Em relação à gestação de substituição, o Tribunal Constitucional (TC) entendeu que esta, “com o perfil traçado pelo legislador português, ou seja, enquanto modo de procriação excecional, consentido autonomamente pelos interessados e acordado entre os mesmos por via de contrato gratuito previamente autorizado por uma entidade administrativa, só por si, não viola a dignidade da gestante nem da criança nascida em consequência de tal procedimento nem, tão-pouco, o dever do Estado de proteção da infância”.

No entanto, o TC pronunciou-se sobre “aspetos particulares da disciplina legal na matéria”, decidindo que “se encontravam lesados princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição”.

Em causa está, entre outros, a “excessiva indeterminação da lei” no que diz respeito aos “limites a estabelecer à autonomia das partes do contrato de gestação de substituição, assim como aos limites às restrições admissíveis dos comportamentos da gestante a estipular no mesmo contrato”, diz o Tribunal.

“A concretização de tais limites”, explica, “é indispensável tanto para o estabelecimento de regras de conduta para os beneficiários e para a gestante de substituição, como para balizar a definição pelo Conselho Nacional da PMA [Procriação Medicamente Assistida (CNPMA)] dos critérios de autorização prévia do contrato a celebrar entre os primeiros e a segunda”.

Facto que, considera o TC, “não oferece uma medida jurídica com densidade suficiente para estabelecer parâmetros de atuação previsíveis relativamente aos particulares interessados em celebrar contratos de gestação de substituição nem, tão-pouco, estabelece critérios materiais suficientemente precisos e jurisdicionalmente controláveis para aquele Conselho exercer as suas competências de supervisão e de autorização administrativa prévia”, numa violação do princípio da determinabilidade das leis, “que é um corolário do princípio do Estado de direito democrático”, esclarece.

Outro dos fatores para o chumbo é a “limitação da possibilidade de revogação do consentimento prestado pela gestante de substituição a partir do início dos processos terapêuticos de PMA”, o que impede “o exercício pleno do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade indispensável à legitimação constitucional da respetiva intervenção na gestação de substituição até ao cumprimento da última obrigação essencial do contrato de gestação de substituição, isto é, até ao momento da entrega da criança aos beneficiários”, naquilo que os juízes consideram ser uma “violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família”.

Significa isto que os juízes entendem que a lei não respeita a Constituição por impedir a gestante de se arrepender da decisão, querendo alargar o período para que tal reversão seja possível para após o nascimento da criança.

Outra norma chumbada pelos juízes do TC aponta para a “insegurança jurídica para o estatuto das pessoas gerada pelo regime da nulidade do contrato de gestação de substituição”, porque, dizem, a norma impede a ”consolidação de posições jurídicas – como progenitores ou como filho ou filha – que resultam da execução de tal contrato”, para além de “não diferenciar em função do tempo ou da gravidade as causas invocadas para justificar a declaração de nulidade”, o que viola o “direito à identidade pessoal e do princípio da segurança jurídica decorrente do princípio do Estado de direito democrático”, dizem.

Também avaliada pelo Constitucional foi a regra do anonimato, tanto dos dadores como da gestante de substituição. Neste caso, embora reconhecendo que a norma legislada “não afronta a dignidade da pessoa humana”, e contrariando uma decisão de 2009, considera que o diploma “merece censura constitucional, devido a impor uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição”.

Tribunal Constitucional chumba regra do anonimato de dadores da Lei de Procriação Medicamente Assistida
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Pelo contrário, “quanto à dispensa da averiguação oficiosa da paternidade, o Tribunal entendeu que, nas circunstâncias concretas em que a mesma se encontra prevista, tal averiguação seria desprovida de sentido, uma vez que, mesmo conhecendo a identidade do dador, este não pode ser tido como progenitor da criança nascida, não se mostrando violados os parâmetros constitucionais invocados”, isto é, o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da igualdade e direito à identidade pessoal.

O TC considera que “a eliminação das normas declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral levaria a que todos os contratos já apreciados favoravelmente pelo Conselho da PMA fossem considerados como não autorizados”, trará várias consequências legais, pelo que, em unanimidade, “com fundamento em imperativos de segurança jurídica e em cumprimento do dever do Estado de proteção da infância”, decidiu “limitar os efeitos da sua decisão, de modo a salvaguardar as situações em que já tenham sido iniciados os processos terapêuticos de PMA".

Deste modo, esta decisão não terá efeitos sobre os contratos já aprovados pelo CNPMA.

O acórdão do TC, hoje divulgado, responde a um pedido de fiscalização da constitucionalidade formulado por um grupo de deputados à Assembleia da República.

Um dos pedidos a que o CNPMA deu 'luz verde' é o de um casal em que a mulher não pode ter filhos e que a sua mãe aceita ser gestante de substituição.

Em fevereiro, o então presidente do CNPMA, Eurico Reis, classificou como "violação dos direitos humanos" a possibilidade de o Tribunal Constitucional chumbar a lei da gestação de substituição.

A lei que regula o acesso à gestação de substituição nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez, foi publicada em Diário da República em 22 de agosto de 2016.

A legislação foi publicada depois de introduzidas alterações ao diploma inicial, vetado dois meses antes pelo Presidente da República, que o devolveu ao parlamento para que a lei fosse melhorada e incluísse "as condições importantes" defendidas pelo Conselho de Ética.

Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa justificou a decisão com o argumento de que faltava na lei "afirmar de forma mais clara o interesse superior da criança ou a necessidade de informação cabal a todos os interessados ou permitir, a quem vai ter a responsabilidade de funcionar como maternidade de substituição, que possa repensar até ao momento do parto quanto ao seu consentimento".

A lei de gestação de substituição foi aprovada, com alterações após o veto presidencial, em 20 de julho de 2016, com os votos favoráveis do BE (partido autor da iniciativa legislativa), PS, PEV, PAN e 20 deputados do PSD, votos contra da maioria dos deputados do PSD, do PCP, do CDS-PP e de dois deputados do PS e a abstenção de oito deputados sociais-democratas.

As alterações introduzidas pelo BE estabelecem essencialmente a necessidade de um contrato escrito entre as partes, "que deve ter obrigatoriamente disposições sobre situações de malformação do feto ou em que seja necessário recorrer à interrupção voluntária da gravidez".