O duelo entre Flamengo e Liverpool marcou não só um ponto alto no final da época do clube carioca, como foi a primeira vez, em muito tempo, que um campeão sul-americano conseguiu ao bater-se de frente com o campeão da Liga dos Campeões no Mundial de Clubes.
Ao fim deste percurso, o Flamengo fica na pole-position da, ainda distante, possibilidade de ser uma grande potência fora da Europa. Mas mais do que isso, este ano deixou lições importantes para os clubes do Campeonato Brasileiro:
1 – Saúde financeira faz diferença
Antes de alçar voos maiores, o Flamengo fez o trabalho de casa na sua gestão. Reduziu uma dívida enorme, cresceu as receitas e fortaleceu a marca com novos patrocinadores. Demorou, mas deixou o clube numa situação privilegiada no Brasil.
O impacto da saúde financeira ficou ainda mais evidente no caso do Cruzeiro em 2019. Bi-campeão brasileiro em 13 e 14 e da Copa do Brasil em 17 e 18, o clube tinha feito investimentos acima da sua capacidade financeira para atingir essas conquistas. Como tal, apresentou, para 2019, uma folha salarial acima do Flamengo, mas com metade da receita do clube carioca. Apostou em jogadores consagrados, mas envelhecidos, e os salários começaram a atrasar, o ambiente do balneário descarrilou e o clube foi parar à segunda divisão.
São Paulo e Corinthians, com as terceira e quarta maiores capacidades de faturação do país, apresentaram défices em 2019 de cerca de 30 milhões de euros (ME) cada. Soma-se a esses problemas a política amadora e confusa dos clubes. É a receita do fracasso, pois acabam por precisar de vender jovens talentos para acertar as contas e gastar demais com jogadores mais velhos e de qualidade duvidosa. O São Paulo, por exemplo, perdeu, recentemente, Militão para o Porto por 4ME e o viu ser negociado uma janela depois por 50ME. Vendeu David Neres para o Ajax por 12ME e viu o clube holandês rejeitar propostas de 40ME na janela seguinte. E agora, prepara-se para perder Antony no mesmo cenário.
O Flamengo, por outro lado, fez as maiores vendas da sua história com Paquetá e Vinicius Jr., mas não por que precisava do dinheiro, e sim porque eram propostas irrecusáveis. Aproveitou o dinheiro para montar o grande plantel deste ano.
Clubes como Botafogo, Fluminense, Santos, Atlético-MG e Vasco sofrem financeiramente. Com a exceção de Flamengo e Palmeiras, todos os outros atrasaram salários em 2019. Não por acaso, são os dois os principais concorrentes a todos os títulos no país.
2 – Planeamento e proposta de jogo
Jorge Jesus foi o grande nome do campeonato. Jorge Sampaoli o melhor trabalho ao longo de todo o ano. Nenhum dos dois fez grandes revoluções táticas, mas ambos mostraram como uma proposta de jogo bem trabalhada dá resultados.
Os treinadores brasileiros estão desatualizados e acomodados num mercado que paga bem e não sabe planear para além das “modas” da época. Apostam em nomes e não em propostas ou projetos. Uma equipa como o Palmeiras pode estar na dúvida entre o moderno Sampaoli e o ultrapassado Luxemburgo. Mudam de estilo de treinador como se não fizesse a menor diferença.
E, a cada ano, o caso de sucesso é replicado como se fosse a única receita do sucesso. A moda desta vez são os treinadores estrangeiros. Coudet foi para o Internacional. Jesualdo foi confirmado no Santos. Sampaoli pede fortunas para assinar com novo clube. Outros diversos nomes, principalmente de sul-americanos, foram ventilados nos boatos do mercado, sendo que isso não é planeamento, mas sim uma tentativa de copiar o que deu certo no Flamengo.
Flamengo, aliás, que começou 2019 a tentar replicar o sucesso do Palmeiras em 2018, com um treinador estilo “paizão” para gerir o balneário e a tentativa de ter um plantel largo com duas equipas para revezar entre as competições. Abel Braga não conseguiu fazer um jogo ofensivo de qualidade, afinal nunca foi esse seu estilo de futebol, e a ousada decisão de inovar e buscar em Jesus um treinador para mudar a proposta de campo da equipa provou-se acertada.
3 – Trabalhar a marca e o produto
Outra lição importante de 2019 é no foco comercial. Para o marketing desportivo, diferente do mercado tradicional, a força de uma marca de um clube, por exemplo, depende da força dos seus rivais. A Premier League e as ligas norte-americanas são os maiores exemplos de como um campeonato nivelado fica mais interessante comercialmente.
Ninguém quer ver um torneio onde apenas duas equipas, todos os anos, disputam o título com 85% de aproveitamento. Torna-se chato. O mesmo vale para o desnível entre equipas. O Brasileirão sempre foi muito equilibrado e a grande quantidade de concorrentes às posições do topo da tabela tornam o campeonato muito interessante. Mas é preciso melhorar o produto apresentado e haver organização para vendê-lo.
Em 2019, o Campeonato Brasileiro, por desorganização dos seus clubes, não foi comercializado para televisões internacionais. Somente o Flamengo, no fim do campeonato, vendeu jogos para serem transmitidos em Portugal. Um ano perdido em termos de exposição de marca.
Devido aos mesmos problemas de falta de união para negociar, a presença nos videojogos é pífia. O PES teve de negociar individualmente com cada clube para conseguir licenciá-los, mas não atualiza os seus elencos ao longo do ano. O FIFA tem alguns clubes, mas somente com jogadores fictícios. Nem a Seleção Brasileira tinha jogadores reais. Em 2020, o FIFA conseguiu, via Conmebol, licenciar a Libertadores e as equipas brasileiras participantes. Porque é que o Brasil não se consegue organizar sozinho e vender as suas propriedades para divulgar as suas marcas?
4 – Olhar para fora para aprender, mas valorizar o que é bom dentro de casa
Temos muito a aprender, no Brasil, com o futebol europeu. A globalização do futebol, pós Lei Bosman, criou um abismo entre os grandes clubes europeus e o resto do mundo. E eles caminharam rumo à excelência na gestão de marcas, na visão do futebol como entretenimento e no aperfeiçoamento técnico das suas áreas de preparação, formação e scouting.
Olhar para os casos de sucesso como inspiração, como fez o Flamengo, é fundamental para o futebol brasileiro passar à potência mundial, não só com a sua Seleção, mas com seus clubes e campeonatos. Entretanto, é justamente o seu estilo único que o diferenciou ao longo da história e isso não pode ser perdido.
Clubes com milhões de torcedores, mas com poder de aquisição menor do que a Europa, não podem sonhar com bilhetes aos mesmos preços. A formação não deve pensar em criar jogadores em “modelo-exportação” mas sim valorizar a técnica e inventividade do brasileiro. Importar modelos de jogo e táticas é importante, mas não pode se engessar o jogo baseado no talento como sempre gostamos por aqui.
O Brasil precisa de melhorar a sua organização, aprendendo com os melhores, mas não pode esquecer o seu grande fator de diferenciação para apresentar ao mundo o verdadeiro futebol brasileiro.
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