Há uma entrevista em que conta que quando saía das aulas ficava na rua a jogar até tarde e que, nessa altura, o seu sonho era um dia jogar um Mundial. Acha que hoje, mais do que nunca, há cada vez mais raparigas a jogar à bola na rua e a partilhar o mesmo sonho?

Claro que sim, especialmente quando se organiza um Campeonato do Mundo em França, não é? As raparigas querem poder estar lá, ser jogadoras e estar no Mundial. Tenho a certeza. Hoje, não há limite para elas. No meu tempo não havia muitos jogos a passar na televisão e jogos de futebol feminino não havia nenhum. A pouco e pouco é que começaram a ser transmitidos os jogos da seleção francesa, depois dos clubes e agora estamos nas redes sociais. As raparigas de hoje têm sempre forma de nos seguir.

Então, se não via muito futebol na televisão, como é que começou a jogar?

O meu pai costumava jogar comigo e um dia, no recreio da escola, uma rapariga viu-me a brincar com uma bola e disse: "devias vir jogar para o Paris Saint-Germain". E eu pensei que, como gostava de futebol, talvez devesse ir. Um ano depois decidi tentar entrar para o PSG, não pelo nome, mas porque era o clube mais próximo de minha casa, vivia a 15 minutos de Saint-Germain.

Foi lá que fez a formação?

Não, comecei no PSG, mas fui estudar para o instituto e jogar no CNFE Clairefontaine [centro nacional francês de formação em futebol]. Depois recebi uma bolsa para ir estudar para o Boston College, nos Estados Unidos, e depois o Olympique Lyon disse-me "queremos a ganhar a Liga dos Campeões. Estamos a construir uma equipa para isso". Voltei e fui para o Lyon.

créditos: ODD ANDERSEN / AFP

Leitor, peço-lhe dois segundos de pausa nesta entrevista para recuperar uma informação que vale a pena. É que, minutos antes de falar com o SAPO24, Laura Georges estava no palco principal da Soccerex Europe a falar sobre crescimento do futebol feminino e uma das coisas que sublinhou, dos tempos em que era atleta é que, no futebol, o que faz a diferença é o líder.

E, segundo nos contou nesta entrevista, Jean-Michel Aulas, presidente do Lyon no dia em que ocorreu o telefonema em que a convidou para o clube, era esse líder. “Alguém lhe disse que gostava que ele investisse numa equipa feminina e ele investiu”, sem rodeios. Construiu uma equipa para ganhar sem nunca a deixar na sombra da equipa masculina. Aliás, a antiga internacional francesa diz que as condições para a equipa feminina eram bastante boas e que havia sempre muita interação com a equipa masculina. E sentia, sobretudo, a proximidade do presidente. Há um episódio que guarda com especial carinho, quando recebeu uma chamada de Aula, depois de se ter lesionado num jogo pela seleção, em que o dirigente do Lyon lhe disse que, assim que voltasse, iam ajudá-la a ficar bem porque a equipa precisava dela para o jogo da meia-final da Liga dos Campeões que se avizinhava.

Desculpe a interrupção, mas  as entrevistas também se fazem destas notas à margem. Voltemos.


É importante ter essas pessoas no futebol feminino, dispostas a investir, certo?

É importante ter bons líderes e uma verdadeira vontade de contribuir para o jogo. Mas para os outros que não sabem se o devem ou não fazer, digo-lhes para não terem medo, dêem uma oportunidade. Há pessoas que têm medo de investir, dizem "oh mulheres, não sei como lidar com isto". É estar envolvido em relações humanas e muitas vezes é apenas ter vontade.

Nova interrupção em benefício da história que estamos a contar, a história de Laura Georges e também do futebol jogado por mulheres. Para além de ter sido internacional francesa - vestiu 188 vezes a camisola da seleção -, de ter jogado pelo Lyon, Paris Saint-Germain e Bayern Munique, já depois de ter assumido a posição de secretária-geral e de vice-presidente da FFF, Laura foi embaixadora do Mundial deste ano que se realizou em França. Esteve na organização e promoveu-o.

No painel dizia que estar nas bancadas e no relvado são posições muito diferentes. Lá em baixo, a preocupação é se o relvado está bom para ser jogado. Lá em cima é como é que se vai encher um estádio.

Porque é que o Mundial deste ano foi um ponto de viragem no futebol feminino?

Porque trouxe a atenção de todo o mundo. A organização... não consigo dizer o quão boa foi a organização deste Mundial, tivemos muita humildade, as pessoas que trabalharam connosco, os voluntários que trabalharam connosco foram incríveis. Ao mesmo tempo, a seleção dos Estados Unidos levou a competição para o panorama mundial, com tudo o que aconteceu e até com a posição em relação ao presidente, e mostrou ao mundo que as mulheres são lutadoras, líderes e que se pode ter bom nível de futebol se dermos o melhor na organização.

Uma das coisas que marcou este Campeonato do Mundo foi a posição da seleção norte-americana em relação à Federação de Futebol dos Estados Unidos devido às diferenças de pagamentos e prémios de jogo para homens e mulheres. Em França existe uma distinção entre os pagamentos e os prémios à equipa feminina e masculina?

Cá, as mulheres são pagas com base nos contributos dos clubes, não dependem diretamente do dinheiro da Federação. O valor varia conforme o resultados dos jogos, se vencem, se perdem… Os homens igual, recebem uma percentagem do dinheiro que trazem [para a FFF] e as mulheres recebem a mesma percentagem do dinheiro que entra. É assim que dividimos.

Ou seja, a percentagem é a mesma, mas a quantidade é diferente.

É diferente porque os homens trazem o que trazem e as mulheres trazem o que trazem, mas é a mesma percentagem do que estão a trazer para a Federação.

Mesmo não falando de números, imagino que exista uma grande diferença de valores. A Federação Francesa de Futebol está, de alguma maneira, a trabalhar para encurtar a distância de valores?

A ideia não é diminuir o intervalo entre homens e mulheres, é continuar a desenvolver o futebol feminino. Este ano, pela primeira vez, assinámos com uma grande marca para patrocinar a liga feminina que se passa a chamar Arkema Division 1. Isso traz-nos uma certa quantidade de dinheiro por ano para cada clube. Portanto sim, estamos a ter a certeza de que apoiamos o jogo através de patrocinadores, dando as melhores condições possíveis às jogadoras da seleção nacional, apoiando o futebol amador e os clubes femininos. É assim que queremos continuar a desenvolver o futebol.

Quão distantes estamos de ver uma jogadora como Marta ou Megan Rapinoe receber a mesma quantidade de dinheiro que Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi?

É uma economia e nós temos de nos lembrar como é a economia do futebol, os valores das transferências, quantas camisolas são vendidas, por quanto são vendidos os direitos de transmissão... neste momento, nenhuma jogadora vende tantas camisolas ao ponto de o clube ganhar dinheiro com isso, temos poucas transferências e o mercado de venda de direitos televisivos está a começar a ser discutido. O dinheiro que alimenta o futebol feminino vem da vontade dos presidentes dos clubes. Neste momento, não acho que estejamos perto de alcançar os números dos homens, mas o objetivo não é ser igual a eles, é criar uma economia que possibilite o crescimento do jogo.

Não é futebol feminino, é futebol
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Esta nota pode parecer descontextualizada, mas, em duas perguntas, vai perceber a razão: a alcunha de Laura em campo era "Le Roc", "A Pedra", em português.

E uma das questões que mais curiosidade me despertava, antes desta entrevista, era  perceber o impacto direto que o futebol feminino tem na sociedade, onde se revela, onde se inspira, o que consegue de diferente neste mundo que não se quer comparar ao dos homens mas sim crescer sozinho.

Vê-se como um exemplo para as raparigas mais novas?

Não sei, mas gosto de apoiar raparigas que queiram fazer mais e melhor. Parte do meu trabalho passa muito por conversar e apoiar e eu sei que muitas me ouvem.

Acha que há alguma rapariga no recreio da escola a dizer "je suis Le Roc"?

[risos] Não sei, eu gostava que sim, mas não é o objetivo. Apenas encorajá-las.

Li que o seu ídolo era Lilian Thuram. Que faceta admira mais, a do jogador ou do ativista?

O que mais gostava nele é que era uma boa pessoa. Lembro-me quando estava em concentração com a equipa nacional, ele entrava sempre para dizer olá a toda a gente, não esperava que as jogadoras lhe dissessem olá primeiro, era sempre o primeiro cumprimentar-nos. Foi assim que nos tornamos amigos, tornamo-nos mesmo amigos. Durante o tempo em que ele ainda jogava, ligava-me para saber como estava, se estava tudo a correr bem. Lembro-me de uma vez ele me ligar para dizer que me ia ver ao estádio e apareceu no jogo das meias-finais do Mundial na Alemanha. Ia a alguns dos meus jogos com os filhos. Hoje continuamos a ver-nos, adoramos falar de futebol, é um ótimo conselheiro e um grande amigo.

Também se vê como uma ativista fora de campo?

Vejo-me apenas como uma pessoa que gosta de partilhar a sua experiência.

Não como Thuram faz?

Thuram fala de tudo e ele sabe que quer apoiar as crianças no desenvolvimento delas, ajudá-las a ser quem querem ser, reunir as pessoas, independentemente da cor da pele. Eu, gosto de fazer passar a mensagem sobre aquilo que sei.

Há racismo no futebol feminino?

Há alguns casos de racismo, mas não tão impactantes como muitas vezes acontece no futebol masculino. O público é diferente, é mais familiar. Se vir os vídeos do Mundial, há tantas crianças no estádio, pais, temos mais pessoas abertas à diferença.

E porque é que o público é diferente?

Porque as pessoas sentem que o jogo não é agressivo, sabem que as jogadoras são lutadoras e gostam da paixão delas. Gostam do que é em campo.

Estava-me agora a lembrar do documentário "Le Bleus". Conhece?

Sim, sobre as vitórias da seleção masculina em 1998 e 2000 e o impacto nas pessoas. Oui.

O documentário mostra muito a influência que o futebol pode ter na sociedade. Acha que o desenvolvimento do futebol feminino pode ajudar a melhorar a sociedade para melhor?

Sim, acho mesmo. Dou sempre o exemplo de Didier Drogba, quando depois do jogo em que a Costa do Marfim consegue a primeira presença num Campeonato do Mundo, ele pega no microfone e, em direto para a televisão nacional, disse 'precisamos de parar esta guerra'. Na altura, a Costa do Marfim estava em guerra civil, e ele falou com as pessoas, disse que temos de conseguir viver todos juntos. E, pouco tempo depois disto, a guerra acabou. O futebol tem este poder de fazer as pessoas felizes, de mudar as coisas, de consciencializar as pessoas.