1800 pequenos-almoços hoje. Quatro mil de dia 2 a 6 de agosto que vão viver, por agora, no boémio e cultural bairro lisboeta de Campo de Ourique. Vindos dos quatro cantos do mundo, confluem ao nascer do sol para a escola Salesianos de Lisboa, colégio que liga a Igreja São Contestável ao Cemitério dos Prazeres.

À sua espera está uma autêntica “linha de montagem” pronta a servir-lhes a primeira refeição do dia em dezenas de mesas dispostas no espaço reservado durante o ano letivo aos campos de basquetebol e voleibol da escola, mas que servem igualmente de parque de estacionamento no tempo fora de aulas.

Vindos de Itália, Países-Baixos, Polónia, Japão, Gabão, Portugal e muitos outros países, estes quatro mil peregrinos são os novos habitantes temporais desta pequena cidade dentro da cidade na zona considerada parte do centro histórico da capital.

Encontram teto e abrigo na escola salesiana, mas não só. Esgotados todos os metros quadrados espalham-se pelas vizinhas escolas públicas, Manuel da Maia, Ressano Garcia, Josefa de Óbidos, na Associação de Apoio ao Ensino dos Cegos, na escola do Instituto Imaculada Conceição, sita no CACO - Clube Atlético de Campo de Ourique, para além de encontrarem leito em quatro dezenas de famílias de acolhimento que lhes abriram portas.

“Só entra quem tem pulseira e credencial”

Miguel Roquete, funcionário dos Salesianos, dá os bons-dias a quem passa a porta de ferro virada para a Rua Saraiva de Carvalho. “Há uma equipa para receber estes jovens de todo o mundo. É uma semana diferente e estamos de coração aberto”, confessa ao SAPO 24. “Estou no turno das 6h30 às 16h00”, informa. “Faço o primeiro. Depois há mais dois. Das 16h00 às 0h00 e daí até às 6h30”, explica.

Veste a pele do controlador de entradas. “Só entra quem tem pulseira e credencial, o dístico. Sem isso, não entram”, garante, interrompendo a conversa para informar e gesticular para onde se deve dirigir quem aos poucos vai entrando. “Badegt, please (dístico, por favor)”, solicita.

“Entram, descem as escadas até ao pavilhão, lá em baixo, seguem para as filas de pequeno-almoço, onde está a logística toda, levantam o kit e regressam e sentam-se nas mesas. Quem tem restrições alimentares, tem o kit cá em cima (duas filas e quatros mesas à entrada das salas de aula)”, detalha. “É o toma lá, vai buscar e siga”, resume o processo que se assemelha às antigas fábricas de automóveis de Henry Ford, onde cada um desempenhava em separado a sua função, uma mecânica de funcionamento na qual as grandes cozinhas das cadeias hoteleiras se inspiraram.

“Há duas linhas de montagem, duas entradas por linha onde, em média, são servidos 200 pequenos-almoços de cada vez”

José Bernardo é o chefe desta orquestra afinada ao milímetro. Encontramo-lo na tal linha de montagem dos pequenos-almoços por onde vão passar por estes dias quase uma mão cheia de peregrinos, vezes mil, abrigados em Campo de Ourique.

A um ano de atingir a maioridade de serviço nos Salesianos, não se perde na explicação. “Há duas linhas de montagem, duas entradas por linha onde, em média, são servidos 200 pequenos-almoços de cada vez. Entram, serpenteiam pelo caminho, dirigem-se à esquerda ou à direita, como se estivessem num festival de música, levantam o kit, sobem as escadas e vão sentar-se nas mesas lá em cima”, detalha.

“Há muita gente envolvida, todas as manhãs temos 70 pessoas aqui (a servir) e temos outros numa parte menos visível”, enumera. “São voluntários e funcionários da escola e da escola de Manique”, avança.

“Na parte do dia em que estamos e estaremos sem os miúdos ficaremos mais folgados”, assegura. Nessa altura reduzem o número de pessoas envolvidas. “À noite, temos sete funcionários espalhados pelos locais onde os peregrinos ficam a dormir”, desenvolve. “Dormem nas salas de aula, pavilhões, onde houver espaço”, afiança.

Antes do sonho, as noites são embaladas por melodias diversas. “Há sempre uma música de receção às chegadas das comitivas. Há uma playlist, música de cada país e depois os outros entram na dança”, assevera.

Às 8h00 da manhã, o movimento serpenteante de camisolas e bandeiras de todo o mundo acelera. A fome aperta e o abastecimento nutricional é feito em grupo.

Miguel Serafim não estranha. “Na escola, trabalho na cozinha e estou habituado. Tenho sempre 900 alunos, por isso, já estou calçado”, sorri. Prossegue a explicação do menu pronto a servir. “Barritas, maçã, manteiga, doce morango, pão, sumo e leite”, indica.

Para quem tem restrições, alergias ou intolerâncias, o menu é ligeiramente diferente. O glúten pode ficar à porta, ou não. Tudo está detalhado na leitura do QR Code em versões português, inglês, espanhol, polaco, francês e italiano.

“A expetativa é falar com gente de todo o mundo e conversar sobre o querem encontrar neste evento”

Chidey, de São Tomé e Príncipe, Ilha de São Tomé, está há três anos em Portugal. Funcionário da escola garante que o pátio onde os milhares de peregrinos se aprontam para tomar o pequeno-almoço estará tão limpo quanto a casa de cada um.

Está atento aos plásticos, papéis e lixo indiferenciado que ficaram, indevidamente, perdidos na imensa esplanada. “Vim dar uma mão no turno das 6h30 às 15h30/16h00, depois entra outra equipa”, anuncia.

“Os miúdos portam-se bem e quem não o faz, com o tempo e a dinâmica, entra no caminho certo. Temos de ser o exemplo e eles seguem-nos”, assevera o são-tomense que não irá ver o Papa. “Estou só destacado para o trabalho interno”.

Vinda do Gabão, da capital Libreville, uma tímida peregrina acede em falar ao SAPO 24. Prefere não dizer o nome, nem deixar rasto fotográfico. “É a segunda vez em Portugal”, expressa-se em francês. A segunda vez por razões de demonstração da fé católica. “Somos 12 e estamos a dormir aqui na escola”, acrescenta, sem mais detalhes numa conversa monossilábica.

A camisola do Clube de Regatas do Flamengo fazia antecipar alguém vindo do outro lado do Atlântico. Engano geográfico puro. Clubístico também. Duarte Martins veio da planície do interior alentejano, de Évora e não torce pela ex-equipa de Jorge Jesus. Veste a malha preta e encarnada pura e simplesmente porque gosta de futebol e o manto sagrado ao qual partilha fé inabalável mora na segunda circular, em Lisboa. “Sou do Benfica”, remata.

Está integrado num “grupo de 60 pessoas”, dormem “na Josefa de Óbidos” e esta será a “primeira oportunidade para ver o Papa”, confidencia.

Com o receio de ficarmos perdidos na tradução solicitámos à pequena japonesa Ruka Kajihara que nos mostrasse o dístico para fixarmos o nome. Veio de Tóquio,diz-nos. O sorriso estampado no rosto enquanto curva ligeiramente o corpo em agradecimento , uma imagem de marca dos nipónicos. A outra é andarem sempre “em fila indiana”.

Ruka é uma das “35 jovens” (e menos jovens) vindos o Império do Sol Nascente que caminham uns atrás dos outros tal e qual a cauda de um Dragão. A fé católica descobriu-a quando pisou os palcos universitários. Tal como Duarte, é a primeira vez que verá ao vivo o Sumo Pontífice. “A expetativa é falar com gente de todo o mundo e conversar sobre o querem encontrar neste evento”, atira.

“Espero, sobretudo, que os jovens encontrem Jesus aqui”

“Dorota. Escreve-se como se diz!”, exclama esta freira salesiana de naturalidade polaca. A idade nem às paredes dos Salesianos confessa. “Na Polónia, as mulheres não dizem a idade. Não sou jovem..., mas sou muito jovem no interior”, solta uma forte e sonora gargalha enquanto leva a mão ao peito quando a palavra interior acompanhou o forte e rasgado sorriso.

Portugal não é o país em estreia neste longo caminho que escolheu abraçar e o ver de perto o Papa Francisco também não é algo inédito. “Já vi todos os Papas. João Paulo II, muitas vezes quando estive em Itália e na Polónia, Benedito e Francisco”, conta. “Sou salesiana e estive muitas vezes na Itália, onde estudei, agora vivo na Polónia”, acrescenta.

“Espero, sobretudo que os jovens encontrem Jesus aqui. Essas são as minhas expetativas”, professa. “Os jovens são diversos, uns são vizinhos, outros estão mais longe e espero que encontrem nesta grande comunidade, vejam que não estão sós na crença e há muito mais gente que acredita tal como eles. Aqui, à Jornada Mundial, virão muitos que acreditam. E espero que faça ver a todos que podem ficar mais fortes neste momento”, deseja.

Acompanha um “grupo grande de 360 pessoas de diversas comunidades salesianas”. Vieram dividas por seis autocarros, numa viagem de quatro dias com direito a paragem na “terra (região de Piemonte) onde nasceu Dom Bosco”, o Santo dos Jovens. O Santo que também é o desta “internamente jovem” que pede, inclusive, uma selfie com quem a entrevista.

A cor verde e azul da bandeira do Brasil, desta vez, não deu azo a enganos na proveniência de quem a elevava ao alto. Rodrigo é brasileiro de nascença, mas cidadão do mundo na atualidade. “Vivi três meses em Portugal, mas agora vivo em Amesterdão”, conta. Motorista de profissão viajou de avião dos Países-Baixos. Antes de aterrar na escola Josefa de Óbidos, paredes meias com os Salesianos, “estivemos quatro dias a dormir em Évora”, ressalva.

“Vim buscar a minha fé, continuar a minha caminhada, encontrar gente de todo o lado e levar a experiência para os irmãos que ficaram em Amesterdão”, justifica. “É a primeira vez, será a minha primeira missa celebrada pelo Papa. É muito gratificante participar”, finaliza.