Se falarmos de Samuel Eto’o e Roger Milla, lembramo-nos imediatamente de futebol e depois do país africano que os deu a conhecer ao mundo: os Camarões. Os dois futebolistas são, muito provavelmente, as personalidades desportivas mais reconhecidas do país africano. A estes poderá juntar-se, a partir do próximo dia 20 de janeiro, Francis Ngannou, lutador de MMA da maior promotora do mundo: a Ultimate Fighting Championship (UFC).

Francis nasceu na cidade de Batié, que fica a noroeste de Yaoundé, capital dos Camarões. A sua infância ficou marcada pela pobreza, tendo começado a trabalhar aos 12 anos na extração de areia (principal indústria da sua cidade natal), para fazer face ao pouco dinheiro que havia no seu seio familiar.

Durante a sua adolescência, foi diversas vezes abordado por gangs para pertencer aos mesmos devido ao seu físico imponente, tendo em conta a idade. (E quando falamos em físico imponente, falamos de um indivíduo com 1,93 metros e aproximadamente 116 kilos. De massa e músculo.) Mas Ngannou rejeitou, pois tinha um objetivo maior: ser lutador de boxe profissional, de forma a mostrar à família que a má reputação que o seu pai tinha como lutador de rua, não seria um exemplo para ele. Este era o seu sonho.

Antevisão UFC 220: Quem é o 'baddest man' do planeta? Reveja o direto
Antevisão UFC 220: Quem é o 'baddest man' do planeta? Reveja o direto
Ver artigo

Ngannou foi introduzido no boxe aos 22 anos, ainda nos Camarões, onde treinou durante um ano, mas devido ao vírus hepatite B, foi obrigado a parar. Resolveu o problema, mas nunca se conseguiu preparar para a modalidade como profissional. O nível de treinos do Boxe nos Camarões era baixo e devido às condições difíceis em que vivia, tinha que aliar essa paixão com a realização de diversos trabalhos.

Paris, je suis arrivé

Aos 26 anos decide sair do seu país de origem, com 100 dólares no bolso, com o mesmo objetivo de sempre: tornar-se lutador de boxe profissional. O camaronês tinha dois destinos em mente — Inglaterra e Alemanha — que considerava serem referências ao nível da preparação e que lhe permitiriam ser profissional. No meio da viagem surgiu a oportunidade de ficar Paris, cidade de boa memória recente para os portugueses pelo Campeonato Europeu de Futebol de 2016. No entanto, para Ngannou, foi o sítio que lhe deu a oportunidade de iniciar a caminhada para atingir o topo do MMA Mundial.

Depois de algum tempo em Paris e a treinar em alguns ginásios, começaram-lhe a sugerir experimentar MMA, devido à dificuldade que era entrar no Mundo do Boxe. Até então, o “Predator” — como também é conhecido —, não fazia a mínima ideia do que era MMA, a UFC ou quem era Dana White (Presidente da UFC).

Apesar das dificuldades, Francis continuava a pensar no Boxe profissional como o seu futuro, mas aceitou um dos conselhos de um dos seus parceiros de treino para ir experimentar a MMA Factory. Este ginásio tem como principal treinador um dos nomes mais reconhecidos ao nível do MMA europeu, Fernand Lopez. Após conversar com o lutador e impressionado com a sua história — estava sozinho, sem dinheiro e sem casa para dormir —, o treinador aceitou-o, deu-lhe um sítio para ficar, roupa e equipamento de treino.

Treinar MMA para Ngannou era apenas diversão e nunca o escondeu dos treinadores do ginásio. Ele queria seguir uma carreira no mesmo desporto que o seu ídolo de infância “Iron” Mike Tyson. E Fernand Lopez, tinha ficado, desde o início, impressionado com a capacidade física, mental, motivacional e de aprendizagem do lutador e cedo percebeu que poderia estar perante um grande talento. Por outro lado, sempre teve para si que o objetivo do camaronês poderia não passar pelo MMA, como tal só lhe pedia para ele continuar a ir treinar. É que teimava em dizer que o sonho passava por ser campeão de boxe. Mas a treinar na MMA Factory com Fernand Lopez, o seu destino estava prestes a mudar.

A transição e o primeiro combate

Em 30 de novembro de 2013, a transição para o MMA foi realizada definitivamente, quando Ngannou se estreou numa competição de MMA, em França, com uma vitória. Consumava-se o fim do sonho de infância e início de outro, começava uma nova caminhada do “Príncipe do Batié”, rumo à maior promotora do Mundo. Dois anos depois de ter começado a treinar e a competir MMA, com cinco vitórias e uma derrota no seu palmarés e com experiência em diversas promotoras francesas e um combate na maior promotora do Bahrain, não existiam adversários que quisessem pisar o octógono com o camaronês.

Num perfil feito pela Bleacher Report em dezembro, Lopez diz que os lutadores em França deixaram de aceitar combates com o seu pupilo. Indica mesmo que chegou a colocar um desafio aberto na sua página de Facebook, a perguntar: "Alguém na Europa que lute com Francis"? Tentou arranjar-lhe combates de boxe, kickboxing e MMA, mas eram poucos aqueles que se atreviam. Depois, no 29 aniversário do "Predador", recebeu uma chamada inesperada: a UFC queria ter aquele enorme espécime de Baité, com quem ninguém parecia ter audácia de partilhar a jaula, nos seus quadros. Resta explicar que não é novidade para ninguém — que segue o mundo das artes marciais mistas, claro — que a maior promotora do mundo tem escassez de sangue fresco na divisão de Pesos Pesados. E agora tinha chegado a notícia que havia um homem muito grande sem adversários…

É necessário salientar, no entanto, que este trajeto torna-se ainda mais interessante, porque França é um caso especial no MMA europeu. A modalidade nunca foi bem vista no país, tendo regras específicas e diferentes do MMA dos restantes países. Inclusive, em 2016, o Ministério do Desporto publicou um decreto que não reconhecia o MMA como desporto oficial, o que, apesar de não proibir a existência de ginásios para treinar, proíbe a organização de competições oficiais de MMA para os atletas competirem.

A estreia e todos os combates realizados por Francis Ngannou na UFC nunca chegaram a decisão dos juízes — acontece quando não há nocaute ou uma submissão; se assim for, os juízes ficam responsáveis por definir o vencedor, através de pontuação. Após 5 combates, com outras tantas vitórias e a sua capacidade para finalizar os seus adversários, incluindo o ex campeão Andrei Arlovski, tornaram-no um dos homens mais temidos da UFC e uma das maiores promessas do MMA a nível Mundial.

Kobe Bryant and BODYARMOR to Announce Partnerships With 4 UFC Fighters and Unveil New UFC Flavor
créditos: Thos Robinson/Getty Images for BODYARMOR/AFP

De Batié para Vegas

Em maio de 2017, o “Predator” deu um novo passo na sua carreira e decidiu mudar-se definitivamente para os Estados Unidos da América, mais precisamente para a “Sin City” Las Vegas. A razão para a mudança prende-se com o facto do lutador sentir que necessitava de atingir um nível superior. Para isso, era necessário ter mais parceiros de treino — devido ao MMA estar proibido em França, existia uma falta deles na sua divisão — e também porque queria ficar mais próximo dos oficiais da UFC para ter um melhor acompanhamento.

A mudança coincidiu com a abertura do UFC Performance Institute (PI). Um espaço em Las Vegas, pensado para a melhoria das condições de preparação dos atletas para os seus combates. O UFC PI consegue conciliar num só local as instalações de treino mais evoluídas a nível tecnológico do MMA atualmente, com um conjunto de espaços para os atletas se alimentarem, suplementarem e descansarem de forma profissional. Foi neste espaço que Conor realizou a fase final de preparação para o seu combate contra Floyd “Money” Mayweather.

Francis Ngannou preparou-se, com o seu treinador de sempre Fernand Lopez, para o seu último desafio contra Alistar Overeem, no UFC PI. O combate ocorreu no UFC 218, em dezembro, e culminou de uma forma muito semelhante aos restantes combates, um nocaute no primeiro round por parte do camaronês.

Para a UFC, o camaronês pode representar a imagem do sucesso de um projeto que custou à promotora 14 milhões de dólares (cerca de 11,5 milhões de euros). Além disso, Francis, apesar de não ser fluente no inglês, tem conquistado um estatuto de grande estrela para a imprensa e patrocinadores, devido às suas exibições estrondosas e ao seu aspeto de jogador de futebol americano.

Deste modo os objetivos de Francis Ngannou e da UFC podem fusionar-se num só, este sábado, quando o título de peso pesado da UFC for disputado. O adversário é Stipe Miocic um bombeiro nas horas vagas, mas que, em caso de vitória, poderá tornar-se o campeão de peso pesado com o maior número de defesas de título bem-sucedidas e consecutivas da UFC.

Para Miocic parece uma tarefa fácil, uma vez que tem de vencer um lutador que vai contra todas as teorias de sucesso para um lutador de MMA; começou a treinar em 2013, aos 26 anos, sem qualquer tipo de background em artes marciais e que apenas tem 6 combates na UFC. Porém, a verdade, é que não é. O que trouxe Ngannou até aqui não foi só o talento que tem no MMA, mas também tudo aquilo que fez Fernand Lopez se apaixonar por ele: uma grande motivação para alcançar o sucesso nos desportos de combate.

Mais do que uma luta, para Francis, hoje com 31 anos, são duas bandeiras que representa. Os Camarões, país onde nasceu e onde quer ser um exemplo ajudando, além dos seus familiares, outras crianças a realizarem os seus sonhos, tal como ele o realizou. França, a sua segunda nacionalidade, em que pretende uma alteração de mentalidade em relação à maneira como o MMA é visto no país, o que poderá estar mais próximo tendo um dos melhores lutadores de MMA do Mundo.