Tatyana e Evgeny são um casal russo. O nome não deixa dúvidas. Com 33 anos, estão casados há 10. Vivem em Novosibirsk, na Sibéria, a terceira maior cidade russa, mas estão de férias em Sochi, cidade costeira no Mar Negro. “São quatro horas de voo (mais de 3 mil quilómetros)”, esclarece Evgeny, habituado a percorrer grandes distâncias num país que não é pequeno.
Gerem um negócio familiar sem especificar qual. “É segredo”, sorri Tatyana. Os dois estão num Irish Pub localizado junto numa zona de praia, perto do porto, em Sochi.
Sabem que estão a falar com jornalistas. Perguntam de onde somos. “Portugalia”, exclamam. Dizem não conhecer ainda o país. Mas conhecem Espanha. "Fomos de férias a Palma de Maiorca”, contam ambos, sorridentes. “Turismo”, reforça Tatyana, num inglês com sotaque russo.
As palavras soltas são tendências nesta conversa (e noutras) intercalada entre pausas, voz em câmara lenta, gestos, sempre com recurso ao “Google translator” — o tradutor áudio Português-Russo é uma espécie que quebra gelo da conversação na Rússia. No entanto, por vezes, a tentativa de derrubar as barreiras linguísticas pode dar azo a más traduções. Umas mais embaraçosas que outras, como testemunhámos, mas sempre ultrapassadas com uma gargalhada de parte a parte.
Está sol e muito calor. São 16h00 locais e este casal está vestido como se fosse jantar fora num local requintado. Aprumados, escolhem uma mesa com vista para um ecrã de televisão. A razão é o jogo dos oitavos de final que opõe a Rússia à Espanha, marcado para as 17h00. Não ligam muito a futebol. “Só gostamos dos mundiais", dizem.
Na altura do hino nacional russo, num bar com mesas bem preenchidas de russos, embora poucos estivessem identificados com as cores nacionais, o casal Tatyana e Evgeny aproveitou, então, para dar uma olhadela no telemóvel e debitar umas palavras. Nas outras mesas, conversava-se.
Exceção feita nesta aparente indiferença: numa mesa, três mulheres levantam-se para entoar o hino, colocando os braços ao peito e elevando-os ao ar. Feita a proclamação, as primeiras palmas são arrancadas à assistência e brindes com copos de cerveja marcam o início do jogo que decorria no estádio Luzhniki, em Moscovo.
O Mundial “é importante para abrir a mente de todos. Dos russos e de quem nos visita”
Demos um pulo aquele canto da sala. Lyubov, Alyona e Evgenia são três amigas. Na mesma mesa está Andrey. Andrey é casado com Evgenia.
As devidas apresentações são feitas enquanto pedimos licença para nos sentar ali. Lyubov (para um português tem nome de homem, mas é mulher) serve de mestre de cerimónia nesta conversa. É ela que nos apresenta todos, e a nós aos demais, escrevendo o nome dos convivas no nosso telemóvel poupando-nos ao erro.
Fala inglês. Fluentemente. Perante a nossa estranheza, que se mistura com um agradecimento divino para não ser mais um momento em que nos sentimos como no filme “Lost in Translation” (traduzido literalmente é perdidos na tradução, embora fosse batizado no cinema como “O Amor é um Lugar Estranho”) explica a razão: “sou professora de inglês, dou aulas online”, adianta.
Alyona e Evgenia “são modelos” de profissão. “Trabalham na Fórmula 1 (no circuito da Rússia que é disputado em Sochi)”, exemplifica. Lyubov, que, avisa, também consegue falar italiano, diz que, embora trabalhem todos na cidade que acolheu o jogo Portugal-Uruguai, não são naturais da localidade plantada à beira do Mar Negro.
“Evgenia é de Moscovo”, informa. “O resto nasceu em Chelyabinsk”, diz, escrevendo de novo o nome da cidade no telemóvel, para evitar dúvidas. Onde, perguntamos? “Na fronteira da Europa com Ásia, é uma cidade poluída e industrial”, responde prontamente. Uma rápida espreitadela na internet e ficámos a saber que é situada perto dos Montes Urais, um dos principais centros industriais russos que é também conhecido pela queda do meteorito em 2013. “Há muita gente que sofre de doenças e por isso decidi sair de lá”, acrescenta.
Com “mundo”, Lyubov estudou “um ano nos Estados Unidos da América (Georgia), viveu “nove anos em Moscovo” e mudou-se “há dois anos e meio” para Sochi, para o sul, “onde as pessoas são mais descontraídas”, anota. “Quando vou visitar a minha mãe tenho que respirar fundo porque sei que as pessoas são diferentes de onde estou.”
Na conversa, afável, viaja no tempo ao tempo da sua permanência nos EUA. “Chegaram a perguntar se tinha um urso em casa”, sorri. Lá explicámos que Portugal “era um pouco diferente” (onde eu que já ouvi isto?) e não pensávamos assim.
A Espanha marcara cedo e Andrey fez uma aposta com Evgenia. Não entendemos qual, se seria que a Rússia perderia, ou não, sabemos sim, que a seguir à penalidade assinalada e convertida pela seleção russa, a mulher, rindo, apontou várias vezes o dedo ao marido, corado de vergonha.
A troca de palavras aterra no Mundial e no futebol. Sobre a bola, diz que tanto ela como os três amigos só vêm “jogos do Mundial”. E se começaram tímidos na relação com a televisão, o golo do empate levou-os a um credo na boca.
E sobre o campeonato que decorre em solo russo, Lyubov diz, orgulhosamente, que “é importante para abrir a mente de todos. Dos russos e de quem nos visita”. Permite que “os russos olhem nos olhos de quem nos visita” e ajuda os estrangeiros “a olharem de forma diferente os russos”, sustenta. “Os russos são pessoas normais, como quaisquer outras e desta forma os estereótipos desaparecem”, conclui, não sem antes questionar sobre como é que nós vemos os russos e se já experimentámos a “hospitalidade”.
Uma face e duas bandeiras. A Rússia vence e, no fim, as lágrimas
Intervalo do jogo dos oitavos de final entre a Rússia e Espanha, um jogo acompanhado a 1.600 quilómetros de distância. Decidimos dar um salto ao Fan Park onde se concentravam adeptos de todas as nacionalidades que por aqui andam com o Mundial na cabeça.
Cinco minutos a pé por um parque polvilhado por russos em férias, uns vindos da praia, outros com bandeiras e camisolas com “Rússia” inscrita, um guaxinim ao colo de uma senhora, e meninas com guaches e pincéis nas mãos, prontas a pintar uma bandeira nacional na cara de quem pedir.
Passado o controlo da entrada, com detetor de metais, o estádio quase em cima da água era casa cheia, maioritariamente de russos e russas. Crianças, jovens, muitos namorados e casais, gente mais velha, de todas as idades.
Bandeiras nas costas, camisolas brancas e encarnadas, um ou outro símbolo do passado – foice e martelo e as letras CCCP – e dezenas de pinturas faciais. Havia até quem empunhasse bandeiras das duas equipas, como foi o caso de uma autóctone que admitia “amar a Espanha e o futebol espanhol” e ter na Liga espanhola “a sua equipa preferida (Real de Madrid)”, embora não negasse a sua naturalidade, como vincou. “I am russian” (Sou russa).
O jogo aproxima-se aos poucos do final dos 90 minutos e à medida que o ponteiro do relógio avançava o entusiasmo subia de tom no meio da multidão. O movimento entre comes e bebes próprio nestas aglomerações diminuía à medida que o jogo caminhava para o final.
A Espanha pressiona. Uma defesa do guarda-redes russo, Akinfeev, é celebrada como um quase golo.
Apito para prolongamento. Um speaker de serviço sobe ao palco e começa a, tal como um artista de uma banda, a pedir ao público que grite: “Rossia, Rossia (ouvia-se)”. A resposta começa por ser tímida. Mais uma tentativa e a resposta aumenta de tom.
Jogo reatado. Prolongamento. O tempo ia passando e os russos começavam a mexer-se nervosamente. Levam mãos à cabeça, batem palmas, olham uns para os outros. Junto ao ecrã, um conjunto de adeptos começa a gritar “Rossia, Rossia”. O grito espalha-se pelo espaço à medida que o cronómetro oficial vai caminhado para os 105 minutos.
No estádio Luzhniki, jogadores do país anfitrião do Mundial pedem apoio das bancadas. Um pedido que chega a Sochi com estes adeptos que não pagaram bilhete a responderem.
A tendência mantém-se até aos 120 minutos. Momento de celebração. A Rússia e Espanha seguem para as penalidades. Já ninguém se movimenta de um lado para o outro. Ninguém bebe ou come. Ou sequer se mexe.
A Espanha falha, a Rússia converte e o êxtase é quase total. Rússia marca e a Espanha volta a falhar em nova defesa do guarda-redes e explosão de alegria. Pulos, braços no ar, palmas, adeptos abraçados e a uma só voz cantavam: Rossia, Rossia”.
A Rússia estava apurada. No estádio os jogadores pegaram numa faixa com a explicação: “Jogámos por vocês”. Em Sochi, a tal cidadã russa de cara pintada e com as duas bandeiras chorava. Não sabemos porquê, porque não respondeu, embora antecipamos que era de alegria e não de tristeza.
E do Irish Pub veio, por email, uma pergunta e uma exclamação em italiano “Hai visto? C’e sempre la speranza per noi” (Viste? Há sempre uma esperança para nós), escreveu Lyubov Lepina, uma frase acompanhada de emoji com um V de vitória. Da Rússia. Que segue feliz para os quartos-de-final, em Sochi.
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