Respondendo à questão “O que significa este título para o Rangers?”, Steven Gerrard disse que a pergunta tinha sido direcionada à pessoa errada. Essa era uma pergunta para os adeptos e para as pessoas que passaram pela maioria da dor. A antiga lenda do Liverpool disse ainda que teve algumas situações menos boas nos últimos três anos, mas que não passou por nada que se compare com o que os adeptos, os ex-treinadores e ex-jogadores do clube passaram.

A melhor parte dos últimos dias foi, para Gerrard, a reacção de alguns dos colaboradores do clube que acompanharam toda a situação vivida pelo clube nos últimos dez anos. "Foi muito especial ver o alívio e as emoções dos mesmos", conclui o treinador inglês. Mas afinal por que passou o Rangers nos últimos dez anos? Comecemos a viagem pela amargura.

O ano que marcou o início de uma nova Era

A história de vendas e aquisições do Rangers, de problemas com o fisco e de penalizações é não só longa, na última década, como é complexa. Como tal um resumo do sucedido é adequado para percebermos o que aconteceu em 2012, mas acima de tudo, onde começou o verdadeiro problema que levou o clube ao fundo poço do futebol escocês.

14 de fevereiro de 2012 - O Rangers abre processo de falência;

13 de maio de 2012 - Charles Green assume o controlo do clube através da criação de uma empresa, a Sevco Scotland, na tentativa de evitar a falências do histórico clube;

7 de junho de 2012 - A proposta de restruturação apresentada é rejeitada pelo principal credor do clube, o HMRC (as finanças britânicas);

13 de julho de 2012 - A Liga de Futebol Escocês anuncia que o Rangers irá descer à Division 3, que corresponde ao quinto escalão de futebol da Escócia;

31 de julho de 2012 - O Rangers muda de nome para The Rangers FC Limited

11 de agosto de 2012 - O Rangers realiza o seu primeiro jogo na Division 3

Como poderemos ver de seguida, este é um caso extremo de irresponsabilidade e uma estratégia adotada, infelizmente, por muitos outros clubes. O Rangers, neste caso nas pessoas de David Murray - proprietário de 1988 a 2006 - e de Craig Whyte - proprietário de 2006 a 2012 -, navegou tempo demais num mar de dívidas, acabando por perder o rumo até à dolorosa extinção.

Anos de êxitos a mascarar uma gestão ilegal

Entre 2003 e 2011 o Rangers venceu o campeonato cinco vezes e chegou a uma final da Taça UEFA. A vontade desmedida de competir com um Celtic, que historicamente tem mais capacidade de gerar receitas do que o Rangers, tendo uma organização financeira mais estável, levariam o clube à situação desesperante resumida acima.

Tudo começou nos anos 90, quando o proprietário do clube, David Murray, insistiu numa política de contratações desmedidas, das quais fizeram parte nomes como Paul Gascoigne, Brian Laudrup, Duncan Ferguson, Giovanni van Bronckhorst, Ronald de Boer, Tore André Flo ou Frank de Boer. Não só algumas destas transferências atingiram valores extremamente elevados para a altura, como o salário auferido pelos mesmos criou um desequilíbrio financeiro na estrutura.

Os sinais de ambição desmedida poderiam ter feito soar sinais de alarme quando David Murray disse em 1998: “Por cada cinco libras que o Celtic gastar, nós gastaremos 10.”

Em três anos, de 1998 e 2001, o saldo entre contrações e vendas de jogadores terminou nos 67.13 milhões de libras negativos. Pelo meio, em 1999 o Banco da Escócia ficou com 7% do clube devido ao escalar da dívida.

De 1989 a 2000 o Rangers vencera 11 de 12 títulos, sendo que nove deles foram seguidos. Terá valido a pena?

A dinastia do clube parecia imparável, mas existia um problema, uma sombra: todo o sucesso estava a ser construído sob dívida. E quando a base não é forte o suficiente, não demora muito a que a estrutura ceda.

Em 2004, o Rangers devia mais de 74 milhões de libras a instituições financeiras. Apesar das largas quantias de dinheiro despendidas em jogadores ter abrandado, o clube continuava em situação económica precária e teve que criar novas soluções de subsistência, como a criação de um fundo para o qual o Rangers pagava somas de dinheiro e este, por sua vez, emprestava dinheiro aos jogadores e funcionários, dinheiro esse que, em teoria, era prometido ser pago de volta. Na prática não existia qualquer intenção de devolver esse mesmo dinheiro e esse “empréstimo” era encarado como salário. Não só era ilegal, uma vez que esses empréstimos não poderiam ser feitos a pessoas em situação contratual com o clube, como se situava numa zona muito cinzenta dentro do sistema de impostos. O clube acabou mais tarde por ser sancionado com uma multa de 50 milhões de libras por fuga aos impostos.

Em 2006, época de transição de proprietário por uma libra apenas, entre David Murray e Craig Whyte, o clube estava de rastos. Entre 2006 e 2012, as promessas de resolução dos empréstimos feitos pelo clube e da liquidação da dívida às finanças nunca foi concretizada e em 2012, aquando da saída de Craig Whyte do clube, este deixou para trás 140 milhões de libras em dívida, com 276 vitimas em credores.

Das finanças, às quais o clube devia a módica quantia de 93 milhões de libras, à loja de conveniência junto ao estádio, à qual o clube devia 567.45 libras. Os credores burlados, incluíram 6000 adeptos que compraram bilhetes de época num valor total de sete milhões de libras e que viram o seu investimento perdido.

Da mudança de proprietário à incapacidade de resolução dos problemas financeiros, o Rangers acabaria, em 2012, como vimos acima, por ter que mudar de nome - para Rangers FC Limited - e ser obrigado a descer ao quinto escalão inglês.

Dave King, Steven Gerrard e o título tão desejado

“De longe o título mais importante que o clube alguma vez venceu.” As palavras são de Dave King, o homem que entrara no clube em 2000, investira na altura 20 milhões da sua fortuna pessoal, e que voltara a investir no clube novamente aquando da recuperação do mesmo. A sua influência não é apenas financeira, é também técnica, uma vez que foi um dos responsáveis pela ida de Steven Gerrard para o clube.

Com uma vantagem de 20 pontos sobre o arqui-rival Celtic, o Rangers sagrou-se campeão escocês pela quinquagésima quinta vez, precisamente no mês em que completa 149 anos de história. O herói mais visível, em conjunto com os jogadores é Steven Gerrard, o treinador que conseguiu o que muitos tentavam há algum tempo.

Steven Gerrard chegou ao Rangers a 4 de maio de 2018 com o objetivo de recuperar o clube e de o trazer de volta à ribalta do futebol escocês. A pressão não poderia ser maior, não só pela insegurança e rotação de treinadores no clube, como o facto de este ser a primeira experiência de Gerrard como treinador principal. Mas o antigo internacional inglês e os seus jogadores não só venceram o campeonato invictos - pelo menos até ao momento em que foram campeões, uma vez que ainda falta um jogo de primeira fase de campeonato e cinco de playoff - como impediram o Celtic de vencer o campeonato pela décima vez consecutiva, um feito nunca antes alcançado, apesar do Celtic, por duas vezes, e do Rangers por uma vez, terem sido campeões por nove vezes consecutivas.

Este é um exemplo para muitos outros clubes espalhados pelo mundo. A instabilidade financeira no futebol é gritante e o Rangers não foi o primeiro e com toda a certeza não será o último, a pagar pela ganância e falta de sentido cívico de pessoas para quem ganhar, é uma meta que pode ser atingida a qualquer custo.