Na véspera do jogo dos oitavos de final do Rússia 2018, o aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, foi palco de um encontro (noturno) de nações, na porta N 44 A.

Viam-se camisolas do Brasil, Argentina, Peru (um dado curioso por estar já fora do Mundial), Colômbia; escutava-se o som de vários idiomas: espanhol, anglo-saxónico e asiático; e, outra coisa não seria de esperar, sentia-se a presença e a voz de Portugal, embora em número reduzido.

Quatro pessoas vestidas a rigor, com camisolas e cachecóis encarnados e verdes, destacam-se entre um ou outro conterrâneo menos comprometido com as cores nacionais. Dois pais, José Carlos e Manuel Martins, e dois filhos, Mariana Martins e Carlos Miguel. Ou antes, uma filha e um filho. O que dá um rácio de uma mulher para três homens neste grupo de adeptos das “Quinas”. E por falar em mulheres, e mães ficaram, como sempre tem acontecido, em Lisboa, pelo menos quando o assunto é futebol. “Estão à nossa espera. E a minha [esposa] já me disse que quando isto acabasse ia um mês de férias comigo”, frisa José Carlos, soltando uma gargalhada que denuncia quem “manda” lá em casa.

José e Manuel são amigos de longa data. Para além da amizade partilham a mesma profissão, trabalhando na área da distribuição. “Tratamos com supermercados”, especifica Manuel Martins.

Os quatro, pais e filhos, têm uma identificação ao pescoço com um número de adepto no Mundial (Fan ID), o que pressupõe uma ida prévia a solo russo, no caso à fase de grupos do campeonato de futebol. “Temos andado a distribuir fruta”, sorri.

Espera ficar “até à final”. A fé é corroborada por José Carlos. “Vamos andar por aqui [entre Portugal e a Rússia] um mês”, promete, copiando os votos do selecionador nacional há dois anos, em França. Uma fé que pode virar “pecado” para as respetivas mulheres.

Assim, depois de dois dias “a tratar de assuntos em Lisboa”, estão de regresso ao palco dos sonhos lusitanos.

Já para Madalena Martins, habitual espetadora do sofá, esta é a primeira vez que viaja para apoiar a seleção. “Costumava ver na televisão, mas fui convocada este ano e juntei-me à equipa titular”, refere a adepta, que anda pela Rússia a ser “paga” pelo esforço de ser “uma guia e tradutora para inglês”, ri, olhando para o pai, Manuel Martins, também ele novo nestas andanças de competições globais, embora tenha tido a felicidade de estar no Europeu de França. “Este é o meu primeiro mundial, sim, mas estive em França no Euro”, recorda. Na competição em que Portugal se sagrou campeão europeu, na companhia do amigo e colega José, faltou comer a cereja em cima do bolo. “Vi a fase de grupos e mais dois jogos”. O trabalho atraiçoou-o: “não vi a final”, lamenta.

Um carro alugado num descampado

José Carlos é um veterano nestas andanças de competições da bola que reúnem múltiplas nações num só país.

Para além de ter acompanhado ao vivo e a cores o Europeu de 2004, em Portugal, estreou-se de camisola das “Quinas” ao peito no europeu Holanda-Bélgica (2000). Seguiu-se o Mundial da Alemanha (2006), o Europeu da Suíça-Áustria (2008) e da Ucrânia-Polónia (2012), o Mundial do Brasil (2014) e, por fim, o Europeu de França (2016). Fez ainda um “estágio” na Taça das Confederações. “Foi para apalpar terreno”, contando com a companhia do amigo de sempre no país onde estiveram pela “primeira vez há 15 anos”, recorda.

O filho, Carlos Miguel foi companheiro de viagem em França. “Fomos até à final e agora espero que suceda o mesmo”, anseia o descendente.

O Europeu surgiu como balão de ensaio da receita que aplica ao descendente, uma receita que se replica na Rússia e que tem como ingrediente principal e único várias doses de portugalidade prontas para serem injetadas.

Nesta viagem por terras de Putin, José Carlos destaca a “simpatia e disponibilidade para ajudar” do povo russo.

Lamentam o trânsito “caótico” nas grandes cidades e no caminho entre elas. “Demoramos 11 horas para fazer 600 quilómetros”, suspira José Carlos, recordando o caminho de Saransk a Moscovo.

Nestes dias de aventura chegaram a ficar numa casa cujos “donos saíram de lá para irem, se calhar, para casa dos pais”. E chegaram a reservar uma noite em três cidades diferentes depois de um jogo.

E em Sochi, durante a fase de grupos, mostraram de que é feito também o ADN português. “Reservamos um carro, ligámos e um senhor veio buscar-nos e fomos até um descampado”, começa por contar. “Depois, mostrou-nos uns papéis para assinar. Perguntei se não tinham um contrato escrito em inglês”. Perante a resposta de “só russo”, vinda de quem só fala a língua local e é monossilábico na língua mais universal, não restou outra alternativa a este grupo de quatros pessoas, dois amigos acompanhados dos filhos, se não a de meter a cruz e seguir caminho, desenrascando-se.

As aventuras não se ficam por aqui. Continuam, pelo menos, até dia 2 de julho, dia em que regressam a Moscovo. “Ou ficamos, ou seguimos para Portugal”, remata Manuel Martins.

E para o fim deixam no ar um lamento. “Vimos poucos portugueses”. Ao invés, estão surpreendidos com o apoio de centenas de “asiáticos” que vestem as cores de Portugal.


Diário da Rússia é uma rubrica pela voz (e teclas) de Abílio Reis, Tomás Albino Gomes e Miguel Morgado e fotografia de Paulo Rascão, equipa do SAPO24 enviada à Rússia para fazer cobertura do Mundial. Um diário que é mais do que futebol, porque a bola não se faz só de bola, mas também das pessoas que fazem a festa. Acompanhe a competição a par e passo no Especial "Histórias de futebol em viagem pela Rússia".