Toda a gente é forçada a fazer escolhas. A natureza da tomada de decisões é tão inerente à experiência humana quanto qualquer outro ato que não o de respirar. Por isso mesmo, ela espelha-se todos os dias nosso quotidiano, seja nas capas de jornais, seja na rotina de cada um. Do rei Salomão a Neo, do filme “The Matrix”, são milhentas as variações do tortuoso ato de escolha ao longo da história e da ficção humanas.
A 23 de dezembro de 2019, a direção do Sporting de Braga tomou uma decisão, a de rescindir com Ricardo Sá Pinto. Quatro dias depois, tomou outra: a de contratar Rúben Amorim.
Neste preciso momento, essas duas escolhas agem como um viragem de 180º, um Yin tornado Yang e um Yang virado em Yin, para o clube bracarense, no que aos seus destinos, na Europa e a nível interno, concernem.
É que se Sá Pinto deixou o Sporting de Braga num desapontante oitavo lugar no campeonato nacional e já eliminado da Taça de Portugal, não é menos verdade que foi ele — conhecido acima de tudo pelo seu cunho para as provas a eliminar — quem apurou a equipa para os 16avos da Liga Europa sem derrotas.
Veja-se agora o seu sucessor: com Rúben Amorim ao leme, o Braga não só disparou para o terceiro lugar, como conquistou a Taça da Liga, conseguido ambos os feitos com personalidade e coerência. De resto, o seu percurso já foi discutido nestas linhas. Só que foi agora também sob as ordens do ex-médio que os arsenalistas caem de forma inglória da Liga Europa, mesmo depois de um percurso cintilante.
Faça-se um aparte: nada indica que o Braga teria sido necessariamente bem sucedido caso Sá Pinto se tivesse mantido treinador. Mas estes são os factos. Com as escolhas que o Sporting de Braga fez, passa agora a bitola do sonho europeu para a afirmação interna.
Este desenrolar de acontecimentos, sabe-se, teve origem na semana passada, quando o Braga, vencendo por 2-0 em Glasgow, deitou uma excelente exibição a perder com um lapso de concentração que durou apenas o suficiente para consentir três golos.
O caso era complicado, mas não irreversível: quem está habituado a lidar com fases a eliminar sabe que há derrotas e derrotas — perder por 2-1 em casa é bem pior que fazê-lo em terreno inóspito — e esse era o caso do Braga à entrada desta partida. Para lá das questões do orgulho ferido, o que interessava aqui era passar para a fase seguinte. E para isso “bastava” uma vitória pela margem mínima.
O adjunto de Rúben Amorim, Micael Sequeira, aliás, aludiu a isso mesmo na antevisão da partida, dizendo que os seus jogadores, apesar de em alerta para a qualidade do Rangers, estariam “confortáveis” dado trazerem dois golos da Escócia.
O contexto, de resto, apesar da derrota, apresentava ainda outras facetas positivas, começando pela resposta que a turma arsenalista deu à queda europeia — numa vitória suada, mas justa, em casa contra o Vitória de Setúbal, por 3-1, no sábado — ePara tal porém terminando no facto de Steven Gerrard não poder contar com nenhum ponta de lança de raiz para este jogo, tendo Morales castigado e Defoe lesionado, e tendo a sua equipa vindo de um empate com o St. Johnstone, que a afastou ainda mais do título escocês.
Para esta partida, Amorim manteve-se fiel ao seu modelo de jogo, voltando a alinhar com três centrais. Todavia, alguns nomes mudaram para esta convocatória. A acompanhar Bruno Viana e Raúl Silva na última linha defensiva esteve David Carmo, com o defesa central de 20 anos a finalmente merecer uma chamada europeia perante a lesão de Wallace. De resto, Sequeira (que se lesionou no fim de semana mas recuperou a tempo) e Esgaio voltaram a preencher as alas, ficando o miolo do terreno de novo a cargo de Palhinha e Fransérgio.
A outra alteração de menção deu-se à frente, pois se Paulinho e Trincão voltaram a repetir os papéis que cumpriram em Glasgow, Abel Ruiz desta vez ficou no banco para dar lugar ao (possivelmente) MVP do Braga nesta época, Ricardo Horta.
No entanto, se o técnico português quis manter a mesma ideia que levou para a Escócia — dominância, pressão, exuberância —, Steven Gerrard veio à Pedreira ciente de que teria de mudar os papéis se quisesse sobreviver à eliminatória, e foi exactamente isso o que aconteceu. A Braga, chegou um Rangers “italiano”, com o qual os minhotos não souberam lidar.
A partida iniciou-se e logo os avançados do Braga subiram que nem flechas para começar a fazer pressão sobre a linha defensiva do Rangers. Ao fim de uns minutos, estava desenhado o esquema perclitante sobre o qual o jogo se iria equilibrar: os arsenalistas a pressionar muito em cima e a avançar as suas linhas, ficando os escoceses em contenção até ao momento de contra-atacar e aproveitar o espaço nas costas.
Apesar de ter mais bola e de realizar mais passes, o Braga foi tendo dificuldade em penetrar os espaços interiores do Rangers, sendo forçado a trocar entre a bola entre flancos — com passagem pelos defesas centrais —, sem conseguir entrar numa fortaleza fechada em copas. Faltava rasgo e critério para desabá-la.
Com essa disposição, a turma de Steven Gerrard, jogando com doses generosas de cinismo e controlo, foi sustendo as investidas para depois se lançar em direção à baliza de Matheus. Foi assim, aliás, que colecionou vários lances de golo, ocorrendo sempre que um jogador do Rangers ultrapassava a linha de centrais do Braga, posicionada a meio-campo e algo propensa a erros (em especial Raúl Silva)
Desta forma, o Braga pode considerar-se algo feliz em não ter consentido um golo que complicava severamente a passagem: primeiro, porque Kamberi não é Morales e não só foi apanhado repetidamente em fora-de-jogo como atirou à figura do guarda-redes bracarense, isolado; segundo, porque Kent tinha as botas descalibradas, e depois de um grande lance de Hagi, daqueles que deixaria o seu pai orgulhoso, disparou ao lado.
O Braga, porém, apesar de não traduzir o seu domínio num vendaval ofensivo, somou dois lances de golo de seguida. A sua primeira situação consistiu num cabeceamento quase letal de Paulinho, negado por grande defesa de Allan McGregor, a responder a um cruzamento tenso de Sequeira, que recebeu a bola solto de marcação depois de um bailado de Trincão. Pouco depois, o lateral português voltou a estar em evidência, desta vez dando para Fransérgio, que de cabeça atirou ao lado.
Até ao final da primeira parte, o jogo dividiu-se mas um lance capital podia ter definido o resto da partida e, consequentemente da eliminatória. Na marcação de um canto, a bola encontrou o caminho da mão de Raúl Silva e foi marcado penálti para o Rangers. No entanto, Matheus estava decidido a manter o sonho arsenalista vivo, e fez uma grande parada ao remate de Hagi. Com a sobrevivência garantida, o ascendente estava agora do lado do Braga, ao intervalo.
Foi aqui, porém, que tudo ficou decidido, e contra o Braga. Rúben Amorim, sentindo o aperto de 45 minutos sem tentos, tirou Palhinha e fez entrar Novais. Não contente, pouco depois de começar a segunda-parte, fez Galeno substituir Raúl Silva, baixando Sequeira para central. A ideia era de dar ainda mais folgo ao ataque bracarense, mas a estratégia saiu furada, já que não só não resultou em mais lances de perigo, como até foi a sua equipa a sofrer golo.
O Braga já tinha recebido uma “carta para fugir da prisão” (em linguagem monopoliana) com a defesa do penálti, mas à segunda foi mesmo fatal. A equipa da casa mantinha as tentativas de sufoco, mas sem tirar o ar, já que a cada hesitação, o Rangers mandava uma golfada. Numa delas, Fransérgio perde a bola, Hagi lança a bola para Kent nas costas da defesa e este, fugindo a Sequeira, atirou cruzado para dentro da baliza.
O golpe revelou-se por demais fatal: por um lado, o Braga tinha agora de marcar dois golos; por outro, lançar-se para o ataque de forma desenfreada continha o risco de sofrer ainda mais e acabar com a eliminatória em definitivo.
Nesta indecisão, Rúben Amorim acabou por reter as piores características do Braga durante o jogo, mantendo a defesa subida e altamente permeável a contra-ataques, mas sem dotar o ataque de criatividade suficiente (não ajudou que Trincão tivesse tido demasiados acessos de individualismo), criando perigo significativo apenas de bola parada.
Mesmo já com Abel Ruiz em jogo, foi Paulinho o jogador em contínuos diálogos frustrados com a baliza contrária, atirando duas vezes mais de cabeça, uma ao poste e outra por cima da barra. Em resposta, o Rangers também acertou uma no ferro, sendo que o último lance de perigo da partida pertenceu aos escoceses, com Ojo, entrado na partida, a obrigar Matheus a estirar-se num remate de meia distância.
Amargo não chega para descrever o sentimento generalizado após o apito final. A queda da Liga Europa não deverá pôr em causa Rúben Amorim nem o trabalho que tem vindo a desenvolver no Braga. Mas que perdeu, perdeu, e perdeu bem.
Bitaites e postas de pescada
O que é que é isso, ó meu?
Não perdeu o seu estado de graça, mas vai deixar de brilhar como o fizera até então. Rúben Amorim teve o seu primeiro grande dissabor ao serviço do Sporting de Braga e a responsabilidade recai, sobretudo, nos seus ombros. Se em Glasgow, a sua equipa foi incapaz de manter uma vantagem que a atirava de cabeça para os oitavos de final, na Pedreira, a estratégia de pressão foi incapaz de ferir o bloco defensivo do Rangers. Que ambos os jogos sirvam de aprendizagem.
Hagi, a vantagem de ter duas pernas
É estranho o percurso de Ianis Hagi. Talvez esta perspetiva seja enviesada pelo panorama do atual mercado desportivo, onde promessas cada vez mais novas são captadas pelos grandes clubes, mas sendo ele filho de realeza do futebol romeno — e dos saudosistas dos anos 90 — é curioso como o médio ofensivo ainda não se afirmou em pleno. No seu currículo está uma passagem pelo Viitorul Constanța, no qual venceu umas taças, mas sem impressionar nos belgas do Genk, foi emprestado a este Rangers onde se está a afirmar em pleno. Hoje deu mais uma demonstração do sangue que lhe corre nas veias, sendo a principal unidade ofensiva da equipa, coroando a perfomance com o passe a rasgar para Kent, que deu em golo.
Fica na retina o cheiro de bom futebol
Raúl Silva perde a bola, Hagis recupera, dá uma "nozada" a outro jogador do Braga antes de abrir para Kent. Do outro lado, Trincão, tem um pormenor delicioso que solta Esgaio pela ala. Num jogo onde a doçura não abundou, estes foram os rebuçados disponíveis.
Nem com dois pulmões chegava a essa bola
Se as grandes conquistas costumam ser atingidas sobre os ombros de gigantes, os maiores falhanços ocorrem sobre pés de barro. O golo fatal não foi da sua responsabilidade, mas Raúl Silva foi claramente a unidade menos do Sporting de Braga enquanto esteve em campo. O central brasileiro perdeu mais do que uma bola que podia ter sido fatal, fez uma falta à entrada da área que resultou num livre ao jeito de Hagi (que o jovem médio não aproveitou) e essa imprudência voltou a revelar-se no pénalti que cometeu e que só não foi mais grave porque Matheus salvou. Sem surpresas, foi um dos sacrificados.
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