Pouco passava das 19h55 quando Bruno Ferreira, 41 anos, chegou à sede dos Paramédicos de Catástrofe Internacional, na Pontinha, Odivelas. O chefe de missão recebe-nos neste antigo quartel de bombeiros de sorriso no rosto. São os jornalistas? Acenamos, somos. “Bem-vindos”, vou abrir.
Presidente e fundador desta Instituição Particular de Solidariedade Social, Bruno é o primeiro a chegar ao ponto de encontro. É o paramédico da missão. Dali sairá uma equipa de quatro pessoas apoiadas por duas viaturas rumo a Mação, uma de suporte imediato de vida, outra de cuidados intensivos e triagem. Jorge Santos chega pouco depois, seguem-se Ana Santos e António de Sousa. Em Mação, à equipa irá juntar-se Jorge Pedro, e as enfermeiras Luísa de Matos e Carla Dias.
"Onde está o rádio? Vamos lá embora!”. As ordens são de António de Sousa, vice-presidente da organização não-governamental. São cerca de duas horas de caminho, não há tempo a perder e a azáfama é grande.
Os Paramédicos de Catástrofe Internacional, fundados há 12 anos, estão presentes em 18 países. Em Lisboa, contam já com 350 voluntários. Em Coimbra, são 99 e a próxima delegação é para sul, rumo ao Algarve. A nível global são cerca de 500 mil pessoas, diz-nos Bruno.
Mas é Mação que nos preocupa. Como será quando chegarmos lá? Questionamos. Apesar da ida ter sido autorizada pela autarquia, uma vez no local esta equipa ficará à disposição do comando central, que coordena as operações no terreno.
“O que faz confusão é que existam tantas organizações da sociedade civil e não exista ainda uma plataforma eficaz de coordenação, já que trabalhamos todos para o mesmo, mas com diferentes valências”, lamenta Bruno, fazendo referência, porém, à portaria publicada em março deste ano, “que ainda não tem efeitos práticos”, mas que visa reconhecer estas organizações de voluntariado de proteção civil e coordenar a sua atuação com as restantes entidades.
E, hoje, como funciona essa articulação? Existem rivalidades, Bruno não o esconde, sobretudo entre entidades que prestem o mesmo tipo de serviços, mas ressalva que “aqui o que faz a diferença é estar alguém disponível para pegar num idoso ao colo e levá-lo para um local onde esteja seguro e possa respirar, por exemplo”. A ajuda é bem-vinda, mesmo que isso implique ficar longe do fogo a fazer sobretudo um trabalho de suporte à população.
Com o incêndio em Pedrógão Grande - que custou a vida a pelo menos 64 pessoas - ainda bem presente na memória, a culpa não quer - e não pode - morrer solteira. “A culpa [dos incêndios] é de todos. De quem multa, de quem fiscaliza… Se todos fizessem o seu papel seria mais fácil”, desabafa Bruno Ferreira. Há uma responsabilidade partilhada na tragédia, diz-nos. Câmaras, forças de segurança e privados têm uma função. A culpa tem muitos donos.
Operacionais fardados, boinas colocadas, cinto apertado. A partida para Mação acontece pelas 21h30. Não vamos sós, várias ambulâncias seguem na mesma direção e, confirmamos mais tarde, rumo ao mesmo destino.
São 23h36 e a A23 continua cortada ao trânsito. Apenas os serviços de emergência passam. Os paramédicos não são exceção e escassos minutos depois estamos a entrar em Mação. É chuva? Não, é cinza. O tom alaranjado no céu e o cheiro a queimado denunciam o fogo que lavra e que por esta altura já destruiu cinco habitações e obrigou a retirar 200 pessoas das aldeias do concelho, metade das quais teve autorização para voltar a casa. Aqueles que permanecem retidos estão instalados na Santa Casa da Misericórdia de Mação.
O balanço é transmitido por Vasco Estrela, presidente da autarquia. “Quando teremos este fogo dominado?”, pergunta uma jornalista. Estrela não arrisca previsões. O rosto cansado pede prudência na avaliação. O discurso, duro, reitera que o Interior não pode ficar esquecido e fala de problemas sistemáticos.
"Ou há falta de meios, ou, de facto, o incêndio está a evoluir de uma maneira tal que é impossível controlar tudo, ou então alguém tem que responder sobre o que está aqui a acontecer, porque é sistemático. Recebemos informação de que há aldeias para evacuar, sem ninguém no local, chega a GNR, chegam os meios da Câmara Municipal, chegam eventualmente ambulâncias para trazer as pessoas, e os bombeiros, coitados, alguns aparecem lá já quando as coisas estão mais complicadas".
Também ele, à sua maneira, nos vai dizendo que a culpa tem muitos donos.
Já passa da 00h30. Entre entrevistas, Vasco Estrela recebe atualizações sobre os desenvolvimentos no terreno.
As boas notícias são “raras”, diz. "Os acontecimentos sucedem-se a uma velocidade vertiginosa" e já existe um "cansaço extremo dos operacionais".
"Estamos a tentar retirar as pessoas dos locais de perigo, pô-las em segurança e depois tentar de alguma forma preservar os seus bens. É isso que tem sido o esforço feito, os bombeiros têm sido incansáveis, uma vez que estão aqui no terreno no sentido de tentar resolver os problemas que vão surgindo."
Até agora, "arderam cinco casas de primeira habitação, para além de casas devolutas, barracões, infraestruturas elétricas e viaturas, com prejuízos não calculados, e mais de 10 mil hectares de floresta, muita área de regeneração natural do incêndio de 2003", disse.
A declaração assume depois um tom de desabafo.
"Quando estávamos a recuperar o nosso verde horizonte, quando havia uma vez mais esperança da população deste concelho na floresta, na nossa maior riqueza, esta é uma machadada enorme que o concelho está a sofrer", salientou o autarca.
"E o dia tem sido isto", resumiu. "Tentar retirar as muitas pessoas das suas casas, muitas delas onde viveram toda a vida para que seja possível salvar as suas vidas. O inferno tem sido este, onde o fogo chega às aldeias sem qualquer aviso, sem qualquer bombeiro no local”.
“Vamos sempre a correr atrás do incêndio (…) e andamos nisto há mais de 24 horas”.
O lamento é sina proferida pelo autarca. A sina de bombeiros, paramédicos, médicos, enfermeiros, tropa, políticos. A sina de um Portugal que continua "a correr atrás do incêndio”.
Comentários