Certeza, ausência de dúvida ou coisa certa. Independentemente da forma que se queira decalcar as contas no pré-jogo, por muito esmiuço que se pregueie, era sabido que a possibilidade de o Benfica continuar na Liga milionária tinha caído por terra devido ao empate ao cair do pano na Alemanha — e, por isso, estava em desvantagem no mini-campeonato a três. Sem novidades no onze inicial, Lage não mexeu nos eleitos e alinhou com os mesmos jogadores que tinham vencido no Bessa.
Adicionalmente, também não há outra maneira de ler o jogo desta noite no Estádio da Luz: houve a primeira e a segunda parte. Parece óbvio, já que fazem parte da mesma partida de futebol, mas foram completamente distintas. Ainda que a exercer o controlo da bola, o Benfica, o dos primeiros 45’, não conseguiu materializar em golos a posse. Faltava remate — fosse de meia distância, dentro da área, de cabeça ou com o pé. Durante a primeira metade, o Benfica estava por cima, mas chegava ao último terço e tinha uma muralha de São Petersburgo que impedia o golo. E isto acontece porque os russos viajaram para Lisboa com a lição bem estudada.
No primeiro tempo, a defesa russa esteve quase sempre compacta e não permitiu que o Benfica conseguisse criar situações de real perigo. Se alguém fosse rebobinar uma velhinha VHS e só tivesse tempo para ver o primeiro tempo, diria que Sergej Semak, treinador do Zenit, tinha montado um autêntica Fortaleza de São Pedro e São Paulo na Luz. E não é difícil explicá-lo. Em São Petersburgo, cidade ladeada pelo rio Neva, já se sabe que a noite invernosa não só é gelada, como parece não ter fim nesta altura do ano. Porém, em Lisboa, na primeira parte, aquilo que teimava em não ter fim eram mesmo as jogadas do Benfica: tinham troca de bola, cruzamentos, movimentações, mais cruzamentos, fossem da esquerda ou da direita, de Tavares ou de Grimaldo, mas fazer balançar a rede é que não faziam.
Lá na frente, Dzyuba, não tem 50 metros de altura — qual Torre de Alexandre, o monumento da Praça Hermitage —, mas quase parece que sim quando se olha para diferença de estatura sempre que o russo disputava bolas entre Chiquinho ou Pizzi. O primeiro, de resto, na primeira parte, ainda ia conseguindo arranjar espaços em que pudesse receber, recolher e distribuir a bola. Já o segundo, assim como Taarabt, estava com problemas em conseguir fazê-lo. O Zenit com o passar dos minutos foi ficando mais confortável. Aos poucos, a equipa russa ia ganhando terreno e ia conseguindo arrancar contra-ataques perigosos. (Um exemplo disso aconteceu aos 36’ quando um remate arrancou tinta ao poste de Odysseas.)
O público apoiava, queria mais, tentava levar os seus pupilos lá para a frente. No entanto, após sensivelmente 25 minutos de superioridade territorial, o Benfica estava a ceder terreno aos russos. Os astros estavam alinhados, isto é, o resultado em França ajudava, mas as águias ainda não tinham acutilado da melhor forma a direção à baliza adversária. Porque os encarnados chegavam à área dos russos — só que o miolo estava controlado pelo Zenit e a defesa limpava todos os lances. A equipa de Lage parecia dominar, mas era um domínio cedido pelo adversário; um domínio que não prestava contas a uma vassalagem baseada em superioridade por mérito próprio. O Benfica não precisava de floreado, precisava de meter a bola lá dentro. E não estava a consegui-lo. No final dos 45’, só por uma vez acertaram com a baliza de Mikhail Kerzhakov.
Porém, tudo se alterou na 2.ª parte. A estatística di-lo, o resultado evidencia-o e a passagem à Liga Europa confirma-o. Porque depois do espanhol Antonio Mateu apitar para que as duas equipas fossem até aos respetivos balneários, só faltava uma coisa: o golo. Por esta altura, com o Lyon a perder por 2-0, bastava ao Benfica ganhar pela margem mínima para atingir a próxima fase da Liga Europa. E isso parece ter ajudado na ginástica mental das águias. O Benfica saiu do balneário decidido, forte e a mostrar discernimento e, para isso, muito contribuiu Pizzi.
O capitão encarnado, na conferência de antevisão do jogo, tinha lamentado a falta de competitividade do Benfica na Europa. Mas tinha dito que o foco para esta noite era "vencer para dar a qualificação para a Liga Europa" e que a necessidade de vencer por dois ou mais golos "não podia mexer com a abordagem da equipa". E foi esta ideia que se viu na 2.ª parte. As palavras de Aleksei Sutormin, atacante da equipa de São Petersburgo, em declarações após o jogo, citado pelo site oficial da UEFA, ajudam a perceber a mudança de chip: "O Benfica controlou a bola muito bem na segunda parte". Osorio, defesa emprestado pelo FC Porto, foi mais longe e afirmou que o Zenit "perdeu a concentração após o intervalo" e que pagou "pelos erros que cometeram". O primeiro, foi cometido logo no início desta.
Foi aos 47’. Bom trabalho de Vinícius que abriu bem para a ala direita, onde estava Pizzi; este fez um trabalho soberbo, vê Cervi no coração da área e entrega uma bola rasteira, de bandeja, só a pedir um toque. Ou seja, no primeiro remate, no primeiro lance de real perigo, o Benfica fazia — finalmente — o marcador avançar. E ia fazê-lo 10 minutos depois, na sequência de uma grande penalidade cometida por Douglas Santos. Mas por partes.
Há lances susceptíveis de inúmeras interpretações e discussões no mundo de futebol. O caso que originou o penálti aos 57’, parece não ter sido um desses, pois o brasileiro não esteve de facto bem e tocou efetivamente a bola com a mão. Chamado à marcação de penalidade, Pizzi não tremeu e o capitão do Benfica empurrou os encarnados para uma margem mais confortável. Paradinha, bola para um lado, guarda-redes para o outro. Foi o terceiro golo do capitão do Benfica na Liga dos Campeões e o seu 16.º golo da época, um recorde pessoal e o seu melhor registo de sempre (quando ainda vamos a meio da época).
O que se seguiu foi um exercício de gestão. Uma gestão de posse de bola, de peças que têm sido importantes nos últimos jogos (dupla substituição aos 80’, quando Cervi deu lugar a Seferovic, ao passo que Samaris foi fazer o papel de Gabriel), de tranquilidade para que não existissem surpresas como aquelas agridoces de Leipzig. Contudo, não obstante a gestão, foi com alguma naturalidade que surgiu o terceiro golo do Benfica, face ao que se estava a passar em campo.
Aos 78’, Azmoun marcou na própria baliza na sequência dum canto marcado por Grimaldo, mas o lance que originou a bola parada podia ter dado golo, não fosse a pontinha da bota de Kerzhakov negar o tento a Vinicius. E um que espelhava bem o estado de espírito dos russos nesta altura, já com menos um jogador (Douglas Santos foi expulso antes do golo de Pizzi). Contudo, Carlos Vinícius, o homem golo dos encarnados que parece ter renascido nas últimas semanas, fez aquilo que não tem sido normal: perdoou numa situação em que estava cara-a-cara com o guardião adversário.
De resto, nesta fase, o Zenit parecia simplesmente não ter armas para ferir as águas. O único lance em toda a segunda parte digno de registo na área do Benfica acabou com Vlachodimos a levantar o braço e a dizer "presente". Foi Azmoun, o autor do autogolo, que, em volley, rematou com muito perigo, já dentro da área, mas o grego tocou com a ponta da luva por cima da barra.
Não obstante, apesar de ser esse o caso, a realidade do século XXI para grande parte dos benfiquistas era esta: um olho estava na televisão e o outro no dispositivo móvel a acompanhar o jogo em França. Especialmente quando aplicações desportivas começaram a sinalizar que o Lyon tinha feito a igualdade frente ao Leipzig. Isto é, estando as coisas como estavam, os alemães iriam acabar a fase de grupos em 1.º, os franceses em 2.º, o Benfica em 3.º e o Zenit ficaria na última posição. E, vistas bem as coisas, meia hora antes, a equipa de Semak tinha a passagem à fase seguinte da liga milionária bem encaminhada. Porém, volvidos três golos sem resposta por parte do Benfica, e sem ter sorte com o resultado que vinha do Parc Olympique Lyonnais, acabou por sair sem glória da Europa.
Na antevisão, perante os jornalistas, Lage tinha sido confrontado uma vez mais com as escolhas feitas ao longo desta competição. E, tal como já tinha acontecido anteriormente, o discurso do timoneiro benfiquista voltou a ser um velho conhecido: tinha confiança que tinha feito as melhores opções "a cada momento". A verdade, no entanto, é que hoje não mexeu e alinhou com o mesmo onze que goleou o Boavista (4-1) no Bessa, não havendo lugar a "rotatividades". E o clube da Luz seguiu em frente.
Grimaldo e Cervi estiveram sólidos, Ruben Dias e Ferro não tiveram momentos aflitivos; no ataque, Vinicius teve uma partida em que muito batalhou entre os centrais russos, Gabriel tentou ser um esteio no miolo e um parceiro de "pressão" encarnada no momento de recuperar a bola. Ainda assim, uma palavra final para Adel Taarabt:
O marroquino esteve firme a transportar e a pautar o jogo dos encarnados. A missão de executar os passes longos a rasgar fica normalmente a cargo de Gabriel, mas a verdade é que, nesta noite, o magrebino procurou sempre colocar a bola em zonas adiantadas no terreno e é dos seus pés que saem detalhes técnicos que fazem flamejar a alma dos adeptos. Hoje, ao ser eficaz no passe e no drible, não foi exceção, e provou mais uma vez que está num bom momento. E só não foi o melhor em campo porque houve simplesmente demasiado Pizzi.
Bitaites e postas de pescada
O que é que é isso, ó meu?
O lance do penálti. Não é difícil interpretar que Douglas Santos não abordou da melhor forma a jogada que originou o segundo golo do Benfica e o 16.º da época para Pizzi. Porém, onde é que o central tinha a cabeça quando abordou o lance desta forma? Mais, sabendo que já tinha sido admoestado com um amarelo na 1.ª parte? O esquerdino, de 25 anos, devia e podia ter feito melhor.
A vantagem de meter a bola entre as duas pernas
A exibição de Taarabt já foi elogiada uns parágrafos acima. Porém, desta vez o visado é o médio Aleksandr Erokhin. Porque às vezes é difícil resistir à falta. Só que noutras vezes é melhor deixar seguir certo tipo de lances. Foi um túnel bonito, espontâneo, com perfume. O estádio levantou como se dum golo se tratasse — e com razão. O marroquino, a continuar assim, arrisca-se a ser protagonista do FIFA 20 Volta, o modelo de jogo de futebol de rua do famoso simulador de futebol.
Fica na retina o bom futebol
A jogada do Benfica no lance do golo de Cervi, o primeiro a desbloquear a vitória que os encarnados tanto precisavam para não sair novamente das competições europeias. Começou com a simulação de Grimaldo, despontou com a arrancada de Gabriel, mas culminou com o trabalho de Pizzi. Bom momento das águias.
Nem com dois pulmões chegava a essa bola
Oleg Shatov não tem falta de resistência, nem de pulmão, mas a verdade é que andou um pouco perdido no jogo. Pizzi nunca está quieto, vagueia muito pelo miolo e isso pareceu baralhar as contas ao médio russo que fez o que pôde para auxiliar Douglas Santos no flanco esquerdo do Zenit. Em vários momentos, a par do seu companheiro, pareceu necessitar de bússola para seguir não só o extremo português como também as investidas de Tomás Tavares.
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