Cerca de um mês após o início da vacinação na Europa, países e farmacêuticas debatem-se em jogos entre a escassez e a necessidade de vacinar a população. Numa altura em que se preveem até dez semanas de escassez das vacinas dos vários laboratórios a que a União Europeia fez encomendas, importa olhar para as empresas, as fórmulas, os planos de administração e possíveis atalhos ao estrangulamento na produção.

Pfizer, Moderna, AstraZeneca… O que é isto?

São alguns dos vários laboratórios que se lançaram na produção de vacinas contra a covid-19.A União Europeia, de que Portugal faz parte, já assinou contratos com seis destes laboratórios: BioNTech/Pfizer (Alemanha e Estados Unidos), Moderna (Estados Unidos), AstraZeneca (Suécia e Reino Unido), Curevac (Alemanha), Janssen (Estados Unidos) e Sanofi/GSK (França e Reino Unido).

Destes seis contratos, apenas apenas as vacinas dos dois primeiros — BioNTech/Pfizer e Moderna — foram já aprovadas pela Agência Europeia para o Medicamento (EMA, na sigla inglesa), estando a ser administradas em Portugal. Debaixo de polémica está a da AstraZeneca, depois de a empresa ter anunciado reduções na produção europeia.

As vacinas são todas iguais?

Não. Cada laboratório desenvolveu as suas próprias fórmulas e cada uma delas exige diferentes condições de administração, transporte e conservação das doses.

Apesar de as fórmulas e métodos de produção não estarem a ser partilhados entre empresas, há pelo menos um exemplo de colaboração para aumentar o ritmo de produção: a Sanofi vai enfrascar e acondicionar as vacinas contra a covid-19 dos seus concorrentes Pfizer e BioNTech.

Sem ter ainda uma vacina própria, o laboratório vai ajudar a embalar mais de 100 milhões de doses da rival norte-americana, destinadas à União Europeia, após o governo francês lhe ter pedido, várias vezes, para disponibilizar as suas linhas de produção aos concorrentes.

Numa entrevista ao jornal Le Figaro, Paul Hudson explicou que a Sanofi vai utilizar a sua fábrica na Alemanha, em Frankfurt, para embalar a vacina que lhe será fornecida pela Pfizer e BioNTech a partir de julho.

Primeira dose, segunda dose?

Dos seis contratos de fornecimento da UE, apenas a vacina de um dos laboratórios exclui a necessidade de duas tomas da vacina para o tratamento eficaz. Após a primeira dose da vacina, a pessoa tem de levar, num determinado espaço de tempo, uma segunda inoculação.

Assim, tendo em conta os prazos de cada vacina, é necessário garantir que quem toma a primeira dose tem depois a mesma vacina disponível para a segunda toma, sob pena de inviabilizar o tratamento.

Mas e os efeitos secundários?

“Não foi identificada qualquer preocupação específica de segurança para a utilização de vacinas em indivíduos idosos frágeis”, segundo um comunicado da EMA, no qual é sublinhado que “os benefícios da Comirnaty, a vacina da BioNTech/Pfizer na prevenção da covid-19 continuam a superar quaisquer riscos, não sendo recomendada qualquer alteração sobre a utilização da vacina”.

O regulador europeu dos medicamentos afirmou numa declaração que tinha revisto as mortes desde que a vacina foi lançada pela primeira vez, incluindo uma série de idosos, e "concluiu que os dados não mostravam uma ligação com a vacinação Comirnaty e que os casos não suscitam preocupações de segurança".

Na sua primeira atualização sobre a segurança da vacina da Pfizer/BioNTech desde que a União Europeia (UE) iniciou a sua campanha de vacinação em dezembro, a EMA concluiu que os dados "são consistentes com o perfil de segurança conhecido da vacina e não foram identificados novos efeitos secundários".

O efeito secundário já identificado é o de uma reação alérgica à vacina.

Em Portugal, foram notificados 1.332 casos de reações adversas. Francisco Ramos, o coordenador do grupo de trabalho que está a implementar o plano de vacinação no país, considera que “não houve até hoje nenhuma notificação de reações que não estivesse prevista” na vacina e que o valor de 0,65 reações adversas por 100 vacinados “está em linha com os dados provisórios que são conhecidos do resto da Europa”.

O que se passa com as doses na Europa?

A União Europeia enfrenta uma quebra no fornecimento de vacinas para a covid-19, depois de ter assinado contratos para a compra antecipada de vacinas, num total de 2,3 mil milhões de doses.

A AstraZeneca/Oxford anunciou que pretende entregar doses consideravelmente menores, nas próximas semanas, do que acordado com a União Europeia, alegando problemas de produção, o que Bruxelas considera ser uma possível violação do contrato.

Em agosto de 2020, a Comissão Europeia assinou um contrato — orçado em 336 milhões de euros — com a AstraZeneca para aquisição de 300 milhões de doses da vacina contra a covid-19 produzida em colaboração com a universidade de Oxford, com uma opção de mais 100 milhões de doses.

Este foi o primeiro contrato assinado por Bruxelas com uma farmacêutica para aquisição de vacinas contra a covid-19. Além da UE, a AstraZeneca é uma das maiores fornecedoras de vacinas contra a covid-19 no Reino Unido (antigo Estado-membro) e nos Estados Unidos, por exemplo.

O Governo alemão estimou esta semana que a atual escassez de vacinas para a covid-19 se possa prolongar por dez semanas, um período “duro” para a população, mas garantiu que está à procura de soluções à escala nacional e europeia.

Já a 15 de janeiro, a Pfizer tinha também anunciado uma redução temporária na entrega de doses de vacina, mas com o objetivo de aumentar a capacidade de produção.

Como se resolve isto?

As autoridades belgas inspecionaram na quarta-feira as instalações da Novasep, em Seneffe, que integram a cadeia de produção europeia da vacina para a covid-19 da AstraZeneca, para averiguar se há efetivamente um problema de produção da vacina.

Saudando a iniciativa da Comissão Europeia de avançar para um mecanismo de controlo das exportações a partir da UE de vacinas para a covid-19, para garantir que as doses destinadas aos Estados-membros não são indevidamente enviadas para outros destinos, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, disse no dia 28 de janeiro que apoia “todos os esforços para resolver esta questão com as empresas através de diálogo e negociação”, mas defende que a União deve preparar-se também para seguir a via litigiosa.

“Se não for encontrada uma solução satisfatória, acredito que devemos explorar todas as opções e fazer uso de todos os meios legais e medidas coercivas à nossa disposição ao abrigo dos Tratados”, escreve o presidente do Conselho Europeu numa carta de resposta a quatro chefes de Estado e de Governo da União Europeia.

Charles Michel especifica mesmo na missiva que, “se for considerado politicamente oportuno, tal poderia incluir um possível recurso ao artigo 122.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia”, o que “daria à UE e aos Estados-Membros os meios legais, através da adoção de medidas urgentes adequadas, para assegurar a produção e o fornecimento eficazes de vacinas” à população europeia.

Como é que isto afeta a vacinação em Portugal?

O coordenador do plano português de vacinação contra a covid-19 admitiu na quinta-feira que a chegada a tempo das doses da AstraZeneca é necessária para o cumprimento da primeira fase de vacinação no calendário previsto.

“Aquilo que temos garantido são 2.214.000 doses a receber até final de março. Para atingir este objetivo vamos precisar de 1.642.000 doses para vacinar por completo 800 mil pessoas e 520 mil para iniciar a vacinação. É possível atingir este objetivo com as doses que temos contratadas com a Pfizer, a Moderna e na expectativa de que a vacina da AstraZeneca seja aprovada”, disse Francisco Ramos, assumindo que a aprovação possa ocorrer esta sexta-feira pela Agência Europeia do Medicamento (EMA).

Portugal tem já contratualizado um total de 29 milhões de vacinas para o combate à pandemia, mas a falta de doses continua a ser um problema: “O nosso principal obstáculo é a escassez de vacinas e até isso ser ultrapassado é prematuro estar a falar do alargamento da rede de centros de vacinação”, disse Francisco Ramos.

Mas a 23 de janeiro, Francisco Ramos garantia que o atraso da vacina AstraZeneca/Oxford não comprometerá a primeira fase do plano português, mas não permitirá antecipá-lo, admitindo uma quebra de 50% do esperado.

“Estamos a falar de um atraso superior a 50% daquilo que estava programado [a nível europeu], o que no caso português significaria em vez de 1,4 milhões de doses previstas para fevereiro e março, receber 700 mil doses [da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford com a farmacêutica AstraZeneca]. Ainda é possível que esse número seja revisto em alta. Será discutido na próxima semana a nível europeu”, referiu Francisco Ramos.

Em declarações à agência Lusa, o coordenador da ‘taskforce’ do Plano de Vacinação da covid-19 admitiu “um percalço” com o que era esperado, apontando que “a Astrazeneca, de facto, está com dificuldades em cumprir o calendário de produção”, tendo proposto “nos últimos dias, uma redução muito acentuada de entregas para os próximos dois meses”.

“De qualquer forma, para Portugal, esse número permite-nos cumprir o Plano Nacional da forma como estava delineado, terminando a vacinação das pessoas incluídas na fase um até abril. O que não vai permitir é a antecipação para março”, acrescentou o responsável.

Quem é Francisco Ramos?

Ex-secretário de Estado da Saúde e atualmente coordenador do grupo de trabalho para o plano de vacinação contra a covid-19, Francisco Ramos é licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (1978) e diplomado em Administração Hospitalar pela Escola Nacional de Saúde Pública (1981).

Passou por cinco governos socialistas entre 1997 e 2019 e em 1997 foi subdiretor-geral da Saúde. É um economista de saúde, especializado em organização, gestão e financiamento de serviços de saúde, em avaliação económica de programas e tecnologias de saúde e em políticas e administração de sistemas de saúde, segundo a nota disponível no portal do primeiro governo de António Costa.

Como estão as contas neste momento em Portugal?

Portugal já recebeu 367.770 vacinas da Pfizer/BioNTech e 8.400 da Moderna até ao momento, existindo 74.000 pessoas já com a vacinação completa. Entre estes, 57.500 são profissionais de saúde do Serviço Nacional de Saúde e 1.800 outros profissionais de saúde.

Até março deverão ter sido vacinados cerca de 100 mil profissionais de saúde (90 mil já com as duas tomas), 50 mil do setor privado e social (30 mil com vacinação completa), 41 mil profissionais prioritários, como forças armadas e bombeiros (21 mil com as duas tomas) e 200 mil utentes e profissionais com vacinação completa dos estabelecimentos residenciais para idosos (ERPI) e da rede nacional de cuidados continuados integrados (RNCCI).

Segundo o plano, 600 mil pessoas com idade entre 50 e 79 anos e uma das comorbilidades identificadas como de risco na covid-19 já terão iniciado a vacinação até março, mas apenas 300 mil já com as duas tomas da vacina.

Nesse sentido, o plano de vacinação deve contar a partir da próxima semana com pelo menos um ponto de vacinação em cada agrupamento de centro de saúde (ACES) e o objetivo, segundo Francisco Ramos, é ter até ao início de março um ponto de vacinação por concelho.

Podiam ser os laboratórios do Exército a produzir a vacina?

O diploma legal que criou o Laboratório Nacional do Medicamento, no ano passado, prevê a possibilidade de produzir vacinas. Porém, como explicou a porta-voz do Exército ao SAPO24, “desconhecendo-se as fórmulas, a complexidade e variedade dos processos de fabrico, não é possível responder à questão”.

Atualmente, com um efetivo de 95 pessoas — entre a sede em Lisboa e as sete farmácias militares espalhadas pelo país —, o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos tem a capacidade de produzir “diversas formas farmacêuticas, nomeadamente, comprimidos, cápsulas, xaropes, soluções, pomadas, cremes, estéreis, entre outros”, adianta a tenente-coronel Ana Silva.

Mas os militares não produzem apenas medicamentos: no contexto da atual pandemia de covid-19, estão também a produzir uma solução antissética de base alcoólica (SABA) e o descontaminante usado pelas equipas de descontaminação do Exército. Para além disso, produzem ainda coisas como a solução oral de cloridrato de metadona (usada no tratamento de dependências) ou isoniazida (para o tratamento da tuberculose).

As instalações de produção situam-se na sede do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, local onde existe espaço de expansão em caso de necessidade. No departamento de produção estão 13 pessoas e 12 no laboratório de controle de qualidade, que garante a qualidade de todos os produtos produzidos.

O que falta saber sobre vacinas?

Enquanto os países ricos se debatem com o desvio de doses, comprando vacinas suficientes para mais do que a sua própria população, os países pobres não conseguem competir. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, apelou hoje, depois de ser vacinado para a Covid-19 em Nova Iorque, a que “todos, em qualquer lugar”, tenham acesso à vacinação.

Numa mensagem divulgada através da rede social Twitter, Guterres afirmou-se “agradecido” e “afortunado” pela vacinação, acrescentando que é necessário “trabalhar para assegurar que a vacina esteja disponível para todos, em qualquer lugar”.

Numa altura em que se contam mais de 2,1 milhões de mortes em todo o mundo devido ao novo coronavírus, o antigo primeiro-ministro português destacou que o acesso à vacina, "um bem público global", é fundamental, nomeadamente através da plataforma internacional Covax.

Ainda sobre o combate à pandemia, Guterres recomendou a priorização de trabalhadores de saúde e pessoas de risco, proteção dos sistemas de saúde em países pobres, assegurar fornecimento e justa distribuição das vacinas através da plataforma Covax, partilha dos excessos de dose de vacinas na Covax, mais licenciamento para aumento do fabrico de vacinas e fortalecimento da confiança pública nas vacinas.

Falta, então, saber que alternativas as farmacêuticas dão para o aumento da produção. Tendo a descoberta das vacinas sido amplamente por dinheiros públicos, a propriedade intelectual das soluções pode também ser questionada. Para erradicar a doença, ou controlá-la, seria necessário um vasto programa de imunização por todo o planeta, sob pena de surtos locais poderem ter consequências globais, nomeadamente com novas variantes do vírus.

Isto poderia permitir, por exemplo, que as Forças Armadas portugueses percebessem se são de facto capazes de produzir alguma destas vacinas nos laboratórios militares.

*Com Lusa