do campo, gostam de encontrar 2 metros quadrados e plantar umas couves; o português gosta de caçar, gosta de comer a lebre ou o coelho, é o que nós somos. É claro que o mar em Portugal era um mar difícil, um mar batido, que levava muitas vidas, ainda hoje leva e, havia uma grande dificuldade por causa disso. Mesmo hoje a navegação de recreio em Portugal não tem a mesma facilidade daqueles que navegam no Mar Báltico ou no Mar Mediterrâneo.

Há outra questão que é que nós, nesta nossa República democrática contemporânea que é o regime em que vivemos, abandonámos o mar completamente. A seguir ao 25 de Abril de 1974 houve uma grande necessidade de mudar de agulha, porque o mar era fundamental no Estado Novo, porque era aquilo que nos ligava aos territórios ultramarinos que eram parte integrante de toda uma conceção política e económica de um país. Quando deixamos de ter esses territórios ultramarinos o mar deixa de ter o seu principal papel para o país. Depois como o mar era associado ao império, como a revolução do 25 de Abril foi feita por anti-imperialistas, é claro que o mar foi com o império para a gaveta. Ainda hoje existe na sociedade portuguesa anticorpos relativamente ao mar ser algo próximo de um desígnio nacional, porque lembra um pouco o tal messianismo.

como o mar era associado ao império, como a revolução do 25 de Abril foi feita por anti-imperialistas, é claro que o mar foi com o império para a gaveta. Ainda hoje existe na sociedade portuguesa anticorpos relativamente ao mar ser algo próximo de um desígnio nacional, porque lembra um pouco o tal messianismo

Mas já recuperámos o fado, podemos recuperar o mar.

Sim, recuperámos o fado é verdade. O mar também acho que de alguma maneira já foi recuperado do ponto de vista da sua importância estratégica coletiva. O mar tem sido recuperado mais através da ciência, da investigação científica, hoje em dia falamos muito do mar a propósito da sustentabilidade.

E temos dois territórios que, pelas suas condições geográficas como é o caso da Madeira e dos Açores, são descontinuados e o mar ali faz parte da vida quotidiana. Se calhar são hoje os nossos melhores expoentes de ligação ao mar.

Acho que é muito bem observado. Nós hoje somos um país marítimo por causa dos Açores e da Madeira e são os nossos arquipélagos que, com a imensidão de zona económica exclusiva que trazem que é a área marítima sob jurisdição, que dão a Portugal a dimensão marítima. Porque senão não teríamos essa dimensão. Hoje em dia gostamos de dizer que somos um dos maiores países marítimos do mundo, o que, do ponto de vista geográfico, é verdade, ou seja, Portugal está seguramente no top 15 dos maiores países do mundo em mar, enquanto que em terra nós somos o 110º maior país das Nações Unidas.

Nós hoje somos um país marítimo por causa dos Açores e da Madeira e são os nossos arquipélagos que, com a imensidão de zona económica exclusiva que trazem que é a área marítima sob jurisdição, que dão a Portugal a dimensão marítima

Voltando à pescada, porque é que é um bom exemplo?

A pescada é um bom exemplo, porque esteve praticamente em extinção aqui ao virar do século, em 2004/2003 e, eu gosto sempre de dizer isso porque na altura trabalhava na Comissão Europeia e segui este dossier, graças à Comissão Europeia e graças à União Europeia não aconteceu. Ao contrário do que os portugueses gostam de dizer, que é por causa da União Europeia que ficámos sem pescas, não é verdade, graças à União Europeia, nessa altura, foi-nos imposto criar áreas de restrição chamadas boxes, uma ali ao lado de Sines, outra no Algarve; foi-nos imposto defesos de uma forma plurianual, o que permitiu de alguma maneira a recuperação desses stocks.

É um caso para mim paradigmático, porque demonstra como é possível recuperar um stock quando agimos racionalmente e não como com a maior parte dos stocks em que andamos lá no mar a apanharmos tudo o que conseguirmos à segunda-feira para não deixar nada para terça-feira. Mostra que há medidas de sustentabilidade e que as pescas podem ser sustentáveis. E para mim é a prova provada do mito que existe em Portugal e que os políticos portugueses gostaram muito de alimentar ao longo destas décadas de que os problemas todos da pesca em Portugal passam pela União Europeia e que deixámos de pescar quando entrámos na União Europeia.

Gosto sempre de dar o exemplo da Irlanda que é um país que até 1973, quando entrou na então Comunidade Económica Europeia, não pescava e que passou a ter uma frota de pesca que hoje é maior que a portuguesa, precisamente com as ajudas da União Europeia. Construiu a sua frota de pesca a partir de ser membro da União Europeia.

Esse exemplo da pescada já foi replicado ou está a ser replicado com outro tipo de espécies?

Não. Eu também não sei se, neste momento, confesso, não estou tão por dentro hoje em dia da fileira do pescado para saber se há algum outro stock que necessite de uma intervenção salvífica, sendo certo que temos o problema da sardinha, que todos conhecemos. Com o problema da sardinha também existe muita desinformação. Nós estávamos muito vocacionados para a sardinha, a sardinha é quase como o bacalhau, faz parte da nossa idiossincrasia nacional. Porque nós podemos estar só ligados ao mar pela barriga, mas garanto-lhe que pela barriga estamos profundamente e umbilicalmente ligados. O que seria deste país sem o bacalhau ou a sardinha, não é verdade? O pior é que a sardinha está, por muitas razões, mas não podemos deixar de dizer que a pescámos sempre muitíssimo, aparentemente em números muito menores. Bem sei que existe um estudo mais recente que diz que os juvenis estão a aparecer com um índice mais elevado, mas o que é certo é que eu falo com os meus amigos irlandeses e a Irlanda que não tinha sardinha, hoje em dia está cheia de sardinha.

Há aqui muito também de alterações climáticas, porque está mais do que provado cientificamente que as espécies estão a migrar de sul para norte e nós estamos numa zona temperada entre o Mediterrâneo e o Nordeste Atlântico e temos espécies de fronteira das duas áreas.

a sardinha é quase como o bacalhau, faz parte da nossa idiossincrasia nacional. Porque nós podemos estar só ligados ao mar pela barriga, mas garanto-lhe que pela barriga estamos profundamente e umbilicalmente ligados

No seu caso em concreto, num país em que na realidade ou na prática não é assim tanto um país mar, como é que se interessou pelo mar que é o tema a que tem dedicado toda a sua vida profissional?

Para mim foi um caso muito concreto. Eu cresci nos anos 70, costumo dizer que sou um filho do PREC. No meu tempo não havia nada em Portugal, tínhamos de racionar a eletricidade, não havia água no Verão, racionávamos a água, existia umas filas para o leite, a minha mãe mandava-me para uma fila e ao meu irmão para outro supermercado. Vivi numa altura de facto em que o país era um país muito exíguo do ponto de vista das suas possibilidades.

Na altura, até no futebol levávamos abadas de todos os outros países. Portanto, a coisa não era fácil de alguma maneira para um jovem crescer nesse país. Quando me formei, passados poucos anos, quis fazer um mestrado em Londres, numa universidade inglesa e fiz Direito do Mar. Quando estava indeciso sobre se devia fazer Direito do Mar ou não, fui visitar uma aula - podíamos visitar aulas e em função da empatia que tínhamos com o professor e a matéria lá decidíamos se nos queríamos inscrever. O professor pediu a nacionalidade dos alunos, os alunos vinham de todo o mundo, e quando soube que eu era português disse “o senhor vai ter de fazer Direito do Mar” e eu perguntei o que é que uma coisa tinha a ver com outra. Esse professor disse-me talvez uma das maiores verdades, que me acertou em cheio na cara e que mudou a minha vida a partir daquele dia: “o senhor deve fazer direito do mar porque vocês têm em Portugal a maior zona económica exclusiva da União Europeia e ninguém sabe disso em Portugal. Vocês não têm uma doutrina de Direito do Mar desenvolvida, as vossas universidades não se especializam nessas matérias, mas deviam fazê-lo”.

E eu acabei não só por fazer isso, como de alguma maneira procurar dar sempre o meu contributo para que Portugal compreendesse que tem efetivamente aqui na questão do mar e na dimensão que o mar lhe traz o principal fator para ser uma nação mais pertinente no conjunto da comunidade internacional no século XXI. Acho que o poder político aos poucos também está a compreender isso e acho que os decisores económicos ainda não compreenderam: não temos uma marinha marcante, não temos construção naval, não temos engenharia naval, não temos design industrial, não temos todos aqueles setores todos que estão ligados a um país que desenvolveu a sua economia marítima.

Nestes anos que já tem de experiência ligados ao tema do mar, o que é que mudou mais? Qual foi a maior mudança a que assistiu em Portugal e no mundo?

Eu trabalhava nas Nações Unidas, em 2002, e nessa altura o Governo de então em Portugal, que era um Governo cujo ministro era Durão Barroso, resolveu criar uma comissão estratégica para pensar a questão do mar. Eu fui chamado para coordenar essa comissão estratégica, porque trabalhava já em mar nas Nações Unidas há bastantes anos. Na altura lembro-me perfeitamente de chegar à sede da presidência do Conselho de Ministros onde a comissão ficou instalada e de ir à cantina almoçar e ouvir uns comentários de colegas — que mais tarde vim a apreciar muito — que diziam “parece que vem um maluco dos Estados Unidos para pensarmos o mar” e a gargalhada era geral. As pessoas diziam “o que é que interessa, o que é que há para pensar no mar?”. Portanto, até essa altura tínhamos uma perceção do mar física, que era o mar enquanto elemento físico.

lembro-me perfeitamente de chegar à sede da presidência do Conselho de Ministros e de ir à cantina almoçar e ouvir uns comentários de colegas que diziam “parece que vem um maluco dos Estados Unidos para pensarmos o mar”

Mas tinha havido a Expo 98 quatro anos antes, que foi a exposição dos oceanos. Isso não mudou nada?

Mesmo a Expo 98 não trouxe a Portugal qualquer consciência estratégica dos oceanos e da ligação dos oceanos ao país. A Expo foi mais daquilo que nós fizemos da nossa República democrática contemporânea em que usamos o mar como pano de fundo retórico para quando queremos aparecer lá fora, no estrangeiro, fica bonito.

O que é que nos pode distinguir mais? Se um estrangeiro quiser ser simpático consigo sobre o nosso país e não quiser falar sobre o Cristiano Ronaldo ou no fado, o que é que ele lhe pode dizer que a vai fazer sentir-se contente? Obviamente que isto é aquilo que nos distingue um pouco e que nos pode dar alguma diferença. Do ponto de vista geográfico, quer em termos de geoposicionamento quer em termos de dimensão, somos um país singular na Europa e isso, se for bem explorado do ponto de vista total, não apenas do ponto de vista da economia, mas também da imagem do país, da construção de uma imagem do país, poderá ter muito valor.

O mar passou a ser algo integral além do exótico, já é um processo gigantesco. Hoje em dia, as pessoas já falam do mar com maior seriedade, mas na economia continuamos a não conseguir tirar do mar tudo aquilo que poderíamos.

O que é que faz falta para que, do ponto de vista económico, tenhamos essa resposta, essa capacidade de reagir a um tema como o mar?

O país esteve sempre em crise económica e financeira, por um lado, não há dinheiro para investir neste país, o investimento estrangeiro foi sempre muito pouco, muito curto, os grandes grupos económicos portugueses não têm investido na economia do mar, com exceção talvez do grupo Jerónimo Martins, que hoje em dia investe em aquacultura, e que de alguma forma investiu através da Fundação Oceano Azul em sustentabilidade. Mas é o oposto do que acontece, por exemplo, na Noruega, em que a economia efetivamente investe muitíssimo no mar, na fileira do mar, dois terços da economia do mar estão ligados à pesca.

Como é que isso se traduziria? Que tipo de coisas é que estamos a falar?

Não podemos olhar para o passado, temos de olhar para o que vai ser a economia do futuro. Sabemos que este vai ser o século da sustentabilidade ambiental acima de todas as outras coisas, mais do que o século da digitalização, da inteligência artificial, tudo isso vão ser ferramentas com vista a um fim e o fim, o enorme objetivo, a enorme diria mesmo obsessão das próximas gerações vai ser a sustentabilidade ambiental e climática do planeta, sob pena de na trajetória em que estamos, anteciparmos problemas absolutamente essenciais de sobrevivência da nossa espécie no planeta.

Por isso, a economia do mar vai ter de ser virada para o desígnio da descarbonização e eu entendo que o mar tem um grande potencial, que no setor dos transportes, quer no setor da alimentação, que no setor da energia, para trazer uma economia que, comparativamente com a economia terrestre, será muito mais descarbonizadora e logo vai fazer muito mais parte da solução. Além de que a grande revolução económica que vamos assistir vai ser da bioeconomia, via biotecnologia, e isso vai ser fundamental, já está em curso, mas vai ser muito maior do que hoje em dia as pessoas têm perceção.

Gosto de dizer isto, porque as pessoas vão começar a ouvir falar muito disto no futuro, e através daí vamos conseguir fazer aquilo que vai ser talvez o salto civilizacional mais importante da nossa espécie, que será conseguir dissociar matérias-primas, que são aquelas matérias que nós necessitamos para os nossos produtos manufaturados, que é aquilo que nos dá o nosso bem-estar e a nossa riqueza, de recursos naturais. Desde a revolução agrícola, desde há 10 mil anos e desde que pusemos a primeira semente no solo que seguramente matérias-primas são sinónimos de recursos naturais, e estamos a explorar, por ano, 2,5 vezes os recursos naturais deste planeta. É por isso que o planeta está exausto, é por isso que a natureza está em desaparecimento acelerado, e é por isso que  já não consegue manter a funcionar os grandes sistemas como o oceânico, o atmosférico e todo o sistema terrestre.

É nesse sentido que a biotecnologia vai ser muito importante, porque com ela nós vamos conseguir de alguma maneira produzir os nossos recursos manufaturados com base em matérias-primas artificiais, artificialmente criadas, criadas em laboratório, criadas em fábricas e não trazidas da natureza.

Da mesma maneira que já estamos a criar carne ...

A carne é um exemplo de sintetização, mas para mim o melhor exemplo são os medicamentos. A indústria farmacêutica é hoje  uma indústria que podemos dizer ser 90% sintética, produzida em laboratório. Já não vamos matar o tubarão para extrair a glucosamina e condroitina que continuamos a precisar para as nossas articulações, quando elas estão inflamadas. Os medicamentos foram sintetizados no século XX.

E agora vamos progredir provavelmente para tudo o resto, nomeadamente para aquilo que consumimos.

Vamos fazer para muito mais sem dúvida, vamos ficar surpreendidos com aquilo que vamos conseguir fazer.

Retomando a pergunta de há pouco, o que é que acha que foi a principal mudança na forma como se olha para o tema do mar?

Nestes últimos 10 anos o mar entrou muito mais na agenda internacional, na agenda europeia muito por culpa de Portugal que foi quem levou para Bruxelas e para a Comissão Europeia a ideia de que a Europa também devia ter uma política marítima integrada. Vem tudo na sequência dessa comissão estratégica dos oceanos que começou a pensar o mar como uma política e não apenas como um ente biofísico, que é aquela realidade azul que está ali em frente dos nossos olhos.

Na Europa desenharam-se uma série de programa de apoio a uma política marítima integrada e  hoje em dia existem na política de desenvolvimento regional, na política da ciência e tecnologia e inovação vertentes de mar muito grandes, muito importantes.

O exemplo máximo é que o mar hoje em dia é uma das cinco grandes prioridades da União Europeia na área da inovação. Era impensável se não fosse o trabalho de Portugal durante 10 anos na Comissão Europeia e junto do Parlamento Europeu também.

Nas Nações Unidas, o mar foi sempre o parente pobre dos grandes assuntos da sustentabilidade. Quando comecei a trabalhar nas Nações Unidas em 1995 e, na altura, as florestas eram a grande coqueluche, porque tínhamos acabado de libertar tecnologia militar de satélites para a sociedade civil que permitiu verificar a desflorestação que estava a acontecer em países que a negavam. Tornou-se evidente através das fotografias de satélite e as florestas eram cantadas pelo Sting e pelo Bono e havia toda uma opinião pública virada para aí.

Infelizmente, os problemas das florestas ainda não estão resolvidos, estão longe de estar ultrapassados, cada vez temos menos florestas no planeta, com isso pondo em causa a produção de oxigénio. E tínhamos as alterações climáticas que se começaram a tornar um problema científico. Até 1998 as alterações climáticas eram um problema para os cientistas e foi também a União Europeia que teve a visão de as trazer de um problema científico para um problema político. Hoje em dia as alterações climáticas são um problema económico e um problema político, como todos sabemos, e o mar ainda não está aí, mas evoluiu muitíssimo, nomeadamente, com a primeira Conferência das Nações Unidas em 2017 para os oceanos, onde a questão dos plásticos veio muito à superfície.

O mar está a tornar-se um tema central na agenda internacional pelas piores razões, porque, nos últimos 3 anos, a sineta de alarme que tocou, nós compreendemos pelos nossos olhos e através dos media que os impactos das alterações climáticas e ambientais no mar chegaram mais cedo e mais fortes do que os próprios cientistas tinha previsto, e isso é extremamente perturbante.

Quando comecei a trabalhar nas Nações Unidas em 1995 e, na altura, as florestas eram a grande coqueluche, porque tínhamos acabado de libertar tecnologia militar de satélites para a sociedade civil que permitiu verificar a desflorestação que estava a acontecer em países que a negavam

Como é que o mar entra na agenda da ONU efetivamente, nomeadamente com a primeira conferência em 2017, e como é que Portugal se tornou anfitrião da Conferência dos Oceanos [que deveria ter lugar em Lisboa precisamente nesta semana de junho e que foi cancelada devido à pandemia]?

É bom dizer estas coisas, porque os portugueses devem ter orgulho no país que têm.

Em termos da diplomacia, Portugal tem tido uma grande liderança na questão dos oceanos nas Nações Unidas, e tem-na seguramente desde os anos 90, desde que, em 1993, fez a proposta de que a Expo 98 fosse a exposição sobre os oceanos e o futuro e que 1998 fosse consagrado como o ano internacional dos oceanos.

Foi preciso muita diplomacia na Assembleia Geral das Nações Unidas para que os outros países aceitassem isso. Isso levou a que, de alguma maneira, os oceanos começassem a ganhar o seu espaço e culmina em 2014 com a seleção dos oceanos para um dos grandes objetivos fundamentais do desenvolvimento sustentável proclamados pelas Nações Unidas, dentro dos 17 grandes objetivos para 2030, como o combate à pobreza, discriminação, direitos humanos, alterações climáticas, recursos hídricos, alimentação, combate à fome.

Em termos da diplomacia, Portugal tem tido uma grande liderança na questão dos oceanos nas Nações Unidas, e tem-na seguramente desde os anos 90

Hoje parece-nos quase estranho como é que só em 2014 os oceanos eram um objetivo, ou seja, antes disso não era um tema dessa ordem na agenda?

Muitas pessoas achavam que não valia a pena, porque os oceanos entravam na natureza em geral, não era claro e houve países que se opunham.

Tiago Pitta e Cunha
créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Como é daí se chega à conferência marcada para 2020 em Lisboa?

Primeiro houve a proclamação do objetivo fundamental, depois houve uma conferência para pensar como é que se pode implementar o objetivo, em 2017, e foi uma conferência muito importante porque pôs os plásticos no radar e que também mostrou o que aconteceu com os corais devido à subida da temperatura das águas criada pelo aquecimento global.

Há algo que é muito importante as pessoas compreenderem: 90% do calor que é gerado pelo aquecimento global tem sido absorvido pelos oceanos e se esse calor não tivesse sido absorvido já não teríamos viabilidade na atmosfera. Isto para ter uma ideia da magnitude do problema.

Os oceanos, de forma leiga, andam-nos a salvar a pele.

Os oceanos andam a salvar-nos a pele há 200 anos, mas hoje em dia começam a já não conseguir salvar-se a eles próprios. A subida da temperatura tem vindo a matar os corais, os recifes de coral que são fundamentais porque geram cerca de 30% de toda a biodiversidade do oceano. E o oceano não é outra coisa que não um fenómeno bioquímico; se não houver a parte bio, a parte química, que ela própria também está a ser adulterada, porque sabemos que já acidificámos os oceanos (o pH do oceano já é mais ácido do que deveria ser) e que, por isso, começamos a ter dificuldade em ter ostras, bivalves, animais que necessitam de formações calcárias para sobreviver. Entre a temperatura e a acidificação é o próprio sistema no seu núcleo que começa a ser posto em causa e que eventualmente poderá vir a falir.

A Conferência das Nações Unidas disse-nos “atenção, vamos perder os corais, não chegaremos ao fim do século com corais”, porque mesmo que travássemos a fundo, neste momento, não vamos conseguir refrescar as águas do mar nas próximas décadas, vai levar muito tempo para conseguir inverter este processo, logo, os corais provavelmente não terão já salvação e sem eles desaparecem todas aquelas espécies que gravitam em torno dos corais - o que é altamente problemático.

Como é que surge a proposta para trazer uma segunda conferência, que não estava nos planos, para Portugal, em 2020?

Portugal, que tem assumido esta posição de líder internacional nas Nações Unidas nas questões dos oceanos e candidatou-se a voltar a fazer uma segunda conferência para podermos analisar de que forma os objetivos que foram estabelecidos estão a ser cumpridos.

Portugal propôs ser o anfitrião, depois o Quénia juntou-se a Portugal, é uma aliança extremamente feliz, porque o Quénia também é considerado um país líder em África no que toca às questões do oceano.

Qual vai ser o papel da Fundação Oceano Azul quer nesta conferência, quer desde que foi fundada há 3 anos?

Sabemos que a partir relatório do painel intergovernamental dos cientistas da Convenção Quadro das Alterações Climáticas, que é um relatório chamado “1.5ºC” de 2018, que veio dizer que esta década é decisiva. Nós não somos um estado membro, somos parte da sociedade civil, aquilo que podemos fazer é procurar mobilizar a sociedade civil para pressionar a comunidade internacional dos estados. Por exemplo, que definam que para 2030 devemos ter 30% do mar em áreas marinhas protegidas, áreas onde não haja extração.

Qual é a percentagem atual?

Neste momento, com muito boa vontade, podemos falar de 7/8%.

 E como é que vão fazer essa pressão?

Muitas das áreas marinhas protegidas que fazem estes 7/8% são protegidas “de papel”, porque na verdade não são depois implementadas, não são fiscalizadas, não são motorizadas e, portanto, acabam por não existir na realidade.

O que nós fizemos, a Fundação Oceano Azul, foi reunir as principais fundações mundiais que estão preocupadas com a sustentabilidade do planeta, as principais ONG de conservação da natureza, e juntá-las para criarmos uma lista de ações que entendemos que são fundamentais para os próximos 10 anos. Chamamos a isto uma blue call to action, porque é uma chamada azul para agir e seguramente que iremos apresentar ao secretário-geral das Nações Unidas e à comunidade internacional dos estados. Temos medidas que são muito importantes, nomeadamente, de descontinuação de exploração dos recursos fósseis, dos combustíveis fósseis, do aumento das áreas marinhas protegidas, da limitação dos mares territoriais para as pescas de pequena escala, para a pequena pesca, para a pesca artesanal e não para a pesca industrial.

Tiago Pitta e Cunha
créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Depois da COP 25, estão mais ou menos entusiasmados com as vossas possibilidades de poder levar esta agenda para a frente?

Eu estou muito pouco entusiasmado com as possibilidades que os estados-membros das Nações Unidas nos têm trazido, porque não têm estado à altura da situação. Vimos isso em Madrid, na COP do Clima, na COP 25 e, portanto, não tenho grandes ilusões que vá ser na Conferência dos Oceanos em Lisboa que se vão resolver os problemas todos dos oceanos.

É por isso mesmo que a Fundação Oceano Azul entendeu que era fundamental criar esta plataforma de organizações da sociedade civil internacional e que são organizações muito relevantes - estamos a falar de fundações que são os principais doadores dos fundos que são utilizados na sustentabilidade pelas ONG, por exemplo. Achamos que temos de elevar a fasquia, até para que as pessoas possam comparar aquilo que é necessário fazer-se com aquilo que é possível em termos de real politik.

Eu estou muito pouco entusiasmado com as possibilidades que os estados-membros das Nações Unidas nos têm trazido, porque não têm estado à altura da situação.

Ficou de me responder sobre aquilo que tem sido a missão da Fundação Oceano Azul ...

A Fundação Oceano Azul tem uma ideia motriz: o problema da sustentabilidade do nosso planeta é de tal magnitude que não poderá ser resolvido com todas as medidas de todas as políticas de ambiente que sejam adotadas no futuro; não serão todos os ministros do ambiente, não serão todas as fundações e as filantropias como a Fundação Oceano Azul, não serão todas as ONG juntas que vão poder resolver um problemas que é  criado pela economia, pelo nosso modelo de desenvolvimento económico e que, por isso, só poderá ser solucionado pela economia. Terá de haver uma mudança profunda na economia que permitirá a nós voltar a encontrar um certo equilíbrio planetário.

Para isso, é fundamental que a natureza passe a ser sinónimo de economia, é fundamental que a natureza seja a economia do futuro, é fundamental que a natureza seja vista como um capital, porque o é e hoje é de tal forma escassa que se tornou o nosso recurso natural por excelência, a nossa riqueza, o nosso tesouro. Mas nós não a tratamos como tal, continuamos através dos nossos institutos civilizacionais, como o Direito, a Economia, a Ética, a própria Religião, a não compreender o valor da natureza para nós. E como esses institutos não traduzem esse valor da natureza, a natureza continua a não ter valor e  continua a ser delapidada, continua a não ter valor económico, continua a não ter valor jurídico, a natureza é uma coisa, a natureza nos sistemas jurídicos atuais tem o mesmo valor que tinha no sistema do direito romano, em que os romanos diziam que a natureza é um res nulius.

Não compreendemos que tivemos uma evolução enquanto humanidade que foi importantíssima para o nosso desenvolvimento socio-económico e cultural, mas que foi gravíssima para o equilíbrio do planeta.

Terá de haver uma mudança profunda na economia que permitirá a nós voltar a encontrar um certo equilíbrio planetário.

O que é um res nulius?

Res nulius quer dizer coisa de ninguém. A natureza é de quem a apanhar, por isso é que quando vamos a uma floresta podemos apanhar uma flor do chão, podemos cortar uma árvores, podemos tirar um ramo de uma árvore, apanhar uma pedra e levar para casa - porque não pertence a ninguém, pertence a quem a apanhar.

 E como é que a fundação vai executar essa ideia?

A fundação tem feito reuniões think tank para trazer os melhores economistas que pensam o capital natural, que pensam a monetização, de alguma maneira, da natureza, sendo que ela nunca poderá ser absoluta. Não podemos monetizar, por exemplo, a produção do oxigénio que a natureza gera, porque é tão fundamental para a nossa vida que sem ele não vivemos, portanto, é um valor absoluto. Mas podemos monetizar, por exemplo, a produção de biomassa que gera os recursos e os stocks de pesqueiros e que são gerados pela natureza.

Ou seja, a natureza tem de passar, e os serviços que a natureza produz que são fundamentais, os chamados serviços ecossistémicos, têm de entrar na análise custo-benefício que utilizamos na nossa economia ortodoxa tradicional.

E que vai governar esse sistema?

Há hoje em dia já economistas e financeiros que estão a trabalhar em tornar bancável, financiável o capital natural, nomeadamente criando, por exemplo, obrigações financeiras, chamadas blue bonds, obrigações azuis, que estão indexadas em termos de um rendimento à biomassa que é gerada por uma área marinha protegida cujas licenças de pesca nas zonas limite são atribuídas apenas a quem pagar uma determinada licença que, por sua vez, vai remunerar o rendimento da obrigação.

Vai remunerar quem?

Vai remunerar o rendimento da obrigação, logo, os obrigacionistas, quem contraiu a obrigação, portanto, a nós quando formos nós os subscritores dessa obrigação. Ou seja, a natureza torna-se um ativo e neste caso a proteção da natureza torna-se um negócio, é esta a evolução que nós seguramente iremos chegar mais à frente neste século.

Mas esses fundos serão aplicados de que maneira e geridos por quem?

Neste momento existe apenas uma obrigação azul, chamada blue bond, que foi criada por uma ONG que é The Nature Conservecy, pela Seicheles que é um país com muita pesca, um arquipélago no Oceano Índico, e pelo Banco Mundial. Estas três entidades o que fizeram foi: as Seicheles resolveram dedicar 20% da sua zona económica exclusiva, portanto, de todo o mar sob sua jurisdição, a áreas marinhas protegidas sem pesca; 20% do mar da Seicheles é muito mar; o Banco Mundial aceitou de alguma maneira construir uma obrigação financeira que remunera, cujo subscritor é o próprio país, a Seicheles que portanto significou, na verdade, uma troca com a dívida externa que as Seicheles tinham. Foi perdoada às Seicheles uma percentagem da sua dívida externa em troco de uma obrigação.

No fundo o que está a dizer é que, em termos concetuais, em termos quase filosóficos a ideia é deixarmos de achar que a natureza é grátis e passar a achar que tem um valor e, portanto, tem um custo e eventualmente terá que ser pago de alguma maneira. Podem ser as obrigações, mas deduzo que possam ser outras coisas.

Há muitos instrumentos, isto é apenas um instrumento para as fazer bancáveis. Nós temos é de pensar muito nesta história da análise custo-benefício. Quando temos de fazer um negócio, não fazemos o negócio se ele der prejuízo, vamos fazer uma análise económica. Se eu quiser vender castanhas na rua, para dar um exemplo completamente prosaico, tenho de saber quanto é que me custam as castanhas, a mim fornecedor, quanto é que me custa a mão-de-obra para abrir as castanhas e para as vender e a quanto é que vou vendê-las. Mas não sou responsável obviamente pelo dióxido de carbono que emito com o assador das castanhas, não é um custo meu, é um custo para a natureza, também não sei até que ponto há um custo na natureza com a plantação de castanheiros necessários para poder ter uma indústria de venda de castanhas. Ou seja, nós não interiorizamos os custos externos da nossa atividade económica, não os medimos sequer, não os consideramos e é isso que tem de passar a ser feito. E se passar a ser feito nas contas das empresas, nas contas dos países, poderá mudar drasticamente a relação que temos com a natureza, porque muito poucas pessoas se preocupam verdadeiramente com a natureza, mas todas as pessoas se preocupam com a economia.

Costumo sempre dizer que a economia e o ambiente são um desafio em que no fim ganha sempre a economia e o ambiente perde sempre. Por isso é que a única maneira de o ambiente não perder é no futuro é ser ele próprio a economia

Estamos numa época em que teremos que tomar partido ou teremos que encontrar um equilíbrio entre duas três forças que são aparentemente opostas?

Esta oposição está a tornar-se muito presente na nossa sociedade e julgo que infelizmente poderá vir a trazer ainda muita instabilidade social aos países. Do ponto de vista de uma geração mais nova começa a haver uma preocupação, consciencialização, porque têm mais anos à frente: saber o que acontecer daqui a 80 anos para eles ainda é válido, daqui a 50 anos vai ser mais do que válido e, portanto, há uma predisposição para olhar para a natureza e para o planeta de uma maneira muito diferente, muito mais conservadora no bom sentido, de preservação desse planeta. Ao  mesmo tempo há também o reconhecimento de que os “adultos”, aqueles que decidem, têm vindo a procrastinar, porque temos vindo a procrastinar a solução dos problemas sem dúvida nenhuma, e vai gerar tensões maiores das que já existem hoje em que os jovens já se manifestam nas ruas contra as alterações climáticas.

Por outro lado, a economia e o ambiente viveram sempre em oposição, mais ainda a partir da revolução industrial. Costumo sempre dizer que a economia e o ambiente são um desafio em que no fim ganha sempre a economia e o ambiente perde sempre. Por isso é que a única maneira de o ambiente não perder é no futuro é ser ele próprio a economia.

O que acontece hoje é que não existe apenas menor oferta da natureza, mas a que existe é tão escassa que é verdadeiramente preciosa, é mais preciosa que ouro, diamantes, que são os metais preciosos, e é isso que nós ainda não conseguimos compreender, porque evoluímos ao longo de dezenas de milhares de anos a ver na natureza primeiro  como um inimigo que nos caçava, depois  uma realidade que temos de combater para vencer e que depois domesticamos, colonizamos e reduzimos à expressão que tem hoje.

É uma verdadeira revolução cultural que necessitamos para desenvolver essa nova relação com a natureza. Temos de compreender que há 60 mil anos havia menos de um milhão de homens no planeta Terra e a natureza era imensa, nada do que fizéssemos parecia poder afetar a natureza, muito menos os grandes sistemas planetários naturais; o que acontece é que nós hoje somos a principal componente da natureza, para lhe dar uma ideia, a biomassa dos seres humanos é praticamente 40% da biomassa de todos os mamíferos na Terra.

Para podermos domesticar e colonizar a natureza tivemos de criar narrativas para nós próprios do pouco valor da natureza, da natureza não ter valor, porque só assim é que podemos pescar os peixes, matar os animas, faz parte dos nossos quadros mentais para isso se tornar aceitável eticamente. Mesmo nas grandes religiões, obviamente que a harmonia com a natureza é importante, mas aquilo que é fundamental de facto é uma forma de vida da espécie humana, tudo o resto “é paisagem”.