A Comunidade Israelita do Porto (CIP) fez uma queixa à Procuradoria Europeia, tendo enviado um documento de 131 páginas a que o semanário Expresso teve acesso. A CIP acusa “figuras relevantes do Governo”, assim como deputados e órgãos de comunicação de se coordenarem numa “conspiração antissemita” associada a “sinais de corrupção”.

O documento chama-se “A Primeira Grande Conspiração Antissemita do Século XXI” e em causa está “um caso de impensável antissemitismo de estilo soviético” num país da União Europeia, denuncia a CIP, citada pelo semanário.

Em causa estão as alterações ao regime de naturalização para descendentes de judeus sefarditas - comunidade judaica que foi expulsa de Portugal no século XV por decreto do rei D. Manuel I - que entraram em vigor na quinta-feira, com os serviços de registos a debaterem-se com a apresentação diária de milhares de pedidos de concessão da nacionalidade portuguesa.

O novo enquadramento legal veio tornar mais restritas as condições de acesso à cidadania portuguesa, exigindo provas de “deslocações regulares ao longo da vida” ou heranças, quando “tais factos demonstrem uma ligação efetiva e duradoura a Portugal”.

Por outro lado, mantêm-se os requisitos de ausência de condenação a pena de prisão igual ou superior a três anos e a demonstração de “circunstâncias que determinam a tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, designadamente, apelidos de família, idioma familiar, descendência direta ou relação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da comunidade sefardita”.

Para a CIP, há um objetivo reiterado de destruir esta legislação que garante a nacionalidade a judeus sefarditas, de difamar a “maior comunidade” judaica do país e de “rejeitar politicamente” os “cerca de 40 mil” israelitas que obtiveram passaporte português, cita o Expresso.

A alegada conspiração, adianta a CIP, começou no final de 2021, quando vieram a público as notícias de que o oligarca russo Roman Abramovich tinha conseguido obter cidadania portuguesa devido às suas raízes sefarditas. Os queixosos alegam que os “verdadeiros perpetradores” deste ato “são ainda desconhecidos”, mas que “inventaram uma história fantasiosa sobre uma ‘porta aberta’ para a imigração ilegal em troca de dinheiro”.

A CIP refere-se assim à “Operação Porta Aberta”, conduzida desde fevereiro pela Polícia Judiciária e que investiga alegadas ilegalidades na emissão, pela comunidade judaica do Porto, de certificados de nacionalidade portuguesa a judeus sefarditas. No entender da CIP, esta investigação baseia-se em “denúncias anónimas” feitas por “malfeitores, conspiradores e agentes do Estado”.

Entre os alvos da CIP, constam a ex-ministra da Justiça Francisca van Dunem, acusada de enviar “denúncias anónimas” a autoridades por si nomeadas, e a ex-deputada e ex-ministra Constança Urbano de Sousa, que é caracterizada como fazendo parte de um “grupo antissemita” que iniciou “uma significativa campanha de difamação” e “humilhação” dos judeus sefarditas. Por essa razão, também o Expresso, o Público e a RTP são acusados de serem “agentes da conspiração”.

A CIP acusa ainda Augusto Santos Silva, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual presidente da Assembleia da República de auxiliar as alterações à lei da naturalização por simpatias à causa palestiniana. “Em Portugal a esquerda não tolera a imagem de um Israel forte”, lê-se no documento.

De acordo com o Expresso, Constança Urbano de Sousa considera este documento documento “profundamente agressivo e de teor injurioso, difamatório e calunioso” e reserva-se “o direito de uma reação nos termos da lei”.

É ainda amplamente citado o caso de Patrick Drahi, dono da Altice e detentor de cidadania portuguesa desde 2016, num processo que ficou a cargo da Comunidade Israelita de Lisboa. De acordo com a CIP, Drahi tem sido acusado “falsamente do crime de corrupção” na aquisição de cidadania como parte de uma campanha com o objetivo de “evitar que judeus ricos de nacionalidade portuguesa invistam em sectores estratégicos” ou em áreas “dominadas pelas elites tradicionais”.

Alguns processos de atribuição da nacionalidade portuguesa a descendentes de judeus sefarditas estão em investigação devido a alegadas irregularidades. A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou em 19 de janeiro a abertura de um inquérito sobre a naturalização do empresário russo Roman Abramovich ao abrigo deste regime.

A investigação no âmbito do processo de Roman Abramovich implicou a realização de buscas e envolve suspeitas de vários crimes, nomeadamente tráfico de influências, corrupção ativa, falsificação de documento, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e associação criminosa.

É no âmbito deste caso que a Polícia Judiciária tem realizado buscas desde fevereiro, na já mencionada Operação Porta Aberta. No entender da CIP, “houve roubos noturnos a escritórios de advogados e a casas particulares” no decurso da atuação da PJ, dizendo que  Isabel Ferreira Lopes, vice-presidente da CIP, “teve de correr para a casa de banho enquanto a sua habitação era invadida por mais de 10 pessoas” e que o rabino da comunidade israelita do Porto, Daniel Litvak, que foi detido em março, “foi ilegalmente sujeito a tirar fotografias e impressões digitais, privado do seu livro de orações e do acesso a comida kosher (passou mais de 24 horas sem comer) e forçado a quebrar o Shabat”.

Segundo o Expresso, o World Jewish Congress já reagiu à iniciativa da CIP, considerando que “abraçar teo­rias da conspiração falsas deve ser rejeitado como tática”. 

Em resposta enviada à Lusa, a CIP lembrou que a denúncia indicava que, "além da Comunidade, também foram vítimas de uma conspiração o Presidente da República, o primeiro-ministro e praticamente todo" o país.

"A soberania do Estado Português, que pode pôr termo ou alterar esta lei e qualquer outra lei a qualquer momento, não está em causa, mas o procedimento poderia e deveria ter sido implementado de outra forma. Como a Comunidade comunicou ao Presidente da República e ao primeiro-ministro, acabar com a lei teria sido simples. Bastaria um governante experiente ter tido uma conversa franca com as comunidades naquele início de 2020 dizendo que 'Portugal não pode absorver um milhão de judeus de origem sefardita portuguesa'. Tudo se resolveria", acrescentou a CIP.

Entre 2015 e 2021, segundo dados do IRN e do Ministério da Justiça enviados à Lusa, Portugal atribuiu a cidadania portuguesa a 56.685 descendentes de judeus sefarditas (que foram expulsos de Portugal por decreto régio há mais de 500 anos), tendo recusado 300 pedidos de naturalização num total de 137.087 que deram entrada nos registos. No final de 2021 restavam 80.102 requerimentos pendentes.