No Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), Vale de Judeus, Alcoentre e Santa Cruz do Bispo (prisão feminina) os reclusos e reclusas jogam râguebi. Adriano Malfeito foi o “culpado”. O “culpado disto tudo”.

Num encontro, há quatro anos, onde estava presente a diretora da Escola de Rugby da Galiza (projeto social em Cascais) e assistindo a uma palestra de Manuel Cortes sobre os valores do râguebi, desafiou-o a por a bola a rodar de mão em mão na Casa do Gaiato. “Gaiatos já tenho muitos (7 filhos), mas estou disponível para ir às prisões”, respondeu Manuel Cortes, advogado, em Lisboa. Assim dito, assim feito.

“Não acordei um dia e disse: vamos levar o râguebi às prisões”, ressalva. “Na pesquisa para a apresentação vi um projeto de râguebi nas prisões na Argentina, os Espartanos, recorda Manuel Cortes. Uma prisão que alberga “12 mil reclusos” foi a fonte de inspiração.

Acreditando que “as circunstâncias têm sempre um motivo maior para acontecer”, “puxou” António Abreu, antigo jogador com quem tem “uma amizade forjada” no râguebi e reforçada nos elos de ligação de filhos de ambos e, em outubro de 2015, deram os primeiros passos em Alcoentre, onde Adriano Malfeito é “visitador”.

“Atravessávamos a prisão, o campo, com bolas atrás das costas sem saber ao que íamos”, relembra. “Ao princípio era uma ideia tipo miragem. Foi um sim com a noção do caminho longo a percorrer, nem sabíamos como fazer”, recorda António Abreu.

créditos: João Peleteiro

Com uns treinos “em cima” começaram a desenhar a criação de uma entidade jurídica para se relacionarem com serviços prisionais, em primeiro lugar, e com a Federação Portuguesa de Râguebi, clubes e outras entidades. Em março de 2016, nasce o Rugby Com Partilha – Associação de Promoção da Prática de Rugby nos Meios Prisionais.

Recuperando uma frase do Papa Francisco sobre “ir às periferias sociais”, Manuel Cortes define o râguebi como um “encontro dos reclusos, dos que estão afastados da sociedade. Um encontro de fora para dentro”, explica. “Ao contrário do que acontece na Argentina, em que nasceu de dentro (na prisão) para fora, aqui nasceu de fora para dentro. O retorno, esse, é de dentro (dos reclusos) para fora (os voluntários)”, reconhece.

“A expetactiva que tínhamos era cada vez mais cimentada pela experiência. O que sentíamos aos sábados às 8h30 quando íamos a Alcoentre? Que dávamos mas que recebíamos muito mais”, sublinha.

A palavra “Partilha” é desmultiplicada por três: “Partilhamos o tempo, espaço e valores”, assegura. Nasce a inspiração para o slogan – Centuplus. “Dar um, receber 100. É o que sentimos. Vimos preenchidos, em todos aspetos”, reforça António Abreu. O símbolo, da autoria de Vasco Fernandes Thomaz, “é uma mão que agarra uma bola que se transforma numa pomba.”

“Tinha a ideia de um desporto violento... enganei-me redondamente”

Apresentação feita ao mundo prisional e Filipe Arraiano, responsável da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, avança. “Seria impensável há uns anos atrás”, por causa “de ideias pré-concebidas em relação ao râguebi que foi preciso desmontar”.

“Percebemos o objetivo. As regras do desporto ensinam a respeitar regras e ajudam ao equilíbrio emocional. Com o desporto adquirirem-se competências pessoais e sociais”, sustenta Manuela Raimundo, do EPL.

Confrontado com a entrada do râguebi numa prisão de alta segurança, com a ausência de um “piso apropriado” e o medo de ter “todos na enfermaria”, José Ribeiro Pereira, diretor de Vale de Judeus recusou num primeiro momento. “Tinha a ideia de um desporto violento, com muita gente no chão em que o contacto físico era inevitável”, algo que o preocupava, “tendo em conta que os reclusos poderiam aproveitar algumas animosidades que há entre eles para tirar esforço”, recorda. “É uma agradável surpresa verificar que enganei-me redondamente”, assume.

créditos: João Peleteiro

“Desmistificámos a grande questão: que era um desporto violento que ia aumentar os níveis de violência dentro das prisões. Quando é o contrario”, vinca Manuel Cortes.

Em relação aos reclusos, José Ribeiro não tem receios de juntar a expressão “felizes” com a palavra, que “tendo em conta o meio onde estão”, consegue resumir tudo: “liberdade!”, exclama. “É um dia diferente na prisão para eles”, reconhece.

Vasco Ribeiro, professor de educação física no EPL reforça que a prática “passada a fase curiosidade, mais oportunidades surgisse, mais candidatos teríamos”.

Próximo passo: um jogo de râguebi entre reclusos

Para além das visitas, o que é que se pretende daqui para a frente? “A ideia é que a sociedade se envolva”, avisa Manuel Cortes. “Temos um protocolo com um clube, o CDUP, do Porto, que de uma forma espontânea aderiu a este projeto (em Santa Cruz do Bispo)”. “Ajudamos com os filhos que queiram jogar em clubes, podemos servir de ponte. É um segundo patamar de intervenção”, acrescenta.

“Saber que há um recluso que procura continuar lá fora jogar é um misto de alegria com gratidão, porque com o apoio do RCP conseguimos dar ferramentas que não vão abandonar. Isso é uma forma de reinserção, ter algo lá fora para se agarrar”, frisa o diretor de Vale de Judeus.

Fazendo o balanço, “neste momento, pela experiência nos EP's, o projeto tem vindo a mostrar que tem um conjunto de potencialidades enorme do ponto de vista de aprendizagem social e comportamental”, conclui Filipe Arraiano.

“Ao princípio experimentamos estranheza. Hoje o que sentem é a gratuitidade com que estamos lá. É a nossa imagem de marca: a gratuitidade”, frisa Manuel Cortes. “O principal objetivo são os reclusos. O resto é acessório. Se não tiver campo, jogamos na rua, se chove jogamos, se estiver calor jogamos na sombra. Quem se juntar é bem-vindo”, vinca António Abreu. “Não importa quantos aparecem. Nós vamos sempre”.

Em Alcoentre entregaram, no ano passado, umas camisolas que simbolizam o compromisso entre todos os envolvidos. Agora querem fazer um jogo, em Vale de Judeus, entre os reclusos deste estabelecimento e os de Alcoentre. “Em julho, em Vale de Judeus”, promete Manuel Cortes.