Noura Qashian Al-Mutairi nasceu no Kuwait. É mulher. É árabe. E é boxeur. “Fui a primeira boxeur da seleção nacional do Kuwait e a primeira mulher do Golfo Pérsico a entrar no campeonato do mundo de boxe (Istambul, Turquia, 2022). É uma coisa grande para mim”. Noura  aterrou em Portugal pela terceira vez. Veio para o Boxing Clash, torneio de Boxe Olímpico organizado pela Rounds Academy e a Escola de Boxe João Faleiro.

Conquistar o seu espaço, ganhar notoriedade e reconhecimento não foi uma luta fácil. Começou, curiosamente, dentro de casa. No seio da família. “Não é nada normal na nossa cultura as mulheres praticarem este desporto. Primeiro tive de combater esses estereótipos e tive de convencer a minha família que queria ser boxeur”, confessou ao SAPO24, numa conversa no interior da academia Rounds Academy, em Campo de Ourique, Lisboa, onde treinou horas antes de entrar no ringue.

“Perguntavam sempre porquê? Não queriam que alguém me magoasse e diziam que me ia magoar”, recorda antes de uma breve apresentação da família. “A minha avó materna é libanesa, é de uma família árabe de mente aberta. Ajudou-me a entrar no boxe”. O contraste mora na outra fação familiar. “O lado do meu pai é muito conservador. Usam o niqab (véu islâmico que só deixa os olhos a descoberto)”, pelo que, com naturalidade, receberam a opção como “um choque”, admite. “Perguntavam: porquê, Noura?”, lembra.

“Não é um desporto de rapazes. Também é de raparigas”

“Quando fui chamada à seleção nacional, o meu tio mais velho questionou-me o que se tinha passado com a minha vida e o que fazia num desporto de rapazes”, relembra. “Não. Não é um desporto de rapazes. Também é de raparigas”, vinca.

Às dúvidas da família juntaram-se outras a salpicar-lhe o caminho, vindas dos mais variados quadrantes. “Perguntavam sempre porquê e diziam sempre que não iria conseguir. Porquê? Porquê?”, repete e questiona. “Claro que consigo”, responde. “É um jogo para todos, não só para os rapazes. Podemos fazer todos os desportos que os homens conseguem”, afirma. “Quebrei a regra na minha cultura: isto é para rapaz, isto é para rapariga”, sublinha.

A viagem de Noura Al-Musati no mundo do boxe iniciou-se em 2020, mas, uma quase mão cheia de anos antes, já tinha pisado outros palcos. “Comecei, em 2016, pelas artes marciais, MMA, Muay Thai, Jujutsu e Kickboxing”, enumera. “Só depois entrei na seleção nacional de boxe”, recorda. “Chamaram-me, queriam uma mulher na equipa. Foi uma grande oportunidade de representar o país numa competição internacional”, reconhece.

“Ganhei o meu espaço. Agora sei que tenho esta responsabilidade em cima de mim e tenho de me esforçar muito para representar o Kuwait da melhor forma”, assevera. A opção boxe não a deixou igual. Transformou-a. “Tem sido uma boa viagem. Mudou-me. E mudou a minha mentalidade. Tornei-me uma pessoa calma e mais aberta. O meu mindset é, agora, diferente”, assume Noura Al-Musari.

Do negócio de malas e sapatos à paixão pelo boxe

À pergunta se não fosse boxeur, quem seria, responde prontamente. “Estudei gestão. Tenho uma empresa com a minha irmã. Tenho uma marca, a Nj (By Nouf & Noura), ligada à moda, sapatos e malas”, diz.

“Alio os negócios ao boxe. Tenho uma paixão pelo boxe. No boxe, vamos subindo até ao cume, sempre, sempre a tentar atingir o máximo. Nas empresas, procuramos o lucro. Sim, vamos progredindo e crescendo nas receitas”, disserta. “A empresa dá-me dinheiro, gosto do que construi, mas a minha paixão é o boxe. Que não me dá dinheiro”, sorri.  “No boxe sinto-me eu. O meu “eu” interior. Quão forte e focada sou. Adoro”, exclama.

Aos 25 anos, quebradas barreiras e tabus, a boxeur do Kuwait acalenta o sonho dos Jogos Olímpicos Paris 2024. “Luto por isso. Tenho ranking porque já participei duas vezes no campeonato do mundo, mas terei de passar pelas qualificações”, informa.

O tema idade entra na conversa. “Comecei tarde no desporto. Diziam que era velha. Mas deu-me força. Mostrei que a idade é um número. Basta treinar duro”, atesta. “Na seleção nacional treinei com os rapazes. E na minha mente está: vou bater nos rapazes. Vou vencê-los e não ficar cansada”, admite. “Mas eles retraem-se para não me magoarem e não me darem um murro. Isso não me beneficia”, avisa.

Reflete e admite, até certo ponto, ter retirado dividendos dos treinos contra luvas masculinas. “Beneficiou-me, mas não me deu total vantagem. Habituei-me a receber golpes duros. E conseguir responder com a força máxima. Mas a técnica é diferente. Entre rapazes e raparigas”, compara.

Reconhece uma dificuldade no seu percurso. Tem sido difícil encontrar parceiro de combate. “Quero ser puxada aos limites e é por isso que viajo pelo mundo. Quero lutar e treinar com todas as raparigas que encontrar”, justifica. “Na mente, no treino com os rapazes, há a barreira do medo de magoar. Com as raparigas não há medo. É uma para uma. O mesmo género, a mesma mentalidade”, diz. Na competição, tudo é claro. “Eu não luto com homens. Luto com raparigas do meu peso. Ambas temos mãos e luvas e cada uma tem o que a outra tem”, assinala.

“As mulheres árabes hoje podem escolher o que querem ser. Mas, talvez, quando for mais velha serei com a minha avó e usarei véu”

Admite que os media no Kuwait a ajudaram a “passar a mensagem do que faço e do que consigo”, reconhece. “Sinto-me uma bandeira, um exemplo para as outras meninas. Vocês conseguem fazer este desporto. E não deixem ninguém dizer que não conseguem”, avisa.

Ultrapassada a barreira cultural e familiar, enquanto prossegue o bailado no ringue, vira o pensamento para o que fazer quando pendurar as luvas. O sonho não passa por ser uma mera embaixadora. As ambições voam mais alto. “Quero ser presidente da Federação de Boxe”, disparou. “Nenhuma rapariga chegou à presidência de uma federação no Kuwait”, chama a atenção. “Quero mudar a mentalidade no boxe no meu país, na minha cultura e em toda a região”, assume. Disserta sobre o papel das federações e do desporto naquele país do golfo Pérsico. “Estão mais focados nos rapazes e não nos deram, até à data, espaço para fazermos o que queremos”, sustenta.

A conversa caminha para a reta final. Introduz a discussão cultural. Confessa não usar o véu islâmico. “Somos uma democracia. Posso guiar, praticar desporto, posso fazer o que eu quero”, explica.  “(As restrições) É só nos media. As mulheres árabes hoje podem escolher o que querem ser. Mas, talvez, quando for mais velha serei como a minha avó e usarei véu”, salta uma gargalhada.

“A mentalidade está a mudar. Podemos escolher. Como mulher, é uma liberdade, um ganho”, frisa. Exemplifica. “Atualmente, viajo sozinha. Não seria possível há cinco anos. O meu pai, irmão e a minha mãe tinham receio que me magoassem. Mostrei que as mulheres podem sair sozinhas e regressar seguras. Estou a mudar as mentalidades...”, repete e finaliza.