Rui Lopes serpenteava entre as áreas circundantes do Estádio Nacional, horas antes do início da final da Taça de Portugal, a 78ª edição do “tal” jogo especial que, ano após ano, tem lugar marcado no Vale do Jamor no encerramento da época futebolística.

Ostentava um chapéu verde florescente enquanto esticava um cachecol dividido ao meio pela cor encarnada com a inscrição do Clube Desportivo das Aves e o verde em representação do Sporting Clube de Portugal.

Adepto do Sporting? Do Aves? A dúvida que pairava foi rapidamente dissipada. Estranhamente, ou talvez não, Rui Lopes não estava ali a torcer por nenhum daqueles clubes. “Vim ver a festa”, informa, a seco, com um carregado sotaque nortenho.

É “do Porto” e estava por ali na companhia “da minha mãe e do padrasto”, ambos a torcerem pelos leões. “Isto é que o espírito de família. O espírito da Taça”, solta a progenitora, justificando a razão da presença do agregado familiar naquele teatro de fim de festa do futebol nacional.

Na Prova Rainha, a família do futebol, pese embora esteja dividida, por razões de segurança, fora e dentro do estádio, está unida na festa. E pela festa. No convívio e na romaria ao palco de todos os sonhos.

Quem equipava de encarnado e com o símbolo de uma águia ao peito tinha um feudo reservado por detrás do topo Sul do Estádio Nacional. A nação verde e branca espalhou-se pela imensidão da zona plana do vale do Jamor.

Divididos pela avenida Pierre de Coubertin, no imenso pulmão verde em Oeiras, os adeptos de ambos os clubes montaram as tendas, estenderam as mantas, raparam os tachos, limparam os pratos, de plástico e de porcelana, ergueram copos e garrafas, colocaram várias iguarias nos fogareiros e os churrascos, içaram bandeiras e cachecóis, dançaram ao som da música popular ao tecno e entoaram cânticos afetos aos seus clubes do coração.

Ir com o Aves ao Jamor

Alberto Araújo, 52 anos, sócio desde os 20 do Aves, arrancou da Vila das Aves, no concelho de Santo Tirso, Distrito do Porto, “às 5h45” num autocarro de “50 pessoas”, onde se incluem “amigos e irmãos”, descreve.

Uma paragem pelo caminho e às 10h00 já respirava a festa do futebol. Depois de “até água das pedras” ter bebido, para matar o tempo, entre balizas improvisadas, lá foi dando uns toques de bola “com o sobrinho” e amigos do craque de metro e meio.

Alberto estava entre os seus. Foi com o “Aves ao Jamor” conforme denuncia a parte da frente da camisola, que escondia a palavra “sonho” escrita na parte de trás, com um calendário do percurso da equipa até à final e com o resultado do último encontro por preencher.

créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

Os de Vila das Aves, uma vila de pouco mais de 8 mil habitantes levaram mais de 7 mil adeptos e 85 autocarros à mata de todos os sonhos. Se o “Aves é um Mundo”, conforme se podia ler nas costas de centenas de camisolas brancas, o complexo do Estádio Nacional, em Oeiras, e zonas circundantes foi, durante horas, o universo que o acolheu.

E nesse mundo cabem comes e bebes, som de bombos, música, “comboios” em dança, autocarros de merchandising, miúdos a jogar à bola, graúdos a “baralharem” o jogo das cartas e outros, de todas as idades, a descansarem o corpo antes do apito inicial marcado para as 17h15.

Uma festa onde tudo se vende

Sentada no final de uma escadaria que dá acesso da avenida Pierre de Coubertin vinda do parque Sul, descodificando, da parte de cima do Topo Sul do Estádio Nacional, Áurea Maurício, descansava o corpo uns leves minutos enquanto continuava a pregar a venda de “barretes da sorte”, feitos pela própria mão.

Apresenta-se como sobrinha de Fernando Maurício, um fadista da Mouraria, falecido em 2002 (“está no cemitério dos Prazeres ao lado de Cândida Branca Flor”), conhecido no meio como o “Rei sem coroa” e um “grande leão...ai meu Deus, que nosso senhor o tem, se não era...”, diz com uma voz que denota que fez ao longo da vida muito uso das cordas vocais.

créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

Diz que sempre andou a cantar o Fado na Mouraria (“onde irei morrer”). Vender nas horas que antecedem a festa do futebol não é novidade. “As reformas são pequenas”, deixa o lamento. Mas muitos anos antes de pensar nisso a cantiga da sedução era outra. “Desde os 11 anos que vendo coisas. O meu avô vendia no Jamor os capacetes brancos para o sol a 10 tostões”, recorda. “A 10 tostões, senhor...”.

A arte das vendas não é só para enfiar o barrete. Há também óculos de sol “à melhor oferta” e há porta-chaves do Agrupamento de Escuteiro de Linda-a-Velha, feitos pelas mãos dos próprios com as cores das duas equipas em confronto. Para ajudar numa viagem, informam.

Um clube tatuado para sempre

Na fatia da mata do Jamor reservada aos leões o m2 era mais disputado. As baias delimitam o espaço de cada um dos grupos e as tendas e bandeiras reforçam o sentido de propriedade.

As camisolas dão a devida identidade. Há Juve Leo, há referências a Reis de Hollywood (Chuck Noris) e há corpos tatuados com referências ao “Grande Amor” de todos eles.

Em cada esquina procurava-se mostrar uma “União de Aço”, mas as fendas da crise no Sporting, os incidentes de Alcochete e as tomadas de posição do presidente, Bruno de Carvalho, eram visíveis e audíveis.

Desde cedo, tão cedo quanto a véspera, Nuno Ferrinho, de Lisboa, tratou de organizar um acampamento para “30 adultos e 11 crianças”.

Durante a noite que antecedeu aquelas horas que seriam de festa, antes dos artistas entrarem em campo, três “chauffeurs” escolhidos a dedo estacionaram outros tantos carros que delimitaram o espaço que viria a ser o palco dos comensais.

Ali começaram a chegar a partir das 07h30 da manhã. Pais e filhos, todos com as cores verde e brancas ao peito e de vozes mais ou menos afinadas.

Havia que montar a cozinha e a sala de refeições. Sardinhas, lulas, entrecosto, bifanas, pão, batatas fritas, fritos vários, pão, diversas variedades de pão, tremoços, um menu sem fim para agradar a todas as bocas que ali não se apresentam com esquisitices.

Entre fotografias e mensagens trocadas com quem não está no Jamor, os mais velhos tocavam, a espaços e ao de leve, no assunto da semana que abafou a razão de ali estarem.

Os mais novos, esses, ocuparam o tempo com a tradicional “redondinha” e, pasme-se, com uma bola oval (râguebi), talvez para descansar a mente do lado B do futebol.

O herói inesperado e os afetos do (único) presidente que os dá

Com o aproximar da hora que todos esperavam, as cores encarnada e verde convergem ao teatro de todos os sonhos. Bancada sul, com duas fatias em representação da maior vila do futebol português, ladeada pelas cores leoninas que se estendiam em maioria pelo resto do estádio.

Mais música, danças, hino de Portugal e apito inicial. Seguiram-se as vozes de apoio, cada qual aos seus clubes, e três golos festejados.

Alexandre Guedes, que esteve 7 anos da Academia de Alcochete, tendo feito a formação no reduto dos leões, foi o herói improvável ao bater, por duas vezes, Rui Patrício, dando o triunfo ao Aves, o underdog deste futebol em fim de festa.

Com o apito final, o mundo desabou sobre o universo leonino. No relvado, minutos que pareceram horas, a emoção e o choro tomou de assalto alguns jogadores, em especial Rui Patrício.

Subida à Tribuna de Honra, de jogadores e equipa técnica, uma massa adepta dividida entre (poucos) apupos e o notório apoio incondicional, Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente dos afetos, fez jus ao nome reconfortando quem nos seus braços procurou aconchego naquela hora difícil.

créditos: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Da escadaria desceram uns, os favoritos, foram cumprimentados, em corredor, por quem se preparava para subir, os outros, os heróis, alguns deles acompanhados dos filhos para memória futura do feito alcançado.

Já com um estádio descascado de verde e com as cores do Aves sem arredar pé do topo onde estavam, Quim, guarda-redes de 42 anos, o mais velho a alguma vez jogar uma final da Taça de Portugal, mais que um afeto recebeu das mãos do presidente da República uma taça em forma de sonho transformado realidade.