Em algumas zonas específicas, como Santa Clara, Fenais da Luz ou Rabo de Peixe, em São Miguel, várias habitações construídas junto ao mar apresentam risco de ruir devido à erosão. O Governo Regional tem procurado realojar as famílias residentes, mas nem sempre há acordo com os moradores.

Maria da Luz, de 61 anos, habita numa moradia em risco numa falésia em Santa Clara, na ilha de São Miguel. Aprendeu a “viver com o perigo” diariamente, pelo menos até ser encontrada uma solução de realojamento.

A habitante, que nasceu na mesma casa onde hoje vive, no concelho de Ponta Delgada, na companhia de três filhos, gere no andar de baixo um café, que existe há 55 anos, mas quer abandonar o local. No entanto, recusa-se a ir para uma casa inferior à que possui atualmente.

Na zona, onde já foram vários os agregados familiares realojados pelo Governo dos Açores, habitam ainda cerca de 15 pessoas.

Ernesto Pereira, casado e de 68 anos, sente que “cada vez mais a margem de segurança vai estreitando”.

A parede traseira da sua casa quase chega a ser o mar, que se faz ouvir no interior com intensidade, mesmo num dia sem agitação.

Manifestando-se preocupado, de forma particular nos dias em que a agitação marítima é mais intensa, Ernesto Pereira, residente de Santa Clara desde criança, está disponível para abandonar a sua casa – onde vivem também a filha e o genro -, mas não para habitações a custos controlados em zonas que considera desfavorecidas, nos arredores de Ponta Delgada.

“Não chegámos a acordo. A casa que me queriam dar não convinha”, declarou o morador à Lusa.

Jorge Cabral, outro dos habitantes da zona, reside numa habitação que não oferece problemas de segurança, também em Santa Clara, mas está diariamente exposto ao perigo, porque trabalha num café cuja sala de refeições, nas suas traseiras, fica na linha de costa, a escassos metros da falésia.

Apesar do convívio diário com o perigo, para Jorge Cabral será difícil abandonar o local. Toda a sua vida social e da sua família se faz em função daquele espaço: “Fazemos a nossa vida é aqui, tanto eu como a minha esposa temos o nosso ordenado em função do café. Conhecemos toda a gente, temos os nossos clientes aqui”.

Já na freguesia dos Fenais da Luz, na costa norte do concelho de Ponta Delgada, Maria Andrade, de 23 anos, doméstica, vive na habitação dos sogros, num anexo em betão improvisado e construído sobre a rocha.

Não esconde os receios que tem, sobretudo no inverno, em que "o ruído do mar é mais intenso" e em que "há medo, muito medo".

João Cabral, de 52 anos, partilha uma casa com o irmão e recusa-se a abandonar a zona de risco, algo que Ana Silva, de 28 anos, faria de bom grado se tivesse uma alternativa, até porque gostaria de deixar de privar os filhos de irem para o exterior da habitação - o quintal é praticamente o mar e existe apenas um baixo muro de proteção.

Segundo o diretor regional da Habitação, as situações identificadas como “estando em risco”, através do Laboratório Regional de Engenharia Civil (LREC), nos Fenais da Luz e Rabo de Peixe, no concelho da Ribeira Grande, “estão resolvidas” na perspetiva em que foram “tratadas as situações habitacionais daquelas famílias”.

No caso específico de Santa Clara, Orlando Goulart referiu que a situação está “maioritariamente tratada”, não se tendo ainda chegado a acordo com todos os habitantes para abandonar a zona.

O diretor regional considera que esta não é uma zona de “perigo iminente”, dando conta de um “risco de médio prazo por [as habitações] se situarem na arriba”.

Nas Calhetas, também no concelho da Ribeira Grande, das 30 habitações em zona declarada de risco pelo LREC, as famílias de 24 casas já foram realojadas, adiantou.

“Persistem ainda famílias com as quais temos vindo a negociar e às quais temos vindo a apresentar soluções”, referiu o diretor regional.

Geólogo preocupado com habitações

O geólogo da Universidade dos Açores Rui Marques alerta para a existência de habitações construídas em zona de risco, junto ao mar, referindo que a “forte erosão” marinha vai tornar este cenário mais preocupante.

Em declarações à agência Lusa, o doutorado em riscos geológicos pela academia açoriana referiu que nas ilhas do arquipélago as arribas, “face à sua inclinação e aos materiais que as constituem, são muito suscetíveis a movimentos de vertente” desencadeados pela precipitação e pela erosão marítima.

Segundo o especialista, a proximidade das habitações às cristas das arribas faz com que se esteja perante “locais de risco” não só na ilha de São Miguel como nas restantes ilhas do arquipélago.

“Se algumas destas casas há 50 ou 100 anos tinham alguma distância das cristas das arribas, com a erosão lenta do mar a crista vai recuando e hoje há habitações muito próximas e em zonas de risco”, afirmou Rui Marques.

O investigador referiu que nas ilhas dos Açores têm sido desenvolvidos mapas de suscetibilidade que “identificam, sob o formato de cartas, os locais com maior propensão para a ocorrência de movimentos de vertente”.

Estes mapas já se encontram em instrumentos de gestão territorial do arquipélago e “atualmente é proibida a construção em alguns destes locais de risco”, sendo o “grande problema as casas que foram construídas numa altura em que não havia proibição”.

Também os presidentes de juntas de freguesias de áreas com habitações em risco se mostram preocupados.

O presidente da Junta de Freguesia dos Fenais da Luz, Vítor Almeida, disse à agência Lusa que, apesar de já terem sido realojados alguns agregados familiares de uma falésia que oferece insegurança, o "perigo é constante", assistindo-se "todos os anos a aluimentos". Situada na costa norte do concelho de Ponta Delgada, incluindo os lugares do Bom Jesus dos Aflitos e do Farropo, a freguesia tem cerca de dois mil habitantes.

O responsável defende uma "intervenção forte" por parte do Governo Regional na zona das derrocadas e refere, citando pareceres científicos de técnicos da Universidade dos Açores, que existem soluções "não muito onerosas" que podem ser adotadas para reforçar a segurança no local.

O autarca referiu, por outro lado, que existe um projeto submetido ao Orçamento Participativo de Ponta Delgada que visa, entre outras medidas, condicionar a circulação de veículos no local e reforçar a segurança da população.

O responsável pela Junta de Freguesia de Santa Clara, António Cabral, lamentou que na freguesia – com cerca de 4.500 habitantes e localizada na periferia de Ponta Delgada – alguns habitantes se recusem a sair, apestar das propostas do Governo Regional para o seu realojamento.

António Cabral gostaria de ver todos os habitantes retirados da zona de perigo por forma a que seja desenvolvido um projeto que garanta a estabilidade da área, visando garantir a segurança de quem circula junto ao local.

A agência Lusa tentou obter um comentário do presidente da Junta de Freguesia de Rabo de Peixe, mas sem sucesso.