De acordo com a lei que estabelece o regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais, em plena concorrência, em Portugal, a empresa CTT – Correios de Portugal é, “em território nacional, a prestadora do serviço postal universal até 31 de dezembro de 2020″.

As condições da prestação do serviço universal “devem ser reavaliadas a cada cinco anos pelo Governo”, depois de ouvida a Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) e as organizações representativas dos consumidores, adianta a lei.

O encerramento de lojas dos CTT tem gerado grande contestação no país, sendo que em janeiro último a Anacom indicou que era “expectável” que o número de concelhos sem estações de correio suba para 48 no curto prazo, contra 33 no final de 2018.

Em 10 de janeiro, a Anacom apontou que, no ano passado, os fechos dos balcões dos CTT “levaram a que tenham subido para 33 os concelhos em Portugal que já não têm estações de correios” e que, até 2017, e desde 2013, “apenas existiam dois concelhos sem estações de correios”.

Esta informação reacendeu a discussão no parlamento sobre o tema e levou a que o PCP, o Bloco de Esquerda (BE) e o PEV avançassem com projetos para a renacionalização dos CTT — empresa que passou a ser totalmente privada em setembro de 2014 –, os quais vão ser hoje debatidos na Assembleia da República.

O parlamento debate hoje um projeto de lei do PCP para estabelecer o regime de recuperação do controlo público dos CTT, outro do Bloco de Esquerda, tendo como objetivo a nacionalização da empresa, e um projeto de resolução do PEV para a reversão da privatização dos Correios.

De acordo com o projeto lei do BE, que procede à nacionalização dos CTT, a apropriação pública por via de nacionalização do controlo acionista deverá ser feita “nos termos do Regime Jurídico de Apropriação Pública (RJAP), aprovado em anexo pela lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro, no sentido de salvaguardar o interesse público nacional”.

“A lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro, não só procedeu à nacionalização das ações representativas do capital social do Banco Português de Negócios [BPN], como também aprovou o regime jurídico de apropriação pública, por via de nacionalização, que consta de anexo à referida lei”, explica a jurista Sara Estima Martins, sócia da PLMJ, especialista em Direito Europeu e da Concorrência.

Nos termos do artigo 1.º do anexo à referida lei, “podem ser objeto de apropriação pública, por via de nacionalização, no todo ou em parte, participações sociais de pessoas coletivas privadas, quando por motivos excecionais e especialmente fundamentados tal se revele necessário para salvaguardar o interesse público”.

Em 2008, quando foi aplicada, tal aconteceu na sequência do “volume de perdas acumuladas” pelo BPN, “a ausência de liquidez adequada e iminência de uma situação de rutura de pagamentos que ameaçam o interesse dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro”, lê-se no artigo 2.º da lei.

“Apurada a inviabilidade ou inadequação de meio menos restritivo apto a salvaguardar o interesse público, são nacionalizadas todas as ações representativas do capital social do BPN”, acrescenta a lei n.º62-A/2008.

No entanto, o caso dos CTT é diferente. Em causa está a concessão do serviço postal universal, que para o PCP e o BE não está a ser cumprido. É preciso não esquecer que os Correios de Portugal são detentores de uma licença bancária, através do qual operam o Banco CTT.

“A estratégia da administração dos CTT é centrar a atividade nos negócios lucrativos, transformando a rede de distribuição postal dos CTT numa rede de agências do Banco CTT”, lê-se no projeto de lei do BE, que refere que “decidir a nacionalização” dos Correios “até ao final da presente legislatura é, no entendimento do Bloco de Esquerda, o único caminho de, nas condições atuais, ainda ser possível resgatar para o Estado a propriedade e a gestão do serviço público universal dos correios”.

A iniciativa legislativa do BE visa “salvaguardar o interesse público”, prevendo a nacionalização de “todas as ações representativas do capital social dos CTT”, livres “de quaisquer ónus ou encargos, para todos os feitos legais”.

É proposta “uma auditoria independente que identifique e quantifique todas as ações lesivas do serviço e erário público tomadas pela gestão privada dos CTT, bem como as tomadas pelo XIX Governo constitucional no período de preparação do processo de privatização”.

A indemnização dos acionistas “é apurada nos termos estabelecidos no RJAP”, sendo que, “com base na auditoria prevista no artigo anterior, é apurada a indemnização devida ao Estado pelos titulares de participações sociais dos CTT”.

Por sua vez, o PCP considera que “é imperioso e urgente que o Estado adquira a capacidade e a responsabilidade pela gestão da empresa, para garantir a sua viabilidade futura e para que volte a ter condições para prestar um serviço que o país, as populações e os seus trabalhadores exigem”.

Por motivo de “salvaguarda do interesse público”, o projeto de lei do PCP “estabelece o regime de recuperação do controlo público da empresa CTT – Correios de Portugal”, o que “compreende todas as áreas de atividade desenvolvida pela empresa e deve ser realizada de forma a assegurar a continuidade dos serviços prestados, a manutenção dos postos de trabalho e a aplicação a todos os trabalhadores da contratação coletiva vigente, até substituição por outra livremente negociada entre as partes”.

“O Governo fica obrigado a criar as condições necessárias para que a recuperação do controlo público dos CTT seja realizada livre de ónus e encargos, sem prejuízo do direito de regresso quando a ele haja lugar”, refere o PCP.

O Governo “fica obrigado a adotar as medidas transitórias que se revelem necessárias à defesa do interesse público, nomeadamente promovendo a suspensão da negociação de ações dos CTT”, acrescenta o projeto de lei.

“É criada uma unidade de missão, a funcionar junto do Governo, com a responsabilidade de identificar os procedimentos legislativos, administrativos ou outros que se revelem necessários ao cumprimento das disposições da presente lei, dotada dos necessários recursos humanos e técnicos”, lê-se no documento.

Nacionalização dos CTT implica adoção de decreto-lei que evidencie interesse público

A nacionalização dos CTT implica a adoção de decreto-lei que evidencie o seu interesse público, caso contrário, o Estado tem de atuar como um investidor privado, segundo a jurista da PLMJ Sara Estima Martins.

De acordo com a sócia da PLMJ, especialista em Direito Europeu e da Concorrência, Sara Estima Martins, aquela lei "não só procedeu à nacionalização das ações representativas do capital social do Banco Português de Negócios SA, como também aprovou o regime jurídico de apropriação pública por via de nacionalização, que consta de anexo à referida lei".

Ou seja, "a lei n-º62-A/2008 pode servir, em abstrato, de base legal para outros processos de nacionalização. Nos termos do artigo 1.º do anexo à referida lei 'podem ser objeto de apropriação pública, por via de nacionalização, no todo ou em parte, participações sociais de pessoas coletivas privadas, quando, por motivos excecionais e especialmente fundamentados, tal se revele necessário para salvaguardar o interesse público', prosseguiu a jurista.

Questionada pela Lusa se tem conhecimento de algum caso de nacionalização de empresas do setor postal na Europa nos últimos anos, Sara Estima Martins afirmou: "Não tenho conhecimento de operações desse tipo na Europa em anos recentes".

Apontou que a nacionalização tem duas formas: ou é adotado um decreto-lei que evidencie o interesse público dos CTT ou então o Estado tem de atuar como investidor privado.

"O ato de nacionalização implicará a adoção de um decreto-lei que evidencie o interesse público subjacente ao ato", com observância dos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da concorrência, acrescentou.

A jurista salientou que o Direito da União Europeia "prevê o princípio da neutralidade da propriedade de empresas, o que significa que não se opõe a que as empresas sejam públicas ou a que uma determinada empresa privada seja nacionalizada",

No entanto, "ao fazê-lo, o Estado-membro deve atuar como atuaria um investidor privado, quer no que diz respeito às condições de comprar, quer no que diz respeito à gestão subsequente da empresa em questão".

Ora, "se o Estado não atuar como um investidor privado, a nacionalização implicará provavelmente a concessão de um auxílio de Estado. Nesse caso, a nacionalização da empresa deve ser notificada à Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia e não pode ser implementada antes da respetiva aprovação", explicou.

"Estes princípios e regras aplicam-se às empresas em geral, sendo que no caso das instituições financeiras existem regras específicas quanto aos auxílios concedidos pelos Estados-membros. A análise pela Comissão Europeia pode durar desde alguns dias até largos meses, dependendo da urgência e da complexidade do processo", apontou.

"No caso de uma eventual nacionalização dos CTT, se a mesma incluir algum elemento de auxílio, terá de ser notificada à Comissão Europeia. Não é muito relevante o facto de o Estado ser ou não acionista dos CTT, o que importa são as condições em que a empresa seja adquirida", concluiu a jurista.