O seu caso destacou-se por ter sido uma das vozes de contestação amplificadas através de entrevistas de rua que passaram nas televisões, num dos dias mais agitados dos últimos anos na capital moçambicana.

Desde então, a vida de Inocêncio Manhique virou-se do avesso e é passada entre o hospital, ameaças anónimas, privações e ‘lives’ da “revolução” nas redes sociais, mas sem nenhuma ajuda do Estado, lamenta — tanto que chega a classificá-lo como “Estado falhado”.

“Tive de sofrer uma [nova] cirurgia, tenho dores de cabeça muito fortes do lado esquerdo que me incomodam muito”, descreve à Lusa na sua casa, no bairro da Katembe, margem sul da baía de Maputo.

Ivete, a mulher, entrega-lhe uma prótese ocular que coloca na cavidade do olho.

Quando escurece e tem de retirar a prótese, “é como se a mente se fechasse” e “o cérebro tem de se adaptar a um lugar escuro”.

É muito difícil ver só com um olho, relata, trajando uma ‘t-shirt’ branca com a sua caricatura, em que sobressai um lenço que lhe tapa a vista esquerda.

Lamenta não poder ler a última obra que lhe foi oferecida, “Uria Simango: Um homem, Uma Causa”, livro biográfico de um líder dissidente da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), vítima mortal de purgas que abalaram o movimento da independência, na altura dirigido pelo agora partido no poder.

Também se queixa de não poder ler “Niketche, uma história de poligamia”, o próximo livro que queria comprar, da romancista moçambicana Paulina Chiziane, prémio Camões 2021, porque não consegue ir além de duas páginas, tal é o esforço que tem de fazer com a vista que lhe resta.

Lamenta não poder ver o seu “rapper” de eleição, o português Valete, que vai estar em Maputo para um espetáculo de homenagem a Azagaia, porque o concerto será de noite e Inocêncio Manhique já não tem “vida noturna”.

Manhique diz que recebeu ajuda de muitas pessoas e instituições privadas, mas nenhuma do Estado, tendo instruído um advogado para reclamar uma indemnização pelas lesões e danos causados.

Agora falta-lhe dinheiro devido aos custos com tratamentos hospitalares que a sua ocupação – vendedor informal de roupa usada – não consegue pagar.

Inocêncio Manhique afirma que passou a ser alvo de ameaças, tendo sido várias vezes interpelado por desconhecidos para parar com as críticas à governação.

“Para de filmar ´lives`, senão tiramos-te o outro olho”, disse um dos autores anónimos das ameaças.

Mas Manhique frisa que perdeu a visão esquerda às mãos das autoridades e isso só lhe intensificou a militância cívica e o compromisso com “a revolução” até que haja uma “mudança no país”.

“Isto forjou um homem diferente”, realça: “está claro que o regime do dia não está para aceitar o pensamento diferente”, por isso, é preciso continuar a protestar.

A mulher diz que sente medo.

“Eu não sou corajosa como ele, mas apoio o que faz, mesmo que, às vezes, não concorde com algumas coisas”, ressalva Ivete, pensando no marido e nos três filhos do casal: duas meninas e um menino.

Manhique foi uma entre várias pessoas atingidas pela violência policial de 18 de março.

José Joanisse, 56 anos e antigo ‘madjermane’, trabalhador na ex-República Democrática Alemã (RDA), diz que vive com fortes dores de cabeça desde que teve a testa rasgada por uma cápsula de gás lacrimogéneo e que levou sete pontos.

“Pretendo uma indemnização, mas até agora ninguém me ajudou com dinheiro para conseguir um advogado. O pouco que tinha foi para os medicamentos”, conta à Lusa.

Pintor de profissão, diz que parou de trabalhar devido às dores e vive como “uma formiga ou passarinho”, que “apanha migalhas para não morrer à fome”.

Insiste que está magoado com a falta de atenção do Governo para com as vítimas da violência policial.

Joanisse sabe do que fala: participa há mais de 33 anos, todas as quartas-feiras na marcha dos antigos trabalhadores moçambicanos na RDA que reivindicam indemnizações antigas e nunca tal violência surgiu.

Quando foi atingido, há três meses, “nem estava a participar na marcha pelo Azagaia”, apenas estava no local errado, na hora errada, parado num passeio fora do jardim do Alto Maé.

O dia 18 de março foi de caos no centro de Maputo.

Agentes da polícia moçambicana alegaram ter “ordens superiores”, nunca esclarecidas, para dispersar grupos que estavam autorizados a realizar uma marcha pacífica de homenagem ao ‘rapper’ de intervenção social Azagaia, que morreu por doença nove dias antes.

Azagaia era conhecido pelas letras de contestação política e o seu funeral, que trouxe Maputo para a rua, já tinha motivado ânimos exaltados entre forças de segurança e a população.

Na informação anual sobre o estado da justiça no país, a procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, afirmou que o Ministério Público abriu processos-crime contra agentes envolvidos nas escaramuças de 18 de março, mas desde então não se conheceram mais desenvolvimentos.

Por norma, a polícia moçambicana impede protestos pacíficos, apesar das vozes – como a própria procuradora-geral da República – que recordam a lei para sublinhar que o direito à manifestação está consagrado na Constituição e dispensa autorizações.

A Lusa contactou a Presidência da República, Procuradoria-Geral da República e o Comando-Geral da Polícia da República de Moçambique, mas até ao momento ainda não obteve esclarecimentos sobre a situação das vítimas.