Rui está ao lado do pai, que tem 90 anos, mas é ele o velho da fotografia: "Parecia saído de Auschwitz, estava cadavérico, falido física e psicologicamente", recorda. Foi há seis anos, nas vésperas de entrar para a Farol - Associação para o Tratamento de Toxicodependências, onde recuperou quase tudo o que perdeu.

O ponto de ignição foi aos 18 anos, depois de terminar o 12.º ano. "Até aos 18 anos fui bastante normal: não consumia álcool, não fumava e tinha médias bastante elevadas. Queria entrar para a universidade e, para não me chamarem para a tropa aos 21 anos, o que me obrigava a interromper os estudos, aos 17 - fazia 18 em setembro - ofereci-me para a tropa. Hoje consigo reconhecer aí alguma coisa, porque em vez de ir para a tropa normal, quis ir para os páraquedistas. Queria adrenalina".

Hoje, passados 30 anos, identifica o "click", como lhe chama. Foi lá que começou a fumar, não só tabaco, e que começou a beber, nas idas para o Entroncamento e para Tancos. Tudo para aguentar a pressão. "Foram dois anos de tropa intensos, de muitos consumos", recorda.

Depois da tropa veio a faculdade e, a seguir, a auditoria. "Penso que até aos 27 anos andei nos chamados consumos sociais, cigarros, um charro de vez em quando e álcool em ocasiões especiais". Rui casou e foi pai (da primeira aos 29, da segunda aos 31). "Os dez anos entre os 34 e os 44 foram caóticos, e os últimos quatro, então, avassaladores, com consumos brutais, horas a fio", conta.

Ainda assim, era funcional. Pelo menos, era o que pensava. Até lhe "cair a ficha" e perceber que não controlava nada. "Percebi que tinha um problema e resolvi pôr as cartas na mesa, ir à minha chefia e explicar que teria de me ausentar. A resposta foi esta: "Eh pá, aqui já toda a gente percebeu isso, só você é que não. Mas é o quê: jogo, álcool, drogas?". Na última fase já me tinham confinado a um canto e estavam delicadamente a retirar-me trabalho. E eu pensava: que raio, eu é que sou diretor desta área, porque é que isto vai para outro? Ficava muito zangado".

Quando se expôs ao seu administrador, decidido a procurar ajuda, teve todas as benesses. "Quanto é que vale o internamento", quis saber o administrador. "Cinco ou seis mil euros? Está aqui o dinheiro, pode utilizar". "Na altura estava na área de compras", diz Rui, "hoje estou nos recursos humanos e contabilidade, deram-me esse presente. E faço com os outros o que fizeram comigo", garante.

"Fui altamente ajudado. Para ver, a certa altura a Dra. Assunção perguntou-me se queria fazer alguma terapia, familiar ou profissional. Respondi que, a querer, seria com o meu administrador, mas teria de lhe perguntar, já que era um homem extremamente atarefado. Liguei-lhe e foi giríssimo: "Olá, como está?" "Olá, como está isso a correr?" "Está tudo bem, obrigado. Queria saber se estaria disponível, porque é prática da instituição, para me ajudar na terapia com a entidade patronal". Nem tinha acabado, diz ele: "Desculpe lá que eu hoje não posso, mas se fosse amanhã...". Lá expliquei que só estava a telefonar para saber se me autorizava a dar o número do seu telemóvel à diretora clínica. E hoje, é engraçado, não falamos no assunto, mas quando está comigo pergunta: "Então e aquele tema, está tudo bem?" [ri] É a maneira de fazer o follow-up".

Rui esteve "engavetado" 98 dias na Farol. "Foram 14 semanas, contei dia após dia, três meses e meio. Tinha perdido tudo, destrui um casamento, como era de esperar, ausentava-me permanentemente para os meus consumos. Tenho duas filhas do primeiro casamento, por isso não sofreram a minha adição presencialmente, sofreram com promessas falhadas: 'O pai vai ter consigo', 'o pai vai buscá-la'. Mentira, não ia nada, porque ficava num estado miserável e não podia. Ainda hoje pago a fatura, porque elas eram muito pequeninas, agora têm 20 e 18 anos, uma está a fechar Antropologia, a outra quer entrar para Sociologia".

No dia 1 de Abril, quando entrou na Farol, Rui "estava num processo de destruição" e "já nem era muito funcional", apesar do cargo de responsabilidade que ocupava numa instituição financeira. "Costumo dizer que aquela torre - a torre que fica por cima do refeitório, onde estão os conselheiros e o corpo clínico da Farol - é onde estão os salva-vidas, a guarda costeira".

Nos últimos 25 anos a Farol recebeu 2500 pessoas, uma média de 100 por ano. Rui foi uma delas. Agora, sem admissões e sem fundos, a IPSS teme pelo seu futuro, pelo futuro de muitos pacientes e de comunidades inteiras.

"O confinamento já é difícil por si só, agora imagine com graus de ansiedade elevados e perturbações associadas."

Assunção Cruz, diretora técnica, está no projecto desde a sua fundação, em 1991, e nunca se viu tão abandonada: "O meu receio é que fiquemos sozinhos, cada comunidade para seu sítio". E há cerca de 50 destas comunidades, de acordo com dados disponibilizados pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências [SICAD].

"Percebo que a situação é dramática e não se pode fazer tudo contemporaneamente, mas acredito que se devia começar a falar nisto, pelo menos para perceber que há medidas a ser tomadas para não nos deixar tão desamparados", justifica Assunção Cruz.

O problema é que a pandemia limitou muito as novas admissões a tratamento. "No princípio a situação era até um pouco confusa, mas atualmente é clara relativamente às novas diretrizes: para receber um doente temos de ter um quarto individual com casa de banho privada e o utente tem de ficar em isolamento 14 dias. O confinamento já é difícil por si só, agora imagine com graus de ansiedade elevados e perturbações associadas. Tenho a experiência de outras comunidades, e penso que não vai resultar", confessa a diretora técnica, na instituição há 28 anos.

Nem todos os doentes se encontram na mesma situação, que depende do tipo e grau de consumos. No caso dos alcoólicos ou dos consumidores de heroína ou pacientes com outras perturbações associadas é fundamental passar por um processo de desabituação física em unidades especializadas. Que, neste momento, quase não há.

Para Assunção Cruz a solução poderia passar por "haver mais estruturas de desabituação física, só que essas unidades fecharam e, nesta altura, só está uma a funcionar. Fica em Olhão e não consegue de maneira nenhuma responder a todos os casos que estavam em lista de espera. Mesmo as equipas terapêuticas estão muitíssimo reduzidas em termos de atendimento, que é só para situações urgentes", adianta.

"Este facto coloca-nos sérias questões: como vai ser em termos sociais?", pergunta. "Trata-se de pessoas com uma problemática muito particular e que vão estar cá fora. Para continuarem a consumir, só com estratagemas que usavam no passado, já para não falar em termos de saúde pública - e não falo especificamente no COVID-19, mas são pessoas profundamente fragilizadas em termos clínicos, com patologias associadas e que precisam de uma supervisão constante. Em termos gerais, isso vai afetar profundamente a nossa comunidade e todas as comunidades", assegura.

Uma questão de saúde pública

Dentro destas comunidades terapêuticas há diferentes tipos de tratamento. No caso da Farol, e embora outras comunidades estejam, segundo Assunção Cruz, a passar sensivelmente pelos mesmos problemas, a associação adotou o modelo Minnesota, que recorre à filosofia dos 12 passos [utilizada pelos alcoólicos anónimos], "mas que cada comunidade vai adaptando, porque cada equipa terapêutica tem a sua maneira de funcionar", explica. "Essencialmente, há uma componente forte de terapia de grupo, de terapias individuais e uma série de terapias complementares", da arte ao ioga, passando pela ginástica.

créditos: LUÍS NOBRE GUEDES | FAROL

A associação "tem passado por diferentes tipos de dificuldade, porque sempre vivemos sobretudo de donativos dos sócios e de alguns eventos que íamos realizando. A Farol surgiu porque os pais de toxicodependentes que precisaram destes serviços se interessaram e fundaram a associação. Algumas dessas pessoas foram ficando velhas ou morreram, e deixou de haver um empenho social em ajudar alcoólicos e toxicodependentes, as pessoas fartaram-se do problema e começaram a voltar-se para outras causas, o que é aceitável. Isso deixou-nos num espaço difícil. Sendo uma instituição sem fins lucrativos, as coisas sempre foram delicadas em termos orçamentais, mas sempre nos conseguimos equilibrar", afirma a diretora técnica do projeto.

Hoje, a Farol tem 27 camas nas duas fases de tratamento, das quais 21 são camas convencionadas com o SICAD e pelas quais recebe à volta de 990 euros por paciente. As restantes camas estão disponíveis para quem tem dinheiro para pagar os tratamentos do seu bolso, consoante o IRS. Assunção Cruz não tem o pelouro dos números, mas adianta que, por questões orçamentais da ARS [Administração Regional de Saúde], o valor que recebem "foi sempre dificilmente atualizado, mas sempre tentámos sobreviver. Antes disto, até tínhamos uma lista de espera e as coisas estavam a correr razoavelmente dentro deste contexto".

Agora as coisas mudaram. "Há uma tutela que tenta, dentro do possível, ir-nos ajudando, mas dou-lhe um exemplo: uma das últimas diretrizes era igual para nós e para os serviços prisionais. Ora, isto são duas realidades que não têm a ver. Foi num período particular, em que toda a gente entrou um pouco em pânico, e depois acabaram por fazer normas mais específicas para nós. Mas, de alguma forma, acabam por ser sempre um tanto generalistas. Como é possível, por exemplo, internar doentes numa situação como a que é sugerida [isolamento]? Não é possível", garante.

Nesta altura, só podem entrar na instituição os colaboradores e por turnos. A equipa terapêutica tem seis pessoas e os três monitores funcionam alternadamente. O ioga, a arte e a biodanza foram suspensos, embora tenha sido possível manter a ginástica. As saídas foram limitadas ao máximo, "mas temos aqui pacientes na segunda fase de tratamento, o que significa que faziam voluntariado de manhã e iam a casa aos fins de semana. Neste momento, estão confinados. As coisas não têm corrido mal, mas para os que estão aqui há pouco tempo todos os pretextos servem para abandonar o tratamento", explica. Ainda assim, criou-se um nicho de utentes com entre três e quatro semanas. Para esses, o risco agora somos nós, que entramos aqui. Tomamos todas as medidas necessárias, mas também me assusta não saber o que vai acontecer, porque vejo o que se passa nos lares. E se entrarmos todos em quarentena, como vai ser?".

E conta um episódio recente. "Mesmo com todos os cuidados, há dias uma pessoa daqui magoou-se e tivemos de ir com ela a um consultório. Fizemo-lo com a máxima proteção possível, fomos nós que a fomos levar e buscar, mas levar um doente destes para um hospital, como fazíamos tão regularmente, porque é uma necessidade normal ir à urgência médica, é hoje uma grande insegurança". "Por outro lado", continua, "há dois utentes a trabalhar e, como os serviços não param, têm mesmo de continuar a sair".

Por enquanto não faltou material de proteção individual, mas "acho sempre que o material nunca é suficiente. Contactámos a Câmara Municipal de Sintra, que disponibilizou o que podia de máscaras e luvas, que é pouco, mas é o que têm para distribuir por todos na região. O álcool acabou-se nas farmácias, mas temos outros produtos desinfetantes. O resto temos sido nós a arranjar e temos inclusivamente uma sala para o caso de aparecer um caso positivo que obrigue a pessoa a ficar em isolamento. Mas não aguentamos muito mais tempo nesta situação", desabafa.

"Percebo que haja da parte da tutela um esforço no sentido de nos ir acompanhando, mas o desejo é que estivessem mais presentes. Não sei dizer como, porque temos vivido sempre um pouco assim. Tenho tido algumas questões pontuais e tenho resposta imediata. As pessoas do lado de lá, se assim se pode dizer, também estão preocupadíssimas e a querer responder aos problemas de cada um, mas não têm capacidade para fazer mais. Este é um problema que se arrastou e que agora agravou", diz a responsável.

"Estou muito preocupada com a repercussão de não haver admissões, não só pela sobrevivência da Farol (e de outras instituições semelhantes), mas pelo que vai acontecer com estas pessoas lá fora. Todos temos os nossos exemplos: tenho em frente a minha casa um supermercado onde se formam bichas enormes. Vejo diariamente pessoas com o perfil que conheço, não digo que sejam todos toxicodependentes, mas conseguimos identificá-los, que estão a tentar intimidar quem está na fila. Está-se a criar uma bomba social", afirma Assunção Cruz.

Esta é uma questão de saúde pública, diz a responsável da instituição, que recebe maioritariamente pacientes enviados por equipas terapêuticas, os antigos Centros de Acolhimento a Toxicodependentes [CAT].

Foi assim, aliás, que Bruno chegou à Farol. Assim, e "completamente perdido", conta. "Estive noutra clínica duas vezes e, depois de ter saído a segunda vez e ter recaído passado muito pouco tempo, os meus pais - os meus filhos e a minha ex-mulher já me tinham posto fora - recorreram novamente à ajuda da psiquiatra dessa clínica, que me disse: ou vais para a Farol, ou desresponsabilizo-me de todo e qualquer acompanhamento". Foi.

"Tinha tentado muitas outras coisas, ajuda pela medicina, pela psicologia e até pelo paranormal. Mas nunca olhei para o problema em si. O confronto com a doença foi uma coisa terrível"

Bruno é técnico de saúde e também pertence à fornada de 2014: saiu no dia 26 de março, fez agora seis anos. "A Farol foi o centro de tratamento que conseguiu que eu encontrasse um caminho para a minha vida", diz sem hesitar. "Não queria olhar para o abuso constante de substâncias como um problema e achava que o que estava mal era tudo o que estava à minha volta e era isso que me levava a consumir. O que fiz lá foi exatamente desconstruir isso e olhar para o problema base".

A adição acompanhou Bruno desde a adolescência. Lembra-se do dia em que bebeu álcool pela primeira vez, numa véspera de Natal, tinha 14 anos. Não parou até que tudo só funcionava se incluísse consumos e a vida começou a correr tremendamente mal.

Mas não percebeu o que estava a acontecer, apesar de todos os alertas. "No início, penso que bebia para me desinibir. Como criança que era, com baixa autoestima, o álcool era libertador. Mais tarde apareceram outras substâncias que produziam um efeito muito semelhante e que me alheavam da realidade".

Bruno nunca foi de consumos moderados, era o "oito ou o oitenta". Enquanto predominou a fase do oito, construiu uma vida, mas quando o oitenta tomou conta de si, destruiu tudo o que tinha conseguido até então. "O final do meu alcoolismo dá-se à porta do centro de tratamento Farol, depois de dois internamentos que me ajudaram a manter abstinente durante algum tempo, mas que acabaram por não me dar ferramentas para uma mudança consistente na minha vida", diz. "Já não tinha nenhum caminho a seguir, aquela era a linha final. Tinha tentado muitas outras coisas, ajuda pela medicina, pela psicologia e até pelo paranormal. Mas nunca olhei para o problema em si. O confronto com a doença foi uma coisa terrível".

Mas o tratamento "mudou tudo, muito mais do que eu alguma vez poderia esperar". Bruno saiu do centro de tratamento com a vida "esfrangalhada", só não perdeu o emprego, diz, por ser funcionário público. Por isso e porque teve chefias que o "empurraram para o pedido de ajuda, em vez de me tentarem castigar".

No local de trabalho, ainda assim, "muitos olhos" em cima do si. Antes e depois. "Regressei com um estatuto de "vamos ver o que isto dá", porque já tinha falhado tantas vezes. No fim, consumia até a trabalhar" recorda. E lembra que, já nos últimos tempos, a chefe "escalava" uma colega só para o controlar.

No regresso, o trabalho não começou do zero, mas quase. Foi para outro "departamento", mas no mesmo hospital. A parte profissional foi correndo muito bem, "posso não ter seguido o melhor caminho, mas sempre fui um bom profissional, e acabava por não arriscar muito, sabendo que tinha consumido. Era um irresponsável responsável", garante.

Atualmente, Bruno tem um cargo de chefia, " e isso acaba por dizer alguma coisa do meu trajeto desde 2014". A pouco e pouco, quase todos se foram reaproximando, inclusivamente os filhos e até a ex-mulher. "Neste momento tenho uma relação muito boa com eles. Ainda não é a ideal, mas é de longe melhor do que quando saí do tratamento", afirma.

Bruno acredita que teve todo o apoio que podia ter tido. "Os meus pais até tinham alguma capacidade financeira, o que me permitiu entrar no Farol sem ter cama protocolada através do Estado. Entrei como particular e depois, como funcionário público com ADSE, uma parte do tratamento foi comparticipada. Não me posso queixar".

No entanto, e até como técnico de saúde, acredita que os centros de tratamento privados estão mais à frente do que o Estado. "O programa Minnesota ainda não é visto pelo Estado português como uma alternativa viável para o tratamento das adições. Ou melhor, se calhar as adições não são vistas como uma prioridade para o Estado", ainda que eu se trate de um problema de saúde pública.

Bruno sabe que o número de pessoas que precisam de ajuda é grande, mas reconhece que só obtém resultados quem quer e não quem precisa. Hoje, agradece a quem o orientou neste caminho e a quem o calçou "para poder andar sozinho".