De Ciro Gomes, com certeza que muita gente já ouviu falar; anda nestas andanças desde 1983 e, graças às alianças partidárias, já foi ministro de Itamar Franco e de Lula da Silva, até 2010.
Já o cabo Daciolo, de seu nome completo Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos, bombeiro e pastor evangélico, chegou ao noticiário por ter dirigido uma greve da corporação no Rio de Janeiro, em 2011, que lhe valeu um tempo de prisão. Eleito deputado federal em 2014 pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade, fundado em 2004), foi expulso do partido depois de ter proposto a alteração do primeiro parágrafo da Constituição Brasileira de "todo poder emana do povo" para "todo poder emana de Deus". Agora candidata-se por um partido fundado em 2012 e publicamente ligado ao grupo evangélico Assembleia de Deus. No discurso de lançamento da campanha afirmou: “Sou contrário à legalização do aborto e à ideologia de género. Digo sim à família tradicional brasileira, ao patriotismo, ao nacionalismo, ao civismo e ao compromisso com Deus”.
É de salientar que os evangélicos, espalhados por vários partidos, têm 87 deputados e três senadores. Alguns, como Eduardo Cunha ou Magno Malta, são figuras nacionais. Votam na generalidade com as suas legendas (como os brasileiros chamam ao partidos), mas estão unidos nas decisões mais reaccionárias que envolvam direitos procriativos, casamentos do mesmo sexo e liberalização LGBT. Conforme essa agenda, juntam-se tanto aos partidos de esquerda como de direita. Há quem considere que os evangélicos são, a médio prazo, a maior ameaça para a transformação da República laica numa autocracia religiosa. É a primeira vez que concorrem abertamente à Presidência da República. E escolheram este nome, o cabo Daciolo, que faz parecer moderado o candidato da direita militar, Jaír Bolsonaro.
E foi num debate televisivo que Daciolo atirou a Ciro Gomes: ““O senhor é um dos fundadores do Foro de São Paulo. O que pode falar sobre o Plano URSAL? Tem algo a dizer para a nação brasileira?”. Ciro negou imediatamente que tivesse participado no Foro de São Paulo e a conversa prosseguiu, mas o mote apanhou logo as redes sociais, conversas e comentários.
O Foro de São Paulo, criado em 1990 pelo PT, é uma associação de mais de cem partidos e organizações políticas de esquerda dos países da América Latina (Central e do Sul), com o objectivo de derrubar as forças neoliberais e a suposta influência “capitalista e colonialista” dos Estados Unidos.
Na altura, participavam partidos que estavam no poder em certos países bem como partidos que estavam na oposição noutros, e ainda alguns grupos de guerrilha. A proposta era juntar um largo espectro ideológico, dos social democratas aos comunistas, passando pela esquerda cristã e os ambientalistas. Mas desde logo dominou a ideologia marxista, sendo Cuba um dos motores da organização. Desde a fundação já se deram 23 encontros do Foro em diferentes países, mas a esperança inicial de que o sub-continente seria totalmente de esquerda foi-se esvaziando, à medida que os governos simpatizantes caiam e as oposições não chegavam ao poder.
Claro que o Foro foi imediatamente criticado pela direita e pelos liberais como sendo uma organização opaca que visava um controle supranacional da política, limitando a soberania dos países e integrando a América Latina sob uma ideologia comunista.
A URSAL seria um projecto do Foro: a criação de uma União das Repúblicas Socialistas da América Latina, no modelo do antigo Bloco Soviético, para a criação de uma “Pátria grande comunista”. No entanto os ventos mudaram com a morte de Fidel de Castro e Hugo Chavez, a queda de Lula e Dilma e as eleições de governos liberais em vários países. Neste momento, da esquerda radical só restou a Bolívia de Evo Morales, a Venezuela em estado comatoso, e Cuba, em transição periclitante para uma economia de mercado. Cuba ainda manda na Venezuela, mas no Brasil o PT está mais ocupado a lutar pela sua existência do que a pensar em blocos continentais.
A URSAL, se tivesse existido, estaria agora morta em combate. Mas isso não interessa; para as direitas – que são várias – o conceito é excelente para assustar os eleitores burgueses ou a sonhar em sê-lo.
De nada adiantou que, no dia seguinte ao debate, a socióloga Maria Lúcia Victor Barbosa tenha vindo a público, na “Folha de São Paulo” declarar que foi ela que inventou o termo, em 2001, como uma sátira ao encontro do Foro em Havana. Lula fez um discurso a afirmar que a Área Livre de Comércio das Américas, ALCA, era um projecto imposto pelos Estados Unidos, sob a desculpa do livre comércio, para continuar a dominar o sub-continente. Maria Lúcia escreveu então: “Mas qual seria, me pergunto, essa tal integração no modelo Castro-Chávez-Lula? Quem sabe, a criação da União das Republiquetas Socialistas da América Latina (URSAL)?”.
Mas de nada adiantou esta explicação. A Internet explodiu com comentários e piadas .Surgiu até uma página no Facebook que já conta com setenta mil membros.
A URSAL, tivesse existido, não seria um projecto ilegítimo. A America Latina ainda não esqueceu o longo período, a partir da doutrina Monroe (“A América para os americanos”, 1823) em que os Estados Unidos consideravam o sub-continente como uma colónia a explorar. Entretanto os norte-americanos passaram a ter outras preocupações estratégicas, mas os ressentimentos ainda são profundos. Um projecto socialista – não necessariamente comunista – ainda é visto por muitos intelectuais, brasileiros e não só, como uma alternativa viável ao “imperialismo norte-americano”.
Mas se a verdadeira URSAL existiu ou não, já não interessa. Agora, existe. Como arma de arremesso da direita.
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