Ep. 2 - Geração de Ouro, o futuro chegou

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Estalou, estalando e fez ruído. O ditado diz que foi o verniz; a realidade e a história contam que foi o discernimento e a paciência d'“Os Infantes” de Paião no México em 1986. Foi esse estrondo, esse murro na mesa, que permitiu que as estrelas do futuro chegassem onde as gerações antigas apenas puderam sonhar.  O tumulto mexicano serviu para começar a encarar a necessidade de toda uma reformulação da estrutura do futebol a nível de seleções em Portugal. Para se ir ao encontro das expectativas criadas à priori, era preciso mudar muita coisa.

Depois de Saltillo, era tempo de profissionalizar e planear de maneira ganhadora. Só que a mudança ia acontecer devagar, devagarinho. Um passo para trás, para dar dois à frente. A ambição, essa, era de chegar àquele sítio onde se toca praticamente no céu e onde só figuram os notáveis, os notáveis que preenchem as páginas de história. Esse sítio era o primeiro lugar, o pódio, o saber que fomos os melhores entre os melhores. E o futuro assentava, mesmo que ainda não se soubesse, nesse caminho que se faz devagar, naquela que ficaria conhecida como a Geração de Ouro do futebol português. O ouro que fervilhava no sangue novo das nossas seleções jovens, especialmente num grupo que estava prestes a chegar a Riade, capital da Arábia Saudita, e conseguir algo nunca antes feito. Os próprios descreveram o sentimento que espelhava o grupo, 25 anos após a conquista do troféu, com palavras que não deixam margem para dúvidas: “incrível”, “eternidade”, “fantástica”, “mudança”, “união” ou “história”.

Portugal despedia-se, por essa altura, dos anos 80. Uma despedida em modo auspicioso – a adesão à União Europeia, então CEE, marcara uma viragem no fado da década. Há um país na primeira metade dos anos 80 que já não era o mesmo menos de dez anos depois. O país longínquo da Europa sentia-se agora francamente europeu –a política, os costumes, a música, a moda, a movida da noite mostravam isso mesmo. Havia um clima de entusiasmo que tinha tanto de estado de espírito como de condição palpável, material. Chegava dinheiro da Europa, muito dinheiro. O país que vivera no início dos anos 80 uma intervenção do FMI, fome e milhares com salários em atraso estava agora perante um cenário de quase-pleno emprego.

Tudo isto ao mesmo tempo que o mundo parecia caminhar para o tal “fim da História” profetizado pelo filósofo e economista Francis Fukuyama, em que a democracia e o capitalismo liberal iriam conviver cordialmente no mundo e estabelecer um mesmo padrão para todos os povos. Afinal, quem pensaria, em 1985, enquanto via o teledisco da música Nikita (sim, eram telediscos na época) de Elton John, que em pouco tempo o muro de Berlim cairia e a União Soviética teria um Mikhail Gorbachov, amado pelo ocidente e pai da perestroika. É verdade que nem tudo era assim tão idílico. Lá fora, na China, em junho de 1989, os estudantes pediam reformas políticas na Praça de Tiananmen, em Pequim, enquanto o Exército Vermelho protagonizava um dos momentos negros da história do século XX no portão de entrada da Cidade Proibida.

"Acho que o futebol não está nada desligado do otimismo que se viveu em Portugal no início dos anos 90"

Mas os tempos eram intensos e se, em Portugal, se fizesse um inquérito ao sentimento prevalecente seria claramente o de otimismo. Tudo favorecia que a tal geração de ouro pudesse ter condições para brilhar. "Acho que o futebol não está nada desligado do otimismo que se viveu em Portugal no início dos anos 90", afirma Samuel Úria, músico e apaixonado por futebol. "Tinha passado o tempo certo desde o 25 de abril para nos enchermos destes ares positivos".

Hoje, seriam conhecidos pela seleção sub-20. Na altura, eram mais conhecidos por aquilo que eram: Esperanças. E que bem que assentava o nome ao estado de espírito que então se vivia. E foi o que estas esperanças fizeram em 1989 e 1991 que permitiu que outros, décadas mais tarde, pudessem correr até ao título europeu ao nível sénior. O capitão dessa seleção de esperanças que trouxe a taça de campeões de Riade, Tozé, não tem dúvidas: ele que acredita que foi a “geração de ouro” do futebol português que abriu caminho à aposta na formação e ao estatuto de alta competição, permitindo aos jovens competir sem importunar os estudos. “Acho que fomos nós que abrimos as portas ao facto de, hoje, o futebol de formação ser diferente”, disse numa entrevista.

Hoje, é consensual que estes jogadores eram feitos de uma matéria preciosa e brilhante – mas, tão importante quanto isso, também dócil e maleável. Foram estas características que permitiram ao então treinador das Esperanças virar uma página no futebol português e iniciar uma nova era. Quem era esse treinador? Chama-se Carlos Queiroz, e ele sim, está longe de ser um personagem consensual ao longos de três décadas de trabalho no futebol português e internacional. Mas num determinado ponto da sua história, e da história da seleção nacional, é difícil encontrar quem não esteja de acordo: foram os seus métodos, foi a sua convicção na importância da preparação, foi a sua forma de liderar os “miúdos” de Riade que permitiu lançar a primeira pedra de uma nova era da equipa nacional.

"Carlos Queiroz era apresentado como o português de sucesso, de um país que se estava a modernizar. O homem novo"

"Acho que verdadeiramente a justiça nunca foi completamente feita a Carlos Queiroz. Ele é o homem que muda a história da seleção nacional", considera Carlos Daniel, jornalista da RTP. Uma ideia corroborada por Vítor Serpa, diretor do jornal "A Bola", para quem Queiroz criou "um conceito valioso para um treinador de futebol que é que a equipa é mais que a soma das partes".

Além das suas competências técnicas e de liderança, o selecionador das Esperanças assentava que nem uma luva à época que se vivia. "Carlos Queiroz era apresentado como o português de sucesso, de um país que se estava a modernizar. O homem novo", recorda o sociólogo Pedro Adão e Silva. Para Camilo Lourenço, ele representa também um corte necessário com uma visão perdedora que já não tinha eco no sentimento dos portugueses, nomeadamente os mais novos."O Carlos Queiroz faz exatamente o contrário, começa a meter na cabeça dos jogadores que são tão bons ou melhores do que os outros". Conta a propósito uma memória de 1984, quando Portugal chegou às meias-finais no Europeu de França, em 1984. "Eu ouvi Alves dos Santos, de quem gostava muito, dizer, 'agora já podemos perder, já mostrámos ao mundo que somos bons'. E isso chocou-me bastante, porque pensei 'isto não é a minha geração, a minha geração quer é ganhar'".

"Nós à portuguesa gostamos de plantar de manhã e ir ver logo à tarde se já lá estão os frutos, e os frutos penso que chegaram até mais cedo"

As duas vitórias seguidas - em 1989 e em 1991 - podem ter deixado a impressão a muitos que foi fácil. Mas, como sublinha Toni, ex-jogador e treinador de futebol, não é verdade. "Houve quem pensasse que era fácil - no entanto, nunca mais aconteceu". Também ele se junta aos elogios ao trabalho de Carlos Queiroz e aos resultados que trouxe ao futebol português. "Nós, à portuguesa, gostamos de plantar de manhã e ir ver logo à tarde se já lá estão os frutos, e os frutos penso que chegaram até mais cedo, fruto desse trabalho e da qualidade dos jogadores que foi possível juntar", refere o homem que fazia parte da comissão técnica que comandou a Seleção Nacional no Europeu de 1984, em França.

Na caminhada para o título no Campeonato Mundial de Juniores de Futebol, em Riade, a seleção portuguesa perdeu apenas um jogo, na terceira jornada da fase de grupos, frente à Arábia Saudita, por 3-0, quando o apuramento já estava garantido, fruto dos triunfos sobre a Checoslováquia e a Nigéria, ambos por 1-0. Na final, houve reencontro com os africanos, desta feita por 2-0, com golos de Abel Silva (44 minutos) e Jorge Couto (76). O que nos leva ao próximo campeonato do mundo, em casa do país vencedor, dois anos depois. Braga, Faro, Guimarães, Lisboa e Porto foram as cidades contempladas a receber os jovens craques.

O ano era o 1991. Ano em que o houve uma tentativa de golpe de estado para retirar Mikhail Gorbachov da liderança da União Soviética enquanto estava de férias na Crimeia. Ano do início da primeira guerra do Golfo. Ano em que Ayrton Senna se sagrou tricampeão na Fórmula 1 e se chorou a morte de Freddy Mercury. Cavaco Silva é reeleito primeiro-ministro e a A1, que liga Lisboa ao Porto, foi inaugurada. E foi tabém o ano em que, a 25 de dezembro, o mesmo Gorbachov renunciava ao cargo, o que culmina com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Mas seria a 30 de Junho de 1991, perante mais de 127.000 espectadores e diante do Brasil de Élber e Roberto Carlos, que Portugal revalidaria o título conquistado dois anos antes em Riade. No mesmo mês, era inaugurada a Ponte de São João, que liga a cidade do Porto. Meses antes, em janeiro, houve eleições, nas quais Mário Soares é reeleito presidente da República Portuguesa, com cerca de 70% dos votos.

Após um jogo muito tático, quase sem oportunidades e sem qualquer golo em 120 minutos, uma equipa de futuras “estrelas”, como Figo, Rui Costa ou João Vieira Pinto, venceu no desempate por grandes penalidades. Jorge Costa, Figo, Paulo Torres não falharam, tal como Rui Costa, que marcou o pontapé decisivo (4-2) e selou o segundo e até agora último título mundial de Portugal, frente a um Brasil com grandes jogadores, como Roberto Carlos ou Elber.

Emílio Peixe foi considerado o melhor jogador de um torneio em que o melhor marcador foi Cherbakov, que viria a vestir a camisola do Sporting (e que tragicamente deixou de poder andar na sequência de um acidente em Lisboa, em dezembro de 1993), e em que sobressaíram futebolistas como Rui Costa, Luís Figo, Jorge Costa, Abel Xavier, Toni, Gil, Paulo Torres, João Vieira Pinto e Brassard (sendo que estes dois últimos estiveram presentes em ambas as competições - 1989 e 1991 -, apesar do guarda-redes não ter jogado na Arábia Saudita).

Como recorda Carlos Daniel, Portugal era, na altura, um país que tinha poucos talentos "exportados", por assim dizer . Até à década de 90 os "emigrantes" futebolistas eram pontuais e poucos alcançavam verdadeiro estatuto de estrelas internacionais (exceção para Paulo Futre, claro, e Rui Barros), mas depois destas vitórias Portugal passou a ter, poucos anos depois, craques nas grandes equipas da Europa. A partir da Geração de Ouro, Portugal tinha equipa para mostrar ao mundo que era um país moderno, contemporâneo. Que tinha mudado.

"É fácil ter alegria quando se ganha e se é campeão"

Sob o comando de Carlos Queiroz, Portugal construía a sua “Geração de Ouro”, que, entretanto, já “desapareceu”, sem conseguir, nos seniores, conquistar qualquer título. Com a Geração de Ouro percebemos que era possível. Que podíamos – de facto, que conseguíamos – chegar lá. E foi nesse país em modo “tudo é possível” que se desenhou o futuro da Seleção Nacional.

Foi com essa mesma geração (ou parte dela), a base de jogadores campeões mundiais de sub-20 em 1989 e 1991, que Portugal chegou às meias-finais do Euro 2000, com um futebol notável, à final do “nosso” Euro 2004, perdida ingloriamente para a Grécia, e, já "só" com Figo, às meias-finais do Mundial 2006.

As vitórias de 1989 e de 1991 permitiram ao país ver-se ao espelho de forma diferente. Mais moderno, mais competitivo, mais europeu, mais igual aos outros de quem se habituara ao longo de décadas a considerar distante. A professora e investigadora Raquel Vaz Pinto refere-se a essa forma de nos olharmos como a identidade do sucesso. Que o futebol viabilizou porque "é fácil ter alegria quando se ganha e se é campeão".


 “Chegámos Lá, Cambada” é um documentário produzido pela MadreMedia e que vai estar em exibição no SAPO24 entre 22 de maio e 14 de junho. Ao longo de oito episódios vamos contar a história de 30 anos da seleção, do pontapé de Carlos Manuel, em Estugarda, ao golo do Éder, em Paris, que nos deu a vitória no Euro 2016.

As suas memórias destes 30 anos fazem parte da história. Partilhe-as connosco através do email chegamoslacambada@sapo.pt e os melhores textos e fotografias serão publicados neste dossier especial.

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