9h00, 12 de junho. Segundo dia do Campeonato Nacional de Cruzeiros ORC que decorre até domingo, 14, no arquipélago da Madeira. Saída do hotel Vila Baleira com destino para a marina do Porto Santo. Skippers, velejadores, uns muito jovens, outros nem tanto, vindos de Espanha, Açores, Portugal Continental e da Madeira, assim como elementos da comissão de regata e balizadores (responsáveis por colocar as boias no campo de regata) confluem, a conta-gotas, para a zona do Porto.

Uns despacham malas pelo barco que faz a travessia Porto Santo - Madeira e que chegará no dia seguinte (1h30) ao Funchal. Outros, a maior parte, como formigas, fazem um “vai e vem” entre as instalações do Clube de Vela do Porto Santo e as embarcações, transportando sacos e mochilas, soltando “bons dias” a cada centímetro de terra palmilhado ou nas plataformas, onde se cruzam, ombro com ombro.

Tudo decorre enquanto tem lugar a rápida reunião (9h30) onde só entram skippers. Júri e comissão de regatas sentados numa mesa e 23 homens do leme espalhados pelas cadeiras à sua frente. Circulam papéis, são dadas indicações e tidas discussões para o longo dia que os espera nesta travessia de 42,5 milhas náuticas entre o Porto Santo e o Funchal. Um percurso com passagem pelas Desertas (para onde seguiu uma boia por bote) e fim de regata (outra boia) na marina da Quinta do Lorde, na Ponta de São Lourenço. Os barcos atracarão na Marina do Funchal.

Primeiro sinal de partida e os velejadores encaminham-se para os barcos. São feitas as pesagens (por sorteio) dos tripulantes e as inspeções às embarcações. É tudo uma questão de peso e de material que influirá, depois, na classificação final.

O início da regata está inicialmente marcado para as 11h30.

Recordações de um mestre que liga um pescador em horas vagas de Porto Santo a um alentejano que vive no Funchal

Sentado no barco, na posição de leme, está Diamantino. 66 anos, “nascido a 13 de maio, a uma sexta-feira”, indica este porto-santense e não madeirense. “Nasci no Porto Santo. Não sou madeirense”, vinca com sotaque... de Porto Santo (quem escreve não distingue, mas quem vive nas ilhas diz que há). E esta linha, que não é imaginária, entre Porto Santo e Madeira, está bem presente. Duas ilhas que, contam muitos ilhéus, têm a mesma relação uns com os outros que têm com o mar: de costas voltadas.

Já o conhecíamos. Na véspera tinha aberto as portas de sua casa, no centro, perto da casa-museu Cristóvão Colombo, a parte da tripulação do Ayé a quem presenteou três travessas de pargos e garoupa, regadas generosamente com vinho branco, terminando com uma sobremesa composta por uvas e melão (nós viríamos a acrescentar, já no centro da cidade, o famoso gelado Lambecas).

De regresso ao barco, Diamantino não é homem de ficar calado. Troca memórias com Vasco, 43 anos, alentejano de Beja, que estudou no Algarve e que se mudou para a Madeira, em 2012. Um Mestre da construção naval, algarvio, que morreu no ano passado, com 92 anos, e com quem, ambos, em diferentes períodos de vida, tiveram contacto, foi tema da viagem ao passado. O mar tem destas coincidências.

Mestre Germano era o homem de quem se falava. Natural de Castro Marim, das suas mãos com a quarta classe saíram verdadeiras obras-primas náuticas, com destaque para o pioneirismo de construção de barcos em fibra. “Fez o meu barco”, recorda Diamantino. “E dele desenhou o molde para outros quatro”, frisa. “Agarrava num cartão e fazia aquilo tudo perfeitinho, com uma perfeição única (ler com sotaque, não esquecer). Maquetes perfeitas”. O tal barco, foi feito “há mais de 20 anos. Foi a primeira traineira em fibra na Madeira, tinha 13 metros”, conta este pescador em horas vagas, “há mais de 30” anos.

Vasco interrompe as memórias alheias e acrescenta as suas, não sem antes ambos terem viajado pelo curriculum do Mestre que passou por Espanha e França. Conhecia-o do Algarve, onde este alentejano, natural de Beja, estudou, e que também era o local eleito para férias. “Ia para Altura”, desvenda. “Fiz cursos de formação em construção naval com ele”, relembra. “Andava sempre com um álbum de fotografias” que serviam de testemunho da sua vida. Uma vida que também ficou conhecida noutras artes. “Fez parte da equipa do Lusitano de Vila Real de Santo António (ao lado de José Maria Pedroto), que esteve na 1ª divisão e, uma vez, mostrou-me uma fotografia do jogo contra o Benfica”, relatou este algarvio que “desde 2012 vive e trabalha” na Madeira.

Conversa interrompida com a chegada de Sérgio Jesus, presidente da Associação Regional de Vela da Madeira, skipper da embarcação com oito tripulantes; João, o benjamim, 15 anos, que já lá estava encostado a dormir, embalado pela ligeiríssima elevação das ondas, a quem chamam o “meia-pensão” (nome que deriva do facto de aproveitar cada minuto que pode para fechar os olhos); Tomás, uma espécie de faz tudo a bordo, ora está no leme, ora na proa, solta e arruma velas e orça; Luís, que é descrito como “malta mais antiga” e que foi “master do barco Quebramar”, na Madeira e Andrew, um madeirense de ascendência inglesa que andou num “colégio interno” durante a infância e cuja paixão pelos barcos lhe abriu as portas da vida.

“Olha a esteira direita ... aproveita para caçar mais um pouco”

Sérgio coloca-se à popa. É o lugar de honra. O barco tem dois lemes e três bandeiras. A bandeira de Portugal e da prova e, ao meio, ao alto, a da Madeira. Primeira explicação do itinerário. “Vamos para as Desertas e envolve bolina”.

Às 10h55 saída do Porto do Porto Santo. Motor ligado. Oito minutos depois ouve-se: “vela grande”, avisa Sérgio. “Olha a esteira direita... aproveita para caçar mais um pouco”, continua. “13 nós”. É o vento ao largo enquanto as embarcações serpenteiam umas pelas outras, para baixo e para cima, à espera do momento da largada.

Uma embarcação pede autorização para utilizar uma Go Pro. “Negado”, escuta-se no sinal onde estão todos sintonizados. Argumento: teria de avisar em terra.

Às 11h30 é escutada a informação que será “lançada a primeira baliza em 15 minutos”. Os momentos que antecedem a largada são sempre “de tensão”, descreve Sérgio. “Não é o que vai na minha cabeça, mas saber a que vai nos outros”, diz.

Ao contrário da regata ao largo do Porto Santo, esta não foi feita com as equipas umas em cima das outras em que o silêncio é súbita e abruptamente interrompido pelo manuseamento de cabos e velas, e uma gritaria, em especial pelo homem da proa, para evitar que os barcos choquem. Um “empata beijos”. É a forma que podemos descrever a leigos sobre o papel da figura que vai à frente do barco.

“1m40s é uma eternidade”, solta Sérgio quando avisa o resto da tripulação sobre o que lhes resta antes de largarem. Um minuto depois do meio-dia, largam todos após o som de “4,3,2 e 1 ...”, em que a buzina substitui o “partida”.

“Folga a genoa”, ouve-se. “Solta a escota”...“vem aí vento, vem aí vento...”, avisa Vasco, um aviso que só termina quanto sentimos o vento em cima. “Vai entrar rajada ...”, continua o proa Vasco que segue, em pé, a meio do barco, agarrado a um cabo.

“Vamos cambar”. Sérgio dá o sinal de aviso. É chegada a hora de animação que, numa regata curta, é feita em forma repetida, mas que aqui, aconteceu meia dúzia de vezes. Basicamente, serve para mudar direção, a vela passa de um lado para o outro, assim como toda tripulação, para distribuir o peso. Ora trepamos para um lado do barco, ora deslizamos, de rabo, para outro. E sempre de cabeça baixa para evitar sermos atropelados pela retranca. Quando já estamos num dos lados, colocamos os pés de fora, passamos a cabeça por entre dois cabos que ladeiam toda embarcação (imagine que está a entrar num ringue) e projetamos os braços como se quiséssemos tocar com as mãos nos pés.

“A Madeira está já ali"

Momento de “solta o balão”. Ganhamos gás e seguimos com o Porto Santo nas costas.

Quase uma hora depois da largada (o relógio marcava as 12h50), Sérgio diz, em jeito de esperança, que “a Madeira está já ali”, um “ali” que não é daqui a nada. Apesar de perto do olhar, está longe para os pés pisarem a terra. Vamos em direção às Desertas.

Passou uma hora desde o aviso de terra à vista. O percurso não é uma linha reta. Esta autoestrada náutica vai-se percorrendo com alguma parcimónia aliada a uma atenção a todos os detalhes que não dão descanso. Por causa do vento, rajada ou vagas. “Quem vai para mar avia-se em terra”, é uma máxima levada à risca. Momento para uma refeição volante em que come quem vai tendo as mãos livres, à vez. Diamantino assumiu as lides culinárias. Do menu consta bolo do caco (o melhor do Porto Santo, dizem) com moreia e gaiado, uma espécie de atum. “A moreia esteve a marinar 24 horas em vinagre e vinho branco. Tem umas ligeiras espinhas. O gaiado é um peixe seco”, detalha. Há quem repita, há quem só coma na segunda ronda e quem simplesmente não toque, porque não podia. E não queria.

Grande parte deste percurso é feito ao lado do Bombay. Demasiado à frente seguem velas de diversas cores. Para trás, outros barcos e ao largo, muito distante, mais três. Um cargueiro intromete-se no quadro. Dobragem na boia das Desertas. Mar picado (mais tarde, como veremos, quem por lá andou de bote, e fez a travessia toda dessa forma, acusou o desgaste do sobe e desce marítimo).

Barcos com nariz apontado à marina da Quinta do Lorde, na Ponta de São Lourenço. “Olha a escota”, “caça”, orça e “folga” instruções que entram em ação. João obedece. Em ação entrará, a partir de então, a componente estratégica. Objetivo era passar quem ia ao nosso lado. Enquanto eles apontaram mais a terra, para subirem até à boia, a equipa do Ayé faz mudanças de direção até entrar de frente na baliza junto do Resort. “Estamos a 9.9, estamos a 10.1”, sai da boca de Tomás, entretanto ao leme.

Segue-se um momento. Encontro com roazes que mostram os dotes de navegação.

“Peixe não vem à cama ... temos que levantar cedo”

Meta cortada. 6h32,21 após a buzina escutada em Porto Santo ouvimos o anúncio da hora de chegada (18h33m21s). Altura de desanuviar. Com o barco a mover-se, agora, também com a ajuda do motor, além da vela grande, regressa a conversa.

Diamantino toma as rédeas. Para falar sobre peixes. “O mar quer a quem lhe dê”, anuncia a seco. Fala de marés, luas cheias e novas, em que estas últimas não são boas para “a pescaria”. Compara o peixe a “vacas na pastagem”, se elas comem inclinadas ele escolhe locais que nascem “nas ravinas” porque sabe que ali “há peixe”.

Aos lamentos de que não se consegue pescar responde que o “peixe não vem à cama ... temos que levantar cedo”, sublinha. Por isso, aconselha a sair pelas “manhãs” e pelas “tardes”. Exibe uma medalha de pescarias recentes. “Apanhei um pargo de 17, 5kg. Tenho a fotografia em casa”, anuncia. Discorre os locais por onde anda, das Desertas às Selvagens, passando pelo Caniçal ou São Lourenço. E recomenda um prato para apreciadores: “bicuda com arroz malandrinho”.

O apetite é saciado com queijo, batatas fritas e bolachas de chocolate. Mesmo sem tarefas em mãos, o jovem Tomás, que está preste a entrar para a faculdade, não leva nada à boca. “Não tenho fome”, diz. Aproveita e arranja dois gins para o Andrew (trimmer) e para o Luís, o tal que foi dando uma ajuda aqui e a acolá. O João aproveita para dormir desde o caminho em frente ao aeroporto até ao Funchal, que em horas de água se traduzem em quase tantas como as de uma travessia aérea até Lisboa.

Entrada na Marina à frente do Bombay. Barco limpo e malas retiradas, hora de descansar a alma e alimentar o corpo. Diamantino, já em terra, soltou amarras. Perante o relatório de desconforto muscular por parte de quem tinha feito a travessia de bote atirou à passagem de uma senhora vestida de branco. “Está aqui a solução. Está de branco, ou é enfermeira ou é massagista”, atirou, seguindo-se uma sonora gargalhada.