Ainda não eram cinco da manhã em Portugal quando ouvimos Mark Tatum, comissário-adjunto da NBA, dizer uma das frases mais esperadas pelos amantes portugueses de basquetebol: "com a 39.ª escolha, os Sacramento Kings selecionam Neemias Queta".
Neemias. Nemy. Queta. Quetão. Do Vale da Amoreira para o Mundo. Pela primeira vez na história, um jogador português pode vir a pisar os courts da melhor liga de basquetebol do mundo.
Em entrevista ao Bola ao Ar, o podcast sobre basquetebol da MadreMedia, em abril deste ano, Neemias disse: “quando dizia que queria chegar à NBA, houve pessoas que se riram na minha cara, houve pessoas que disseram que não era possível”. É caso para dizer: Quem ri por último, ri melhor.
Quem é Neemias Queta?
Filho de pais guineenses, Neemias nasceu em Lisboa há 22 anos, no dia 13 de julho de 1999. Apesar de ter nascido na capital, foi no Barreiro que cresceu (e bem, tem 2,13 metros de altura) e aos 10 anos decidiu começar a driblar com a mão (e não com o pé) e, pouco tempo depois, tornou-se atleta do Barreirense, clube onde chegou à equipa principal com apenas 17 anos e onde ficou até 2017, ano em que se mudou para a equipa de basquetebol do Sport Lisboa e Benfica, para alinhar na equipa B.
Ao Observador, João Gomes, amigo de infância de Neemias, disse que foi a partir do momento em que Queta se mudou para o clube da Luz que as pessoas no Barreiro começaram a olhar para ele, basquetebolísticamente falando, claro, com outros olhos.
“Ele esteve no Barreirense, mas quando saltou para o Benfica… Aí ficámos: ‘Espera lá, tu tens de ser suficientemente bom, se sais do Barreiro para o Benfica’”.
Mas o período em que Neemias jogou de águia ao peito foi curto, apesar de ainda ter chegado a fazer quatro jogos pela equipa principal. Um ano apenas. O que mudaria para sempre a vida do português aconteceu depois dessa época, no verão de 2018, no campeonato da Europa de sub-18 divisão B onde o basquetebolista participou e brilhou (e em que Portugal terminou em 8.º lugar).
A prestação de Queta foi tal que lhe choveram vários convites para se mudar para o lado de lá do Atlântico, onde se joga o mais aclamado basquetebol do mundo. Ainda em 2018 aceita a bolsa universitária da Utah State University e passa a jogar pelos Utah State Aggies, da conferência Mountain West .
O que Neemias andou para chegar à NBA?
A chegada aos Estados Unidos não podia ter sido melhor. Com a camisola número 23, em homenagem a Carlos Andrade, antigo internacional português de basquetebol, chegou, viu e venceu. No primeiro ano sagrou-se campeão de conferência. Foi um dos destaques da liga e declarou-se ao draft na época seguinte. Acabaria, no entanto, por retirar-se da corrida à NBA, por assumir que não estavam reunidas todas as condições para dar o salto para a 'piscina dos grandes', e volta para a universidade, mas não sem antes voltar a brilhar com a seleção portuguesa e a conquistar o título de campeão europeu sub-20 da divisão B.
Depois de uma segunda época em que foi fustigado por lesões, a temporada de 2020/21 foi a melhor da carreira do português, que terminou a temporada com média de ‘duplo duplo’ (14,9 pontos e 10,1 ressaltos), mais um recorde de 3,3 desarmes de lançamento, e tornou-se um dos quatro finalistas ao prémio Naismith de melhor defensor do ano do basquetebol universitário (NCAA).
Para percebermos melhor a dimensão do fenómeno talvez devêssemos recorrer à sabedoria basqueteboleira de Ricardo Brito Reis, co-apresentador do Bola ao Ar, com João Dinis, recordando um texto dedicado ao atleta português:
“No jogo que encerrou a sua terceira época nos Utah State Aggies, Neemias Queta só não esteve em campo durante 17 segundos. O seu treinador, Craig Smith, sabia que a presença do poste português era determinante para o sucesso da equipa e manteve-o dentro das quatro linhas durante praticamente todo o jogo. Apesar da derrota frente a Texas Tech (53-65), Neemias respondeu com uma exibição que fica para a história: 11 pontos, 13 ressaltos, 6 assistências, 7 desarmes de lançamento e um roubo de bola. Ficou para a história porque, desde que os desarmes de lançamento são contabilizados, é apenas o segundo atleta a registar pelo menos dez pontos, dez ressaltos, cinco assistências e cinco abafos numa partida do torneio da NCAA.”
Mas atenção, há mais marcos que merecem ser sublinhados. Queta foi o único jogador da Division 1 da NCAA - e atenção, porque há mais de 350 universidades no principal escalão do basquetebol universitário norte-americano - a combinar mais de 65 assistências (77) e mais de 65 desarmes de lançamento (97) nos totais da temporada. Foi também o único jogador a jogar nos EUA com médias acima de três desarmes de lançamento (3.2), duas assistências (2.7) e um roubo de bola (1.1).
Terminou a época com médias de 14.9 pontos, 10.1 ressaltos, 2.7 assistências, 1.1 roubos de bola e 3.3 desarmes de lançamento, com eficácias de 55.9% nos lançamentos de campo e 70.7% nos lances livres.
Neemias chegou mesmo a merecer uma menção honrosa da Associated Press na eleição das equipas All-American (uma espécie de melhor equipa de jovens promessas que jogam no basquetebol americano). Desde 1992/93, apenas o português e Bo Outlaw, que fez carreira na NBA entre 1993 e 2008, fizeram médias de 14.5 pontos, 9.5 ressaltos, 2.5 assistências, 1.0 roubos de bola e 3.0 desarmes de lançamento numa época da NCAA e, desde 2010/11, apenas Queta e Anthony Davis, um dos melhores jogadores da NBA e que em 2019/2020 foi campeão pelos Los Angeles Lakers, registaram numa época números similares numa série de estatísticas avançadas como o Defensive Rating, as Defensive Win Shares ou o Defensive Box Plus/Minus.
E agora?
“Estou muito contente por isto acontecer. Foi lindo. Já esperava por este dia há muito tempo”, disse Neemias em declarações à Sport TV, pouco tempo depois de a sua escolha ter sido anunciada por Mark Tatum.
Os Sacramento Kings foram uma das nove equipas com quem Neemias treinou individualmente depois de ter deixado boas indicações no Combine da NBA, um evento anual em que um grupo restrito de jovens talentos tem a oportunidade de ser testado, fazer exercícios de força e agilidade, disputar jogos de 5 contra 5 e conhecer os principais responsáveis das trinta equipas da liga - o mesmo evento em que o poste luso já tinha participado após a sua época de caloiro em Utah State, em 2019, mas em que sentiu que não estava física e mentalmente preparado para dar o salto e acabou por dar dois passos atrás para poder dar, dois anos depois, este grande passo em frente.
Segundo o jogador, o treino com os Kings “foi dos melhores” que realizou. Não deixa de ser curioso que o futuro de Neemias passe por Sacramento, uma vez que foi precisamente na cidade da Califórnia que Ticha Penicheiro, a melhor basquetebolista portuguesa de sempre, jogou grande parte da sua carreira na WNBA, nos Sacramento Monarchs.
“Traz nostalgia aos portugueses ver um português em Sacramento. É uma boa situação para mim, tendo em conta que é uma boa equipa, uma equipa jovem. A Ticha sempre foi um ídolo para o basquetebol português. Se conseguisse seguir as pisadas dela no basquetebol português, ficaria muito feliz”, admitiu.
O excerto da entrevista de Neemias ao Bola ao Ar que citámos no arranque deste texto merece, depois de tudo o que descrevemos, ser novamente citada, agora na íntegra.
“Quando dizia que queria chegar à NBA, houve pessoas que se riram na minha cara, houve pessoas que disseram que não era possível. E eu não me preocupei com isso. Acho que isto aqui só prova que não tens de acreditar no que as pessoas dizem. Tens de acreditar no que tu achas que és capaz de fazer. Em Portugal há muito essa ideia de pôr limites às pessoas e dizerem que não vão a lugar nenhum. Acho que é altura de mudar esse tipo de ideia. As crianças e os miúdos agora estão a ver que eu estou à beira da NBA e vêm que podem lá chegar um dia. Se eu cheguei, eles também podem.”
Neemias é história. É o que Carlos Lisboa e e João “Betinho” Gomes não conseguiram. Neemias é o futuro e é uma lição de perseverança. Não é por acaso que o seu rosto foi imortalizado num mural de 22 metros de altura num prédio do Vale da Amoreira, no seu bairro, o bairro cujas iniciais levou gravadas na camisa que vestiu na noite do draft, juntamente com as as iniciais da avó, do pai, da mãe.
Num projeto da autoria de Pedro Pinhal, e que resulta de uma parceria entre a Hoopers e a Câmara Municipal da Moita, o sorriso de Neemias Queta, o primeiro basquetebolista português da NBA, está ali à vista de todos, a poucos metros da casa onde cresceu, voltado para a Escola Secundária da Baixa da Banheira onde estudou para que todas aqueles jovens saibam que o impossível não existe.
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