Faltava pouco mais de quarenta minutos para o apito inicial do Brasil-Suíça quando na Fan Zone situada na larga avenida em frente ao edifício principal da Universidade Pública de Lomonosov - um símbolo da herança da arquitetura soviética -, em Moscovo, o branco da Alemanha derrotada pelo México deu lugar ao samba amarelo e verde.
A alegria canarinha roubava lugar à deceção de um campeão do Mundo derrotado na sua estreia, e misturava-se com a euforia sul-americana dos mexicanos. Os brasileiros são um povo confiante na sua seleção e no seu futebol. Têm razões para isso: basta pensar que ainda no Mundial de 2006, na Alemanha, a seleção do Brasil ainda fazia alinhar nomes como Ronaldo, Kaká, Ronaldinho Gaúcho ou Roberto Carlos - apesar de nessa competição terem chegado apenas aos quartos-de-final. No seguinte, na África do Sul, em 2010, ficaram-se novamente pelos ‘quartos’. E a confiança deu lugar a desilusão, sobretudo quando as principais figuras da equipa brasileira começaram a pendurar as botas.
Contudo, os anos seguintes trouxeram Neymar e a seleção precisava - gritava! - por 2014, o ano em que o Brasil iria organizar o Mundial. O país acreditava, "cheirava" a vitória. Mas depois aconteceu o 7-1 e os ombros esmoreceram, as bandeiras caíram juntamente com a crença.
Agora, quatro anos depois e praticamente com os mesmos jogadores à disposição, os brasileiros acreditam. Porquê?
Por causa de Tite.
“O povo acredita mais em Tite do que em Neymar. Este ano sacamos pelo menos umas meias”, atira César ao ar, enquanto prepara para se instalar na relva antes do apito inicial. “O Tite conhece bem o futebol brasileiro como ninguém”, conta-nos o adepto canarinho.
Ao lado, noutro grupo de amigos, Eduardo, que tinha chegado há poucas horas a Moscovo mas já estava de equipamento completo para apoiar o seu país, explica-nos: "A vinda do Tite, como técnico, mudou completamente o curso da história. Ele trouxe inovação, jogadores que não estavam sendo bem aproveitados na seleção e que agora estão demonstrando bom trabalho. Eu acho que, espero, o último vexame não se repita. Não vai, se Deus quiser. A gente vai ser campeão".
"Com o técnico antigo [Scolari] existiu a 'neymardependência', com os jogadores a jogarem em torno de Neymar. Tite explorou o talento individual de cada um e agrupou isso no coletivo, uma coisa que o técnico antigo não fazia. Essa é a diferença entre o técnico antigo e o Tite"
Não é Neymar, não é o trio que junta Grabriel Jesus e Philippe Coutinho ao avançado do Paris Saint-Germain. Não, é Tite. A “Ordem e Progresso” inscrita nas bandeiras brasileiras às costas dos adeptos que compunham a Fan Zone eram de Tite. Dele se esperam as duas.
"Estamos com o melhor time desde 2006, esse era um time Brasil com um quarteto fantástico. [Mas] agora a seleção tem um melhor time, principalmente por causa do nosso treinador. Antes de Tite o Brasil tinha dúvidas, estava horrível, correndo o risco de nem vir para a Copa, não se classificar nas eliminatórias. Com o Tite o time ficou invicto vários jogos, jogando bem. Todo o mundo [está] confiante com ele, confia nele. (...) [Fez a diferença], mais do que Neymar. Tite dá mais confiança ao Brasil do que Neymar", diz-nos Jaime, cinco minutos depois do jogo já ter começado.
Adenor Leonardo Bachi, mais conhecido por Tite, entrou no mundo do futebol aos 17 anos quando começou por representar o emblema brasileiro do Caxias. Uma curta carreira que terminou aos 28 anos, depois de uma lesão grave no joelho, e que teve como auge o vice-Campeonato Brasileiro de 1986, a Copa União de 1987 e o Campeonato Paulista de 1988, permitiram perceber a Tite que não tinha nascido para decidir o que fazer com a bola nos pés.
Formado em educação física, Tite tem no GA Guarany a sua primeira experiência como técnico profissional, mas é só no Veranópolis que ergue o seu primeiro título após vencer a segunda divisão do Campeonato Gaúcho de 1993. A partir daí foi escalando até se tornar rei e senhor do futebol brasileiro: primeiro com o título com o Caxias, clube da sua cidade natal, em 2000, quando venceu o mesmo Campeonato Gaúcho contra o Grémio; depois, no Grémio que havia vencido e que o contratou na época seguinte, venceu o campeonato estadual e a Copa do Brasil.
E nem a deceção de 2011, quando à frente do Corinthians, numa equipa onde alinhava o “Fenómeno” Ronaldo e Roberto Carlos, foi eliminado da Copa Libertadores nas primeiras fases, o tirou da mó de cima. Não teve importância porque no ano seguinte ele erguia a Libertadores com o Timão e, mais ainda, conseguiria vencer o Chelsea na luta pelo título de Campeão do Mundo de Clubes.
Tite é um "deles". Como escreveu Fernando Kallás, no diário AS, Tite é o “salvador da pátria com botas”. E converteu o povo.
“Acho que vão ganhar o Mundial. 78 mil, acho que 80 mil brasileiros vieram para a Rússia para apoiar. Antes de Tite existia a indiferença, vários resultados negativos. Mas eu acho que essa descrença ficou para trás com uma grande crença", diz-nos César.
O Brasil ganhava por 1-0 ao intervalo com um golo de Coutinho e a festa em Moscovo fazia-se. No meio da multidão destacava-se um grupo de brasileiros que reivindicava o 7-1 do último Mundial, diante da Alemanha, e que o reinventava com um cartaz bem humorado. Wagner, um dos membros do grupo, diz estar satisfeito com o que viu na primeira parte, e, em sintonia com os seus compatriotas, volta a insistir no papel do selecionador. “O Tite, ele está surpreendendo. O Tite mudou todo o conceito que o Brasil tinha de jogo. Você vê as estatísticas dos últimos jogos e os números do Tite são ótimos, por isso a expetativa, por isso a gente tem tanta confiança nele como não tinha nos últimos anos, depois do 7-1. Depois da nossa pior derrota da história, o Tite conseguiu reanimar e agrupar o grupo para fazer [do Brasil] favorito. Por isso a gente confia muito nele"
Do outro lado da roda, Casper diz não ter dúvidas."Eu acho que o Tite é mais importante porque ele consegue organizar o time por inteiro, o time completo. O Neymar é apenas um jogador, não é o grupo. O Tite conseguiu organizar o grupo, a seleção por inteiro. O país inteiro está com o Tite", refere.
"Com o técnico antigo existiu a neymardependência, com os jogadores a jogarem em torno de Neymar. Com o Tite ele explorou o talento individual de cada um e agrupou isso no coletivo, uma coisa que o técnico antigo não fazia. Essa é a diferença entre o técnico antigo e o Tite", interrompe Filipe.
Wagner aproveita o momento para elogiar o autor do golo, Philipe Coutinho, que "tem tudo para rebentar nessa Copa, porque vão dar muita atenção ao Neymar [e o] Philipe Coutinho pode ser o nosso cara. É bom que os adversários pensem que o Brasil é só o Neymar, porque vai sobrar para todo o mundo e jogadores como o Philippe Coutinho, por exemplo, vão dar-se muito bem. O nosso grupo vai ganhar", afirma.
Tite à frente de Neymar, mas Neymar à frente de todos
É como se existisse uma escala em que Tite não entra, em que Tite está acima, como revolucionário e unionista. Contudo, há outra escala em que Neymar lidera (pelo menos para os brasileiros): a Bola de Ouro, claro está.
"O Neymar é o melhor do mundo, por comparação a Messi e a Cristiano Ronaldo. Porque o Cristiano marcou agora um hat-trick contra a Espanha, ok, mas coletivamente não funcionou... o Neymar funciona melhor coletivamente na seleção mais do que o Cristiano Ronaldo funciona melhor em Portugal. A seleção da Argentina joga em torno do Messi, a seleção de Portugal joga em torno do Cristiano Ronaldo, a seleção brasileira não joga em torno do Neymar. Graças ao Tite", insiste Filipe, enquanto pede que alguns adeptos esperem para tirar uma foto com o cartaz do 7-1 que entretanto se tinha tornado numa sensação, especialmente durante o intervalo do jogo. Ele não tem dúvidas: o melhor do mundo voltou a ser brasileiro.
“O Brasil continua na luta do título"
Ainda faltava a segunda parte e já no final da primeira se notava que o Brasil tinha tirado o pé do acelerador. O segundo tempo não começou muito diferente e a Suíça foi começando a conseguir chegar lá à frente. E com 1-0 tudo pode acontecer. E aconteceu: Zuber, na sequência de um canto, cabeceou para o fundo da baliza de Allison. O Brasil viria a fazer-se ao jogo, mas tarde demais. No fim, faltou a sorte que a canarinha não se esforçou em procurar durante mais de meia hora de jogo.
“Embora prejudicada pela arbitragem contra a Suíça, seleção empaca ao concentrar esperanças nos pés de Neymar. Uma estreia abaixo das expectativas”, escrevia o El País após o apito final, num artigo intitulado “O Brasil de Tite, conservador à esquerda e inoperante à direita”.
"O que conta é a humildade, o Brasil continua favorito ao título. A Alemanha perdeu e a gente empatou. O Brasil teve muitos lances e o Brasil é melhor (...), mas esse é o caminho. Estou satisfeito com o jogo. Claro que um empate é ruim, mas uma derrota é pior. O Brasil continua na luta do título", diz Filipe ao SAPO24, no final do jogo.
A derrota amargurou a estreia, mas com Tite eles vão à guerra e com Neymar eles batalham. É esta “Ordem e Progresso” da seleção brasileira neste Mundial.
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