O estádio do Canindé, construído para receber 27 mil adeptos, está praticamente vazio. Ao todo, 960 pessoas. É um dia decisivo para a Portuguesa, que enfrenta o Santos, na 2.ª B da Copa Paulista. Se errar, está tudo perdido. O futuro do clube, que já esteve entre os melhores do Brasil, está comprometido, não só pelos resultados do futebol, mas também pela dívida de 200 ou 300 milhões de reais, ninguém sabe ao certo.

Opto por ver o jogo da arquibancada, misturada com os restantes adeptos. À entrada, homens fardados e de arma na mão passam revista. É a PM (Polícia Militar), que vem garantir um jogo sem distúrbios maiores. Conto pelo menos sete polícias, só naquele bocadinho, e parece-me imenso. O cabo responsável explica amavelmente que a lei é estadual, o número de polícias depende do número de adeptos esperados. Noutros estádios são muito mais.

Fico na secção 4. Ou noutra qualquer, ali ninguém fica parado. André e Bruna são dois Leões da Fabulosa, a torcida da equipa de futebol. Ele começou em 2010, ela aderiu agora. A primeira vez que veio ver um jogo foi por amor: "Aí, não tem como", diz. Depois apaixonou-se pelo ambiente também. O grupo ensaia todos os domingos, como se fosse bateria de escola de samba. À minha esquerda, bem lá em cima, um cartaz anuncia em letras garrafais: “O verdadeiro leitão da Bairrada”, rancho português.com.br. Esta é a Copa Paulista 2017.

Henrique, de oito anos, passa por mim e não resisto a perguntar porque torce pel’A Portuguesa e não por um dos grandes do futebol, como o Flamengo ou o Corinthians. Responde que esta "é a equipe do pai e da mãe". O pai, Marcos, e os avós de Henrique, como de outros meninos e meninas que por ali vão passando, são portugueses. De Leiria e de Aveiro. Será que a Lusa, como é tratada por todos a equipa, vai ganhar o campeonato este ano? "Acho que sim. E vai subir de divisão. Não há melhor do que A Portuguesa", garante.

Na época de 2013, a Lusa estava no Brasileirão e entre as melhores. Mas isso foi antes do “Tapetão”. Aí as coisas começaram a despencar, até a equipa ficar "na pior". Tapetão é o nome por que ficou conhecido o caso que levou a equipa a descer da Série A para a B.

Em poucas palavras: a Confederação Brasileira de Futebol, equivalente à Federação Portuguesa de Futebol, descobriu que um dos jogadores da Portuguesa, Héverton, não reunia os requisitos para poder integrar a equipa que disputou o Brasileirão e, como castigo, penalizou-a com a descida de divisão. Houve acusações de parte a parte, mas, como quase sempre, ganhou o mais forte. Daí para a Série C, depois D e, finalmente, para o campeonato estadual, foi um pulo.

A equipa foi perdendo jogadores, patrocínios, jogos, dinheiro e, pior de tudo, credibilidade. Mas não para todos. Enzo Ferreira e Bruno, dois amigos de 12 anos, juram que "pode não ser a melhor equipa, mas vamos ser d’A Portuguesa até morrer".

Um vendedor interrompe: "Água, sorvete, torradinho!". Em São Paulo, a capital financeira do Brasil, tudo é pretexto para negócio. Mais ainda agora, que a pobreza aumentou, dentro e fora do estádio. As coisas não vão bem no Brasil, o desemprego subiu em flecha e o pessoal anda nervoso. "Vai enfiar o cabo da vassoura do rabo da tua mãe", houve-se um adepto a gritar para o árbitro.

Luciano Abreu Fernandes viveu na Madeira entre 1993 e 1995. Em Portugal, torcia pelo Benfica e pelo União da Madeira. Mas ser, mesmo, é d’A Portuguesa. "A equipa rebaixou muito, isso denegriu muito a imagem do clube. Mas vamos recuperar e voltar a fazer frente aos melhores do Brasil", acredita.

"Pipoca", ouve-se agora. Golos é que nada. Nicole, sete anos, gosta "da bagunça e de comprar bomba". Não sabe nada de futebol e não conhece os jogadores, nem entende quase nada do que digo, mas adora o avô, a quem faz companhia. Por isso, "A Portuguesa é a melhor equipe do mundo".

Um rapaz dos seus 16 anos entra atrasado no estádio e benze-se. No relvado, a equipa precisa de toda a ajuda. Um "cara…" é abafado pelo tambores da claque, que tenta levantar o moral dos jogadores: "Dalê, dalê, dalê…", gritam numa coreografia animada. Do lado oposto, a torcida do Santos salta na bancada para se fazer notar. Os adeptos aplaudem uma jogada, mas ainda não foi desta. "Manda a bola prá frente", diz um. E vem mais um chorrilho de obscenidades.

Passa por mim, displicente, uma t-shirt do Banif. No campo, o número 7 ameaça, mas não concretiza. Não é Cristiano Ronaldo, é Guilherme Queiróz, que, comprometido, morde a camisola. O árbitro apita para intervalo e, enquanto os jogadores recolhem aos balneários, cá fora toca "numa casa portuguesa fica bem, pão e vinho sobre a mesa…".

Ailton conversa comigo e conta como foi viver em Portugal. Quer voltar, não sabe quando. O jogo recomeça. Nesta altura, como num jogo de tetris, os adeptos rodam para o lado da baliza do Santos, para verem o golo que não chega mais de perto. O jogo está ao rubro. Ao fundo, a PM entra em acção e separa a claque do Santos de alguns adeptos mais excitados da Lusa. Expulsa alguns de ambos os lados. E de repente: "Goooooooooooooooool". É golo. "Portuguesa! Portuguesa!" O estádio vibra.

Está 1-0 para a equipa da casa quando a partida chega ao fim. Mas o árbitro não apita e agora o perigo está junto à baliza da Portuguesa. Da arquibancada o pessoal grita que o jogo acabou. A torcida mantém o fair play: "Oh, oh, oh, Lusa!".

"E não é que a portuguesa deu sorte?!"

O árbitro assinala, finalmente, o fim da partida. Ao pé de mim, um grupo de adeptos grita animado apontando na minha direcção: "E não é que a portuguesa deu sorte?!"
Saio do estádio Dr. Oswaldo Teixeira Duarte e dirijo-me para a sala de imprensa. É lá que vou conversar com alguns jogadores, com o treinador e com o presidente do clube. Pelo caminho cruzo-me com Tiago, com quem conversei à entrada, na portaria: "Eu não disse p'rá você? Apostei que vinham mil adeptos, falhei por 40".

Além de mim, PC Gusmão tem a mulher à sua espera. "É sempre o último a sair. Estou condenada a ficar para o fim", diz. Mais do que uma queixa é uma constatação. "Pelo menos hoje vai bem-disposto. O pior é quando a equipe perde, aí não há quem ature. Mas ele torce, e eu torço junto". Quem foi que disse que vida de mulher de treinador é fácil?

Têm duas filhas com mais de 30 e nenhuma percebe como a mãe tem pachorra para seguir o pai para lá e para cá. Pergunto-me se terá casado aos quinze. Ri-se e explica que uma das filhas é médica dermatologista. E passa a vida a experimentar produtos e processos na mãe. "Sou a sua cobaia. Não pode ver um sinal, uma ruga".

Finalmente, e depois de quase todos terem saído, chega PC Gusmão. Descubro que foi treinador do Marítimo, ainda que por curto prazo. Foi na época 2016/17, entre Maio e Novembro. O que correu mal? "Os resultados não vieram". Ficou alguma mágoa por não lhe terem dado tempo para mostrar o que valia. Hoje está feliz. "A gente vai tentando coisa boa e as coisas boas acabam vindo", diz num sorriso aberto. E acredita que em cinco anos a equipa estará de volta ao Brasileirão.

O plano de recuperação

A Portuguesa nasceu em 1920. No dia 14 de Agosto o jornal O Estado de S. Paulo anunciava na sua folha desportiva: "a tomada de posse da novel Associação Portuguesa de Esportes", resultado da fusão de cinco clubes de futebol lusitanos: Luzíadas Futebol Club, Associação 5 de Outubro, Esporte Club Lusitano, Associação Atlética Marquês de Pombal e Portugal Marinhense.

Inicialmente, e por falta de tempo para se inscrever no campeonato daquele ano, a Portuguesa funde-se provisoriamente com o Mackenzie, já inscrito, e participam juntos no campeonato de 1920. Em 1940, o clube altera o seu nome para Associação Portuguesa e Desportos e nos anos 70 já era célebre pelas suas vitórias e jogadores como Djalma Santos, Julinho Botelho, Leivinha, Marinho Peres, Enéas, Roberto Dinamite ou Dener.

Hoje a fama parece distante. "Precisamos ganhar esta competição para voltar a entrar para o Campeonato Nacional do Brasil. Se vencer, a gente volta para a 4.ª divisão. Se perder, ficamos sem divisão", diz Luís Henrique Passos, assessor de imprensa para o futebol. Por enquanto, as coisas parecem bem encaminhadas, a Portuguesa está em segundo lugar. Mas a procissão ainda vai no adro, depois desta há mais três fases. Ainda assim, "se ganhar hoje, dá um grande passo".

A equipa de futebol mudou bastante nos últimos quatro anos. Sem dinheiro, os jogadores e a equipa técnica foram saindo. Agora, os mais famosos do plantel são Ricardo Berna, capitão, e Marcelinho Paraíba. Mas muito mais mudou desde o "Tapetão". A Portuguesa tem desde há poucos meses um novo presidente, Alexandre Barros, 43 anos, descendente de portugueses. "Foi sempre um sonho para mim estar à frente da Portuguesa, uma equipe que admiro desde pequeno. Mas tenho a consciência de que não vai ser fácil endireitar o clube".

Para já, um bom passo: a Portuguesa acaba de assinar um acordo com o seu principal credor, Gislane Nunes, que representa os trabalhadores. "Muita gente diz: “Nossa, a Portuguesa caiu tanto, está sem divisão….”, mas o futebol é movido a dinheiro. A São Caetano tem apoios municipais, a Ferroviária é um clube S.A.. A Portuguesa até há uns meses não tinha sequer conta num banco. Agora, ao fim deste tempo todo, quatro anos, os funcionários estão a ser pagos através do banco", explica Everton Calício, director de comunicação. "O que aconteceu foi um efeito dominó. Veja a JBS (empresa envolvida na Operação Lava Jato), onde deu um pau geral. Imagine se ninguém comprasse Seara (empresa do grupo) e ainda os bancos fechassem as linhas de crédito, iam à bancarrota no dia seguinte. Foi isso que nos aconteceu em 2014", conta.

Actualmente, alimentar a máquina da Portuguesa – pagar impostos, IPTU (IMI), salários, água e luz - representa um custo mensal de entre 500 mil e 750 mil reais (145 a 220 mil euros). E isto depois de grandes cortes na despesa. Só a folha salarial dos jogadores chega a 120 mil reais. Mais cerca de 80 mil para funcionários do clube. Isto fora a parcela do acordo Gislane, que são mais 250 mil todos os meses.

"Não é fácil", garantem os responsáveis. Mas já foi pior. O estádio esteve penhorado e chegou a ir a leilão. Por sorte não apareceram compradores. Agora, além do acordo de credores há um plano de reestruturação da dívida e do clube, que "prevê a construção de um hotel, um centro comercial, um centro de convenções, um complexo multiusos. Um clube vertical, com um edifício de oito andares e um centro de estágios", avança Everton Calício. Tudo, ali, nos terrenos do Canindé, que valem ouro.

E se um Mourinho da vida comprasse o clube? "[risos] Acho que seria muito bom, mas penso que não tem nenhum louco assim", responde Everton. "Mas a Portuguesa ainda é um grande negócio e a nossa maior moeda de troca são os terrenos onde está implantado o Canindé. O Canindé está numa área muito interessante da cidade de São Paulo, perto do aeroporto de Guarulhos, na melhor área da marginal", diz Alexandre Barros. O objectivo é valorizar isso e fazer parcerias com empresas que ali se queiram instalar a troco de uma renda para a Portuguesa.

Mas, antes de mais, e como sugeriu o tribunal, é necessário proceder a uma auditoria interna para determinar as dívidas reais da associação. "Todos querem viabilizar o clube, que há apenas alguns meses estava insolvente, mas é preciso conciliar as vertentes jurídica, administrativa e financeira para levar as coisas a bom porto e implementar um plano de recuperação equilibrado", diz o director de comunicação.

Para já, o clube quer estar mais perto da comunidade. "As receitas principais provêm, além das quotas, de eventos vendidos no Canindé, do aluguer do estádio, das piscinas e de outras áreas do clube, como aquela em que, todas as segundas semanas de cada mês, se realiza uma grande festa portuguesa, com direito a folclore e a pastelinhos de bacalhau.

"Os abnegados (mecenas e patrocinadores), também são muito importantes. Mas com a crise de credibilidade em que o clube mergulhou, muitos afastaram-se. É preciso ver que a Portuguesa é uma associação, não tem fins lucrativos, é movida por paixão". Por isso é preciso recuperar antigos amigos, como a Anaconda, da família Martins, uma família de Idanha-a-Nova (antigos donos da Celtejo).

E há outras coisas a recuperar. Uma delas talvez seja a Severa, que era inicialmente a mascote do clube. Agora são os leões. "É possível que voltemos a ter a Severa para as meninas, mantendo os leões para meninos", diz Everton, ali, onde Catarina Martins não nos ouve. E também está em marcha um plano para cativar adeptos – um estudo independente revela que a torcida da Portuguesa representa 1% do total de torcedores. "Queremos resgatar estes torcedores com o plano amizade, em que o associado paga 10 reais por mês, e com um plano maior, em que o adepto não paga entrada nos jogos no Canindé", anuncia Everton.

Além do futebol masculino, a Portuguesa tem o futebol juvenil, "muito conhecido" e o futebol feminino, por sinal bastante melhor classificado: "Acabou de subir para a Série A". Depois existem modalidades como o hóquei, bastante famoso no meio, ou o futsal. "Acredito que a Portuguesa vai voltar a ser a grande Portuguesa. Vai demorar, não vou dizer que vai ser em dois anos, vai ser um processo gradual, ao contrário da queda. Levará entre cinco a dez anos, se tudo for certinho", diz o presidente.

E eu, depois desta viagem pelo universo do clube, também acredito, desde que não haja mais passos em falso. É que o jogo, de recuperar o clube e a sua honra, é o único que não pode ser jogado com os pés.