“Apanha-me se puderes”. Em 2002, Steven Spielberg fez um filme, protagonizado por Leonardo DiCaprio e Tom Hanks, sobre fraudes. Uma corrida entre um jovem que se torna em tudo e mais alguma coisa — e, por isso, enriquece e faz tudo e mais alguma coisa — e o investigador que tenta apanhar.
Perito na arte de forjar documentos, Frank Abagnale Jr. (Leonardo DiCaprio) arranja maneira de ser quem quiser — incluindo, piloto de aviões. Esta não é a história de um homem que se faz piloto. É, pelo contrário, a história de alguém que vende aviões que nunca lhe pertenceram.
Michelle Renee Hughes registou, em fevereiro passado, nos Estados Unidos da América, um novo avião. Enviou toda a documentação necessária para a FAA, entidade norte-americana responsável, incluindo uma prova da transmissão da propriedade , comprovando a compra do bimotor Piper Seminole por 115 mil dólares (cerca de 105 mil euros).
Nos papéis, tudo em ordem, exceto a diferença entre a morada do registo e a morada no envelope. Semanas depois do envio — e do pagamento dos cinco dólares da taxa de registo — a propriedade do avião era passada pela FAA para Hughes.
Depois, Hughes foi à plataforma de comércio de aviões AeroTrader.com e colocou um anúncio para vender o avião, por mais dez mil dólares do que supostamente o tinha comprado.
“Sou proprietário de um Piper PA-44-180T de 1981”, escreveu. “Tenho comigo o certificado de propriedade da FAA. O avião está em Shelton, WA. O avião está bem estimado e quero encontrar-lhe uma nova casa. Até posso aceitar trocas, negociando o preço.”
Segundo o Quartz, um potencial comprador respondeu ao anúncio. Todavia, avisou Hughes de que não tinha dinheiro suficiente para pagar o avião a pronto. Após uma troca de mensagens e emails, o vendedor ofereceu-se para arranjar financiamento e propôs a ideia de vender 50% do avião por 62.500 dólares (57.350 euros), partilhando a sua propriedade.
“Pode ver o avião quando quiser”, disse Hughes, citado na publicação. Acrescentava que “a porta está destrancada”. “Sinta-se à vontade para voá-lo para o aeroporto de Kent [também em Washington]. O meu carro não chega a Shelton”.
Mas durante três semanas o negócio não se concretizou. Hughes enviou um SMS a dizer ao interessado que outra pessoa estaria a ponderar a compra de metade do avião. E incluía o ultimado: “Se não me der nada hoje, terei de o vender a outra pessoa”.
Porém, o comprador não o era verdadeiramente. Tratava-se de um agente do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla original).
Os documentos forjados que Hughes enviou à FAA foram descobertos depois de um funcionário do departamento de transportes de Washington, numa ação de rotina, ter telefonado ao anterior proprietário do Piper para confirmar o cancelamento do registo da aeronave.
O proprietário — um médico da Armada norte-americana —disse que não tinha vendido o avião, nem sequer tinha intenção de o vender. Desde a fraude, instalou um dispositivo anti-roubo para manter o avião seguro.
A FAA explica que não questiona a veracidade da documentação, a menos que haja dados incorretos ou incompletos.
Os investigadores do DHS foram ter com o verdadeiro proprietário do Piper. A assinatura dele não tinha quaisquer semelhanças com a que Hughes tinha na nota da venda. Mais, o dono do avião explicou também que não conhecia Hughes, nem alguma vez se encontrou com ele.
A queixa subsequente explica o processo: “depois de a aeronave estar registada no papel, o novo proprietário (fraudulento) vende-a a um comprador insuspeito, que paga dinheiro, mas não recebe o avião”. O falso proprietário “foge com o dinheiro”.
Para além dos aviões, esquema é há muito usado para a tomada de “posse” de casas, carros, barcos. Segundo as autoridades, só em 2019 os consumidores norte-americanos denunciaram perdas de mais de dois mil milhões de dólares por causa de fraudes. Em euros, são mais de 1.835 mil milhões.
Os números mostram também que quase um quarto das vítimas de roubo de identidade já sofreu do mesmo crime antes. Os grupos de risco são: os mais velhos (e os mais novos), os utilizadores de redes sociais, membros das forças armadas — e os mortos.
Mas enquanto o processo de venda fraudulenta do Piper era desmascarado pelas autoridades, Hughes tentava fazer outro negócio: um jato privado, muito mais avultado. Cerca de um mês depois de ter transferido a propriedade do Piper para o seu nome, fez o mesmo para um Cessna Citation Mustang, um jato bimotor, que supostamente teria comprado por mais de milhão e meio de dólares.
Michelle Hughes tentou vender o Cessna a um intermediário. “Gosto de saber quão cedo receberei os fundos? Envia-me um cheque pelos correios ou faz um depósito direto?”, questionou, indicando o valor de venda: 2,5 milhões de dólares.
O intermediário, contudo, entrou em contacto com o proprietário legítimo do Cessna. Nessa altura, já a aparente fraude tinha sido denunciada pelo dono do avião. Uma semana depois, Hughes foi detido.
Ao Quartz, a namorada de Hughes (que o tribunal identifica como mulher) justifica a fraude com as dificuldades financeiras do casal.
“Às vezes temos de encontrar uma forma de sobreviver, seja ela honesta, seja ela saltando em ambos os lados da lei”, disse. “Isto não o torna necessariamente correto, mas entende o que quero dizer?”
Já no passado mês de março, Hughes foi detido novamente: foi apanhado com uma certidão de nascimento falsa e uma carta de condução com o nome de outra pessoa (violando assim as condições da sua libertação).
No mês seguinte, declarou-se culpado de todas as acusações — e agora está preso numa prisão federal de alta segurança em Seattle.
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