Fazendo um balanço à agência Lusa dos seis anos do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), que substituiu o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), João Goulão afirma que “as opiniões divergem a propósito da eficácia deste novo modelo”.
O novo organismo, criado a 26 de janeiro de 2012 pelo anterior governo PSD-CDS/PP, manteve as competências de planeamento e estratégia de prevenção, mas o tratamento e prestação de cuidados a toxicodependentes e alcoólicos passaram para a alçada das cinco Administrações Regionais de Saúde (ARS), assim como os profissionais de saúde do IDT.
“Do meu ponto de vista aquilo que seria expectável dessa passagem seria uma mais perfeita articulação com outras estruturas do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente com os cuidados de saúde primários ou com os cuidados hospitalares, no que diz respeito ao atendimento de cidadãos com problemas de dependências, mas esse potencial não foi devidamente concretizado”, afirma João Goulão.
Na prática, o que aconteceu é que “foram introduzidas dificuldades e entropias, mediações e tempos mortos, que na prática retiraram alguma eficácia ao sistema”, diz, rematando: “não ganhámos com esta alteração”.
“Acresce a isto que os problemas dos comportamentos aditivos e dependências” é uma “área ínfima” no “universo de preocupações” das ARS que têm de acorrer às necessidades de saúde dos portugueses.
“É uma área ínfima e não teve o relevo e o ‘carinho’ que um serviço inteiramente dedicado a este tema lhes poderia dedicar”, sustenta João Goulão, que transitou da presidência do IDT para o SICAD.
Na sua opinião, o maior impacto desta mudança sentiu-se “na agilidade” de resposta.
“Num organismo inteiramente dedicado a este tema” consegue-se acorrer às necessidades das equipas para manter os níveis de atendimento, resolvendo dificuldades pontuais, como a baixa de um colega.
No IDT “tentávamos ‘jogar à dobra’, mobilizando outros profissionais para de forma supletiva acorrer a essas necessidades” e tudo isto ficou muito mais demorado, muito mais burocratizado e deixámos de ter a mesma agilidade”.
Isso acaba por ter impactos “na rapidez com que as pessoas são atendidas, na capacidade de evitar que se criem listas de espera, e em termos de reagir com a mesma agilidade a novos desafios que se vão colocando”, sublinha.
“Esta área lida com fenómenos muito mutáveis e às vezes é preciso reagir muito rapidamente e ir ao encontro dos problemas onde eles se encontram e do meu ponto de vista isso perdeu-se um bocado”, sustenta.
Há quase um ano, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para avaliar as consequências da extinção do IDT e para apresentar “propostas fundamentadas” sobre eventuais alterações ao modelo organizacional.
O grupo, coordenado pelo diretor-geral do SICAD, não conseguiu chegar a “uma proposta consensual” e enviou “muito recentemente” duas propostas ao secretário de Estado da Saúde, Fernando Araújo, que assentam em “filosofias diferentes”.
Uma preconiza o aprofundamento da integração nas estruturas das ARS e a outra, defendida por João Goulão, recomenda a existência de um organismo inteiramente dedicado a este tema, com capacidade de comando direto sobre as unidades de tratamento e prevenção.
“Parece-nos fazer sentido e é isso que preconizamos”, diz, esperando que a decisão do Governo o sobre o modelo a seguir seja tomada rapidamente.
Heroinómanos dos anos 80 e 90 colocam novos desafios ao SICAD
Os “largos milhares” de dependentes de heroína que começaram a consumir nos anos 80 e 90 colocam “novos desafios” ao sistema, porque estão a envelhecer e a precisar de cuidados específicos, disse à Lusa o diretor-geral do SICAD.
“Felizmente contribuímos para que se mantivessem vivos e não fossem ficando pelo caminho, mas estão a envelhecer e a precisar de cuidados”, adiantou João Goulão, que falava à Lusa a propósito dos seis anos da criação do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
Para João Goulão, “os dependentes clássicos, os heroinómanos dos anos 80 e 90, que hoje estão com 50, 60, 70 anos, com as consequências do seu consumo a fazerem o seu percurso”, em termos de saúde mental e física representam “um desafio importante” na área de intervenção das toxicodependências.
Apesar de já não haver a perspetiva que existia “há 20 ou 30 anos” de poder contribuir para a sua plena integração na sociedade, “temos pelo menos a responsabilidade de os acompanhar enquanto envelhecem e de lhes facultar acesso a cuidados de saúde e às necessidades básicas”.
Segundo João Goulão, esta situação ainda afeta “largos milhares de cidadãos”, um número que se acentuou durante a crise.
“Nos anos mais agudos da crise económica e social que enfrentámos houve muitas recaídas dessas pessoas particularmente vulneráveis e que são, de facto, ainda numerosas”, frisou.
Questionado pela Lusa sobre a importância das terapêuticas de substituição, como a metadona ou buprenorfina, o responsável disse que foram fundamentais para que “as pessoas se pudessem equilibrar” e para travar “a epidemia da sida e as hepatites” e a “mortandade causada por overdoses”.
“A metadona foi um instrumento fundamental no contexto das nossas políticas”, disse, sublinhando que os “indicadores de saúde melhoraram estrondosamente com esta possibilidade a par de outras medidas, como a troca de seringas”.
Diariamente, cerca de 15 mil toxicodependentes tomam metadona nos centros de tratamento nacionais e cerca 2.500 noutros locais, como nas carrinhas, no âmbito da política de redução de danos que está em vigor em Portugal.
Segundo João Goulão, o número de utentes que acede a estas respostas está estabilizado: “Não há muitos novos utentes a entrar, pelo menos consumidores recentes de opiáceos”.
Mas o envelhecimento da população toxicodependente não é o único desafio na área de intervenção do SICAD, conforme disse João Goulão, lembrando que se está a lidar com um fenómeno em permanente mutação.
“Os grandes desafios” prendem-se com as questões ligadas ao abuso do álcool, ao abuso de medicamentos, de anabolizantes, a comportamentos aditivos sem substância, como o jogo, e “num futuro próximo” a dependência do ecrã (videojogos, redes sociais).
O uso da canábis também constitui um grande desafio: “Estamos em plena discussão da possibilidade de ser aprovado o seu uso terapêutico, que me parece perfeitamente pacífico, mas por outro lado há uma enorme complacência social relativamente ao uso recreativo de canábis e isso é uma área de difícil atuação”
Neste momento entre os consumidores de substâncias ilícitas, os de canábis são os que tem “mais peso nos pedidos de ajuda” que aparecem nas unidades dedicadas a esta área, realçou.
Outro fenómeno que também merece atenção é as centenas de novas substâncias psicoativas que “todos os dias aparecem no mercado” e sobre as quais, em muitos casos, “se sabe pouco e há muita dificuldade em intervir”.
“É, felizmente, um fenómeno que ainda não tem um peso muito grande na sociedade portuguesa, mas podemos antecipar que pode aumentar”, frisou.
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