Apelidado de "um dos melhores jogadores do mundo" por Pep Guardiola, o jovem leão Matheus Nunes era um dos ativos mais apetecíveis deste mercado de transferências. A chamada à seleção portuguesa, o papel determinante no Sporting CP de Rúben Amorim, incluindo na conquista do primeiro título verde e branco em 20 anos, em 2020/2021, e os elogios de um dos técnicos mais aclamados do século escreviam o prefácio do inevitável.
Apesar das notícias, parecia que em Alvalade conseguia-se operar um milagre com a manutenção do médio. Os elogios de Guardiola não se manifestaram numa transferência para o Manchester City, o próprio jogador recusou uma proposta do West Ham e alinhou nos dois primeiros jogos oficiais dos leões esta temporada, somando uma assistência e um golo - um daqueles digno de fazer parar o scroll em qualquer feed de uma rede social.
No entanto, com a mesma velocidade com que Nunes atirou a bola para o fundo da baliza do Rio Ave, surgiu a notícia que nenhum sportinguista queria ler: Matheus Nunes é reforço do Wolverhampton.
A transferência tornou-se oficial na quarta-feira à noite, com o clube inglês a divulgar imagens do jogador com a nova camisola nas redes sociais. Horas depois, já na quinta-feira, também o Sporting comunicou à CMVM a mudança do internacional português para o emblema treinado por Bruno Lage a troco de 45 milhões de euros, aos quais se podem somar mais cinco milhões dependentes de objetivos coletivos do Wolverhampton e individuais do futebolista. Os leões ficaram ainda com direito a 10% de uma mais-valia de uma futura transferência.
Sem surpresas, o negócio, recorde na história do clube, ultrapassando os 40 milhões de euros pagos por Fábio Silva ao FC Porto, foi dirigido pelo agente Jorge Mendes, tal como tinha sido o do jovem dragão, sendo que, no comunicado do Sporting à CMVM, é explicado que os encargos com os serviços de intermediação relativos à transferência ascendem a 4.454.667 euros, acrescidos de um valor máximo variável de até 494.963 euros.
No verão de 2016, o clube inglês foi adquirido por 45 milhões de euros pelo Fosun Group, um dos maiores conglomerados da economia chinesa, numa operação que envolveu também a Gestifute, finalizando assim um negócio que tinha começado no ano anterior, quando a Foyo Culture and Entertainment Limited, uma sociedade com sede legal em Hong Kong e controlada pela Fosun, adquiriu uma quota parte da Start SGPS, a holding em que Jorge Mendes reúne todas as empresas que operam no setor desportivo, numa ação que foi anunciada como uma parceria para o desenvolvimento do futebol chinês. Desde então que o agente português é o grande protagonista do Wolves.
Logo em 2016, Mendes começou a construir uma autoestrada 'direta' de Portugal para Wolverhampton - uma expressão 'roubada' a Scott Murray, jornalista do The Guardian, que a utilizou na newsletter The Fiver, na passada quinta-feira - com as idas de Hélder Costa (SL Benfica, 15 ME), Ivan Cavaleiro (AS Monaco, 8 ME), Sílvio (custo zero, Atlético de Madrid) e João Teixeira (SL Benfica B, valor desconhecido) para Inglaterra; nomes a que se pode ainda somar o de Ola John, antigo jogador dos encarnados, na altura agenciado pela Doyen.
Depois de uma primeira temporada sem resultados desportivos dignos de registo, o Wolves terminou o Championship no 15.º lugar e teve uma participação curta nas taças nacionais, Mendes levou para o Moullinex o treinador português Nuno Espírito Santo, depois de ter orientado o FC Porto durante um ano. Juntamente com o técnico, seguiram o capitão dos dragões Rúben Neves (17,9 ME), Roderick Miranda (3 ME, Rio Ave), Diogo Jota (empréstimo, Atlético de Madrid), Willy Boly (empréstimo, FC Porto) e Rúben Vinagre (AS Monaco, valor desconhecido). Numa equipa com sete portugueses - além das transferências somavam-se os nomes de Pedro Gonçalves, também conhecido por Pote, e Tomás Reymão, que fizeram parte da formação no clube - conseguiu-se o pretendido: vencer a segunda divisão inglesa.
Em 2018/19, o Wolves estava na Premier League. Para disputar aquela que é considerada a melhor liga do mundo, a 'autoestrada Mendes' levou para Inglaterra Rui Patrício (7 ME, Sporting CP), João Moutinho (5,6 ME, AS Monaco), Raúl Jiménez (empréstimo, Benfica) e ainda comprou de forma efetiva os passes de Jota (14 ME) e Boly (12 ME), que tinham estado na época anterior por empréstimo no clube. Mais uma vez, seria difícil imaginar um melhor desfecho para a temporada: Nuno Espírito Santo e os seus pupilos terminaram a época em sétimo lugar e conseguiram qualificar o clube para as competições europeias após uma ausência de 39 anos das provas continentais.
Num contexto competitivo mais exigente, o Wolves arrumou a casa. Em 2019/20, Ivan Cavaleiro e Hélder Costa, dois dos primeiros transeuntes da 'via Mendes', partiram, o primeiro para o Fulham e o segundo para o Leeds, uma sorte que já tinha calhado no destino de Roderick Miranda na época anterior, com uma mudança para os gregos do Olympiacos. No entanto, de Portugal e com passaporte português chegaram novos nomes: Daniel Podence (19,6 ME, Olympiacos), Pedro Neto (17,9 ME, Lazio), Bruno Jordão (8,9 ME, Lazio) e Renat Dadashov (500 mil euros, Estoril). Soma-se ainda a compra em definitivo de Jiménez ao Benfica por 38 milhões de euros.
A ligação de Wolverhampton a Portugal estava boa e recomendava-se. Os Lobos terminaram novamente a Premier League em 7.º lugar e na estreia na Liga Europa conseguiram chegar aos quartos-de-final. No entanto, com um azar: a final da FA Cup, a Taça de Inglaterra, que vale um lugar nos play-offs de qualificação para a segunda competição de clubes da UEFA, foi conquistada pelo Arsenal, oitavo classificado, que fez uso desse lugar europeu, ao contrário do que tinha acontecido no ano anterior quando o troféu foi erguido pelo Manchester City, já qualificado para as competições europeias, o que levou a que o 'bilhete' fosse oferecido ao Wolves.
A temporada 2020/21 seria um interregno na felicidade dos adeptos dos Lobos, que começaram a época a perder Diogo Jota para o Liverpool (44,7 ME). Num ano em que Jorge Mendes levou para o Moullinex Fábio Silva, Nélson Semedo (32 ME, FC Barcelona), Marçal (2 ME, Lyon), Toti (1 ME, Estoril), Vitinha (empréstimo, FC Porto) e Rayan Aït-Nouri (20 ME, Angers) o clube teve uma prestação abaixo do expectável na liga, terminando o campeonato na 13.ª posição.
Esta foi também a temporada que marcou o fim da ligação de Espírito Santo à equipa, com o treinador português a mudar-se para Londres, para orientar o Tottenham, numa experiência que foi do oito ao oitenta: em agosto foi eleito treinador do mês e no final de outubro foi despedido. Para o lugar de NES, chegou Bruno Lage, antigo treinador campeão nacional pelo Benfica. Para o plantel chegaram pela 'via Mendes' José Sá (8 ME, Olympiacos), Francisco Trincão (empréstimo no valor de 6 ME, FC Barcelona) e Chiquinho (3,5 ME, Estoril).
Com Lage, os Wolves voltaram a alcançar o estatuto de equipa sensação, tendo estado à beira de uma nova qualificação europeia. Mas uma reta final desastrosa, com apenas duas vitórias em 10 jogos, a que se somaram dois empates e seis derrotas, fez com que a equipa mais portuguesa de Inglaterra acabasse a meio da tabela no 10.º lugar.
Para esta temporada, o técnico português segue no comando do clube que parece ter alcançado um dos maiores objetivos do mercado: garantir a permanência de Rúben Neves. Além da manutenção do médio, chegaram dois internacionais portugueses, Matheus Nunes e Gonçalo Guedes (32,6 ME, Valência).
No total, foram 30 jogadores e dois treinadores portugueses ou com ligação/passagem por clubes portugueses a aterrar em Wolverhampton, sobretudo com proveniências daquele que é conhecido como 'carrossel Mendes', apontado como uma série de clubes junto dos quais o agente português tem um grande poder e consegue facilitar transferências para valorizar os passaportes de jogadores que agencia, mantendo-os nas principais rotas do futebol.
Este 'carrossel' inclui clubes como o SL Benfica, FC Porto, Valência, AS Monaco, Rio Ave ou Atlético de Madrid.
FIFA tem agentes na mira e isso pode trazer más notícias para Jorge Mendes... e para o Wolves
O nível de influência que Jorge Mendes detém sobre os Lobos e o facto de ter interesses económicos associados ao clube, muitas vezes apresentado como um esquema económico baseado no pagamento de elevados valores de intermediação ao agente, através da Gestifute, pagos pela Fosun, proprietária do clube, que, como detém também ações da Gestifute, tem também acesso a parte desse valor, não é do agrado da FIFA.
O organismo que tutela o futebol a nível mundial apresentou no final de 2021 um draft com regras que vai implementar a partir de novembro deste ano para regular a atividade dos agentes de futebol, um documento que traz uma reforma absoluta para a manobra destes intervenientes.
O MaisFutebol, que teve acesso ao documento, partilhou algumas das alterações que vão ocorrer - e que não agradam aos agentes. Por exemplo, a intermediação deixa de ser acessível a qualquer pessoa, sendo que para realizar as transações de passes de jogadores passa a ser necessária uma licença, uma alteração que tira advogados e familiares para 'fora de jogo'.
A medida mais polémica, no entanto, parece ser feita à medida de Jorge Mendes, com a criação de uma câmara por onde terá de passar o dinheiro de todas as transferências, a FIFA Clearing House. A partir do final do ano, nenhuma comissão deve ser paga pelo cliente, atleta ou clube, diretamente ao agente de futebol, tendo o pagamento de ser feito através deste organismo.
As comissões passam também a ter tetos máximos. Segundo o jornal desportivo, o jogador não pode pagar ao seu representante mais de três por cento do valor do seu contrato; o clube comprador não pode pagar ao seu representante mais de três por cento do valor do contrato feito com o jogador; o clube vendedor não pode pagar ao seu representante mais de dez por cento do valor da transferência e no caso de transferências a custo zero, o clube vendedor não pode pagar ao seu representante mais de dez por cento do último contrato do jogador antes de deixar o clube.
Mas há mais. Segundo informações publicadas pelo The Times, a FIFA tem prevista também uma diretiva em que consta o seguinte: “qualquer pessoa ou entidade que tenha um interesse económico, direto ou indireto, numa liga ou clube (...), não pode ter interesse económico na atividade de agente de jogadores, nem poderá exercer qualquer função numa empresa privada que gere os interesses dos jogadores”.
O objetivo é tornar os negócios mais transparentes, mas afeta diretamente, por exemplo, Jorge Mendes. O caso do Wolves é dos mais explícitos pela ligação direta do clube à Fosun e do conglomerado chinês à Gestifute.
Ainda a alguns meses da reforma oficial da FIFA, a pergunta impõe-se: como conseguirá o super-agente manter esta autoestrada que liga Portugal a Inglaterra? Será este o fim do império Jorge Mendes tal como o conhecemos?
Em 2016, o jornalista italiano Pippo Russo, no livro "A Orgia do Poder", em que é retratada a ascensão do agente português no mundo do futebol, numa exposição sem precedentes até à data sobre a forma como Mendes se movimentava entre clubes e negócios, tentou responder à questão "estaremos próximos do fim do Sistema Mendes?"
"Sou da opinião de que, mais cedo ou mais tarde, o império mendesiano irá cair, porque é uma lei da natureza. Porém, não sei se a queda está próxima, nem creio que a eficácia no mercado de transferências de jogadores seja, hoje, o único indicador de poder. A abertura da frente chinesa e as relações asiáticas em geral projectam Jorge Mendes para uma nova dimensão, mais ampla do que a de superagente de jogadores. Agora, vejo-o mais como um superagente do ramo do entretenimento e, dentro desta nova dimensão, o mercado de jogadores é apenas uma parte. O tempo o dirá. Espero que se inicie uma fase em que o futebol fique livre dos Mendes e dos Raiolas, dos Zahavis e dos Joorabchians. Mas não tenho grande confiança neste auspício. Uma certeza que tenho é que o trabalho".
Passados seis anos, confirma-se que Jorge Mendes e o seu império se mantêm intactos. Mesmo após vários documentos divulgados pela Football Leaks que denunciam várias ações do tal 'Sistema Mendes'. Será este o último verão do super-agente?
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