A queixa rejeitada pelo Tribunal de Estrasburgo prende-se com o facto de o marido, em processo de divórcio na disputa da responsabilidade parental dos dois filhos do casal, ter apresentado em tribunal contra o cônjuge ‘emails’ que encontrou no computador da família, em novembro de 2010, trocado entre a sua então mulher e parceiros masculinos num "namoro informal" na Internet.
Com os ‘emails’ apresentados em tribunal, o cidadão espanhol alegou que essas conversas da sua então mulher portuguesa, por eram a prova de que teve relações extraconjugais durante o casamento.
Em agosto de 2011 o cidadão interpôs recurso no Tribunal da Família de Lisboa, requerendo que os filhos lhe fossem devolvidos e que a sua residência fosse provisoriamente estabelecida em Portugal. Posteriormente, em outubro de 2011, ele intentou um processo de divórcio em Portugal.
Em setembro de 2013, o Tribunal da Família de Lisboa suspendeu o processo enquanto se aguardava a decisão de o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJEU) quanto ao qual a autoridade judicial tinha jurisdição para determinar a disputa.
Em junho de 2015, o TJUE considerou que a primeira jurisdição perante a qual o litígio tinha sido instaurado, nomeadamente os tribunais espanhóis, eram competentes para decidir o caso. No final do divórcio em processo instaurado em Espanha, a mulher portuguesa e o seu marido foram declarados divorciados, com os direitos de residência concedido à mulher, tendo o seu ex-marido direitos de contacto partilhado com os filhos.
Entretanto, em março de 2012, a mulher apresentou uma queixa-crime ao Ministério Público português, acusando o marido de violação do segredo de correspondência, ao abrigo do artigo 194 do Código Penal, alegando que havia acedido à caixa de entrada de sua conta num "site de namoro" na Internet e imprimiu os ‘emails’ que ela trocou com alguns homens ‘online’, tendo incluído os documentos no processo que deu entrada no Tribunal de Família de Lisboa
Em outubro de 2012, o Ministério Público português ordenou a suspensão do processo e em novembro de 2012 a mulher pediu para participar no processo penal como assistente (colaborar da acusação) e solicitou que uma investigação judicial fosse iniciada. Porém, a mulher não apresentou um pedido de indemnização e o juiz de instrução criminal decretou a desistência do processo.
Inconformada, a mulher interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou que "não havia provas suficientes" para ordenar que o ex-marido fosse julgado.
Baseando-se no artigo 8 da Convenção dos Direitos Humanos (direito ao respeito pela vida privada e à correspondência), a mulher apresentou queixa no Tribunal de Estrasburgo pelo facto de os tribunais portugueses não terem punido o marido por alegadamente aceder ilegalmente aos emails que ela trocou no ‘site’ de namoro.
A queixa foi apresentada ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 29 de março de 2014, tendo o julgamento sido proferido por uma secção de sete juízes, que inclui a magistrada portuguesa Ana Maria Guerra Martins.
O Tribunal de Estrasburgo concluiu que o caso dizia respeito à interferência com a vida privada da queixosa/mulher por parte de um cidadão com quem tinha sido casada, e não pelo Estado. Ora, as suas queixas relacionavam-se com as obrigações positivas do Estado nos termos do artigo 8 da Convenção.
Assim, o Tribunal de Estrasburgo concluiu ainda que, relativamente ao ordenamento jurídico português, face ao sucedido (acesso aos e-mails), o MP português abriu uma investigação e a mulher foi admitida a participar no processo-crime como assistente, o que a habilitou a participar ativamente no caso criminal.
Além disso - entenderam os juízes em Estrasburgo - a queixosa podia ter apresentado um pedido de indemnização ao solicitar que uma investigação criminal fosse iniciada, mas não o fez e, portanto, renunciou a esta faculdade.
Quanto ao acesso aos ‘emails’, o Tribunal de Estrasburgo constatou que o Tribunal da Relação de Lisboa tinha considerado que a mulher deu ao marido acesso total à sua conta no ‘site’ e que, em consequência, essas mensagens faziam parte da vida privada do casal, e concordou com o Tribunal da Relação de Lisboa quanto à relevância destas mensagens no processo cível em questão.
Paralelamente, observaram os juízes de Estrasburgo, as mensagens em questão não foram examinadas na prática, uma vez que o Tribunal de Família de Lisboa acabou por não se pronunciar sobre o mérito dos pedidos do marido.
Consequentemente, o Tribunal de Estrasburgo decidiu não vislumbrar "qualquer razão relevante" para substituir a decisão dos tribunais portugueses por uma decisão sua, tanto mais que as autoridades portuguesas tinham equilibrado os interesses em litígio, em conformidade com os critérios definidos na sua jurisprudência.
Em conclusão, considerou que o Estado português cumpriu assim a sua obrigação positiva de proteger os direitos da mulher ao respeito pela sua vida privada e a confidencialidade da sua correspondência, pelo qu não houve violação do artigo 8 da Convenção.
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