Também esta semana, Rio Ferdinand, ao comentar o estado atual do Manchester United, partilhando a sua opinião sobre o porquê de os Reds sofrerem tantos golos disse dever-se, e passo a citar: "A uma falta de capacidade de ‘cheirar’ o perigo." E por muito que esta seja uma frase corriqueira no mundo do futebol, o que quer mesmo dizer? É o que Harry Kane nos vai ajudar a perceber.
A plenitude de ser um avançado de classe mundial
O que é ser um avançado de classe mundial? Podem e devem ser discutidos os aspetos que nos levam a considerar, neste caso em particular, um avançado como este sendo natural ou mesmo talentoso para essa posição.
De todos os que se possamos discutir, entre técnicos, táticos, físicos e psicológicos, colocando inclusivamente dentro dos mesmos, todos os sub-aspetos que possamos imaginar, eu retiraria os físicos de cima da mesa. Passo a explicar. As características físicas de um jogdeador vão influenciar e muitas predeterminar a posição e a habilidade do atleta para a posição, mas por si só não o tornam num jogador de classe mundial. A prova disso é a variedade nas qualidades físicas dos muitos avançados de qualidade acima da média que vimos ao longo dos anos.
O que distingue estes jogadores dos outros é mais do que um pormenor físico ou técnico. Sendo a qualidade técnica acima da média um requisito fundamental e indispensável à categoria de jogador que estamos hoje a discutir não é o fator mais importante para distinguir classe mundial. Olhemos a dois exemplos, Wayne Rooney e Ronaldinho Gaúcho. Jogadores incomparáveis, tecnicamente quase que poderíamos dizer que jogavam dois desportos completamente diferentes, mas ambos jogadores e avançados com provas dadas e considerados de classe mundial. Apesar de a técnica ser comum a ambos, já percebemos que, contudo, a disparidade da mesma pode existir em jogadores de topo.
Taticamente, a percepção e a compreensão do sistema, dos companheiros e a forma de adaptação às rotinas é essencial. Dificilmente um jogador ultrapassa a barreira que separa os jogadores de qualidade dos jogadores reconhecidos mundialmente como dos melhores de sempre na sua posição, sem uma compreensão tática e uma adaptação constante aos estímulos do jogo. A percepção e adaptação tática — muitas vezes dependente da técnica — é já um aspeto comum menos díspar entre jogadores de classe mundial.
Estabelecido que cada jogador tem as suas próprias capacidades físicas, que a técnica é essencial mas que a disparidade da mesma pode existir e, também, que a compreensão tática do sistema e da estratégia são fundamentais e insubstituíveis, onde ficam os aspetos psicológicos? Permitam-me dizer que ficam, precisamente, no centro de toda a questão aqui discutida hoje.
Não só estão no centro da questão como habilitam, desbloqueiam, todas as questões anteriormente discutidas. Sem os aspetos psicológicos no auge do seu rendimento e função, nenhum outro tem capacidade de se exprimir, pelo menos ao mais alto nível, ao nível a que hoje discutimos, nível de classe mundial.
Quais são os aspetos psicológicos de que falo?
Dentro dos aspetos psicológicos, tipicamente mais complexos de analisar, temos atributos mentais como a perseverança, a resiliência, a capacidade de trabalho árduo, a confiança, a efetividade de comunicação, a fundamental capacidade de diversão, no sentido de alegria, recreação — o encontrar de um balanço entre a responsabilidade e a diversão na execução, deixando a tensão de lado e podendo assim executar de forma mais livre. Continuando, encontramos ainda o autocontrolo, a autoestima, o comprometimento com a tarefa, ou mesmo até a concentração e os aspetos relacionados com a criatividade. Não são os únicos fatores psicológicos mas, parecem-me, uma boa amostra para nos ajudar a explicar o conceito.
Contudo, considero que dois em particular, ainda não mencionados, fazem a diferença para que um jogador, neste caso um avançado, seja de classe mundial. São eles a capacidade de estar alerta e a consciência temporal e espacial — estar presente. O estar alerta, em todos os momentos do jogo e a forma como se está presente, podem, a meu ver, transformar, e mais do que isso, otimizar, as qualidades de um jogador, seja qual for a sua posição. Dois aspetos que, voltando ao início desta crónica, podem ser exprimidos e colocados em cima da mesa, como Rio Ferdinand o fez, a capacidade de cheirar o perigo, neste caso a oportunidade/perigo. Qualquer avançado de classe mundial, independentemente dos seus atributos físicos e técnicos, alia a uma capacidade de adaptação tática e estratégica, uma extraordinária capacidade de cheirar as oportunidades que chegam, invariavelmente, sem avisar.
Mas afinal porque tem esta crónica o título de Harry Kane - Um defesa de classe mundial?
A explicação é-nos dada pelo próprio Harry Kane. Apesar das suas indiscutíveis qualidades como avançado, tendo inclusivamente assistido Son Heung-min ao minuto setenta e seis da partida frente ao Burnley, foram precisamente seis minutos antes desse lance que Harry Kane nos demonstrou, com toda a sua categoria, o que significa cheirar o perigo. Mas neste caso fê-lo, no lado oposto do campo, junto à sua própria baliza.
Sendo ele de classe mundial, uma das suas capacidade é perceber na perfeição — por anos de prática e repetição, traduzindo-se isso em experiência — onde a bola vai cair e qual a ação a tomar tendo em conta o tipo de bola (velocidade e trajetória da mesma) que tem pela frente. Daí este marcar a quantidade e qualidade de golos que todos sabemos. O impressionante aqui é a perceção de que a transferência de tarefa, do ataque para a defesa, se faz com uma naturalidade impressionantes.
Harry Kane, ao minuto 0:27 do vídeo que se segue, explana toda a sua capacidade de cheirar o perigo. Tendo ele a experiência acumulada de, habitualmente, estar no papel de criador desse mesmo perigo, neste caso os papéis invertem-se e o internacional inglês utiliza os seus atributos psicológicos para cheirar o perigo criado pelo opositor e ser ele, não o criador, mas o que anula o perigo criado por outro.
Os atributos demonstrados por Kane neste lance, são aqueles que muitas das vezes não estão presentes nos próprios defesas e aqueles a que Ferdinand se referia quando tentava explicar o que falta à defesa do United. Talvez por não terem a experiência e rotina de estar do outro lado da barricada, talvez por incapacidade de tomada de melhor decisões, talvez pela forma como cresceram e como a sua formação não lhes deu uma maior liberdade de pensar o jogo — as razões podem ser muitas. Apenas uma coisa é certa, estas são capacidades que podem ser influenciadas e treinadas, basta para isso que os treinadores de formação sigam uma filosofia que forneça, em tenra idade, prioridade quase que exclusiva à técnica e aos aspetos psicológicos do atleta.
Esta semana na Premier League
O destaque esta semana vai inteirinho para dois jogos. O United vs Arsenal, onde os Reds não terão qualquer hipótese de desfrutar de um jogo calmo como o fizeram na semana passada frente o Chelsea, e para o Leeds vs Leicester, onde ambas as equipas estão a fazer campeonatos não só brilhantes, mas muito excitantes, sendo duas das equipas responsáveis por esta ser uma das melhores edições da Premier League dos últimos anos.
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