“Nós vamos deixar-te a sofrer”. Estas palavras foram proferidas por um soldado, que as dirigiu a um homem que sobreviveu a um ataque levado a cabo pelas forças do Governo do Sudão do Sul, em Tharuop. A sua esposa tinha sido espancada e alvejada. Foi acusada de ser a mãe de um rebelde.
Este depoimento é apenas um entre dezenas de relatos recolhidos pelo Gabinete dos Direitos Humanos da ONU, por uma equipa que esteve no terreno, entre outubro de 2015 e janeiro de 2016.
“A maioria das pessoas com quem falámos, as vítimas, e testemunhas em primeira mão, têm sido sujeitas a situações traumáticas desde que o conflito começou”, pode ler-se no relatório, que acrescenta que “no entanto, eles eram muito resilientes e ansiosos por poderem partilhar as suas histórias para que o mundo tenha conhecimento do que se está a passar”.
Depois de se ter tornado independente do Sudão, em julho de 2011, o clima de tensão no Sudão do Sul tem vindo a subir de tom, após décadas de conflito com Cartum, que está em guerra civil desde dezembro de 2013, quando o Presidente Salva Kiir acusou o seu antigo vice-presidente, Riek Machar, de organizar um golpe de Estado.
O relatório denuncia que, apesar de todas as partes envolvidas no conflito terem padrões de violência graves e sistemáticas, as entidades governamentais têm superado em muito o número de atos de violência, com o enfraquecimento das forças da oposição ao longo de 2015, levando a uma cultura de impunidade, medo e a um ciclo de vingança.
A escalada da violência sexual é preocupante. Entre abril e setembro de 2015, a ONU registou mais de 1.300 relatos de violação em apenas um dos dez estados do Sudão do Sul. O mais chocante: é o próprio Governo que autoriza a violação de mulheres, como forma de salário, sob o princípio "faça o que pode e leve o que quiser". Mas se os soldados do exército têm autorização do Governo, as milícias armadas também o fazem.
“Trata-se de uma situação de direitos humanos entre os mais horríveis no mundo, com uma utilização em massa de violações como instrumento de terror e como arma de guerra”, declarou o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein.
“A escala e o tipo de violência sexual - que são principalmente feito das forças governamentais (Exército de Libertação do Povo do Sudão) e as milícias afiliadas - são descritos com detalhes terríveis e devastadoras, como a atitude - quase casual, mas calculada - daqueles que massacraram civis e destruíram propriedades e meios de subsistência", acrescentou.
Desde o início da crise política no país, em dezembro de 2013, mais de 2,3 milhões de pessoas foram expulsas das suas casas e dezenas de milhares foram mortas pela guerra. O relatório revela testemunhos sobre civis, que eram suspeitos de apoiar a oposição, incluindo crianças e pessoas com deficiência, que foram assassinados, queimados vivos, sufocados em contentores, mortos a tiro, pendurados nas árvores ou cortados em pedaços.
“Dada a amplitude, profundidade e gravidade das alegações, consistência, repetição e semelhanças observadas no procedimento, o relatório concluiu que há motivos razoáveis para crer que as violações podem constituir crimes de guerra e crimes contra a humanidade", disse o Alto Comissário das Nações Unidas.
De acordo com as Nações Unidas, "a maior parte das mortes de civis não parece resultar de operações de combate, mas ataques deliberados contra civis", acrescentando que "cada vez que uma zona do país muda de mãos, as pessoas responsáveis matam ou provocam o deslocamento do maior número possível de civis, com base na sua etnia".
Os casos de violência gratuita
O relatório da ONU acusa o Governo do Sudão do Sul de levar a cabo uma política de “terra queimada”, ao matar, atacar, abusar e saquear alvos civis indiscriminadamente. Alguns dos relatos recolhidos pela equipa da ONU chegam a ser angustiantes.
É, por exemplo, o caso em que, durante um ataque, uma vítima descreve que uma mulher grávida foi alvejada pelas costas enquanto tentava fugir dos atacantes. Ou o caso de uma mulher que relata que o pai, com 80 anos, foi queimado vivo numa cabana, junto com as cabras que estavam na posse da família. “Ela conseguia ouvi-lo a gritar por socorro, dentro da cabana em chamas, mas os soldados do Governo impediram que ela fizesse alguma coisa”, escreve o relatório.
Outro exemplo é o caso de uma mulher que descreve como, durante o ataque à sua aldeia em Koch, um condado no estado de Unity, em outubro, os soldados do Governo mataram o seu marido e depois a amarraram a uma árvore e a forçaram a ver a filha de 15 anos a ser violada por, pelo menos, dez soldados.
A possível solução
O relatório recomenda o pedido do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que solicita ao Conselho de Segurança da ONU a imposição de um embargo de armas global ao país. Recomenda também a constituição de um “Tribunal Híbrido”, que fazia parte do acordo de paz, assinado em agosto 2015, e que este seja constituído o mais rápido possível.
"A solução duradoura e viável, apenas para proteger e promover os direitos humanos no Sudão do Sul, é desmantelar o aparato de violência e responsabilizar os responsáveis pelo imenso sofrimento da população ", conclui o relatório.
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