“Nós não podemos assumir que a zona euro vai continuar a existir para sempre ‘faça chuva ou faça sol’, como se fosse ordem imutável. Se a situação se agravar muito, e os efeitos da Covid-19 constituem um teste extremamente complexo e difícil, a crise económica e financeira pode pôr em causa a zona euro”, disse Ricardo Cabral.
No entender do economista, “o passado não é indicador para o futuro” em termos da continuidade das instituições atuais, e não obstante a arquitetura da zona euro durar há pouco mais de 20 anos, pode existir um enquadramento mental de negação da mudança, e mesmo que seja “prematuro” decretá-lo, o fim da moeda única é um “cenário provável”.
“Os alemães, que viviam com a Alemanha de Leste e a Alemanha Ocidental, também já não esperavam que houvesse reunificação. E na União Soviética pensavam que iam viver nela para sempre”, argumentou o também professor na Universidade da Madeira (UMa), lembrando que “tudo isso mudou de um dia para o outro”.
Ricardo Cabral considera que a arquitetura do euro “sempre foi utópica e insustentável”, feita “de forma a defender os interesses do centro do poder, em particular da Alemanha e também da França”, com uma série de “soluções ‘ad-hoc’ que não se veem em mais nenhuma união económica e monetária do mundo desenvolvido”.
“A ideia de uma união é que o todo seja capaz de fazer mais do que as partes. Nós não temos o todo, não temos iniciativas globais, da federação. Essas iniciativas federais não existem. As partes, na realidade, conseguem fazer mais do que o todo. O todo está lá sempre a bloquear e a limitar”, considerou.
O economista crê que a zona euro se mantém por haver decisores “muito poderosos”, que, “sempre que a situação se aproximava do limite, tiravam um ‘coelho da cartola'”, dando como exemplo a frase do ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE) Mario Draghi, que disse que faria “tudo o que for necessário para salvar o euro”.
“Mas uma solução que depende de pessoas individuais e do seu génio, brilhantismo ou visão para sobreviver, ou seja, uma solução que não é estável, como esta arquitetura, está sempre dependente de chegarmos a crises e termos decisores que são ou não capazes de, em condições difíceis, tomar as melhores decisões”, sustentou.
Assim, Ricardo Cabral considera que, “quando a arquitetura é demasiado inflexível, há o risco dela colapsar”, acrescentando que, mesmo se houvesse “decisores brilhantes nas capitais europeias e nas instituições europeias, iria ser muito difícil para esses decisores, com os instrumentos que existem na zona euro, responder à crise”.
Neste sentido, o professor universitário advoga que a mutualização da dívida pública à escala da zona euro, na forma de emissão de títulos conhecidos como ‘coronabonds’, não é “a solução mais óbvia ou mais segura” atualmente.
“Não foram criadas as estruturas, as instituições, para facilmente criar dívida mutualizada no curto prazo”, observou o economista, dado que “a emissão de dívida pressupõe um tesouro e uma capacidade fiscal”.
No seu entender, quem emita “dívida federal teria de ter receitas, nomeadamente receitas fiscais”, bem como “ter despesa, tal como um orçamento”.
“O problema é, por exemplo, quem paga essas receitas? Que tipo de impostos federais é que serão criados? Quais são as contribuições dos países membros? Quem, ou qual país beneficia da despesa que resulte desse orçamento federal? Como beneficia?”, questionou Ricardo Cabral, advogando que a mera existência destas perguntas implica que é “muito difícil realizar num curto espaço de tempo” a emissão de dívida mutualizada.
Todavia, o professor universitário considera até “possível que surjam os ‘coronabonds’ ou ‘eurobonds'”, mas colocou ênfase nas “condições” em que tais emissões aconteceriam.
“Estamos novamente numa situação em que os países do sul querem muito uma coisa, e qualquer solução em que seja incluída essa proposta será vista como vitória” para esses países, referiu, advertindo que “pode dar-se o caso de as obrigações europeias acabarem por prejudicar mais o país do que beneficiam”.
Para Ricardo Cabral, países como a Alemanha e a Holanda, que se opõem à dívida mutualizada, “estão preparados para ceder”, mas “o mínimo possível em cada momento, para manter o ‘status quo’ o maior tempo possível”.
Assim, o economista defende que a solução mais segura atualmente será uma “em que os países membros emitem dívida a muito longo prazo e o BCE compra essa dívida, podendo ser perpétua ou a 100 anos”.
“Basicamente essa dívida desaparece de circulação e não conta para os rácios de dívida pública. É esse o objetivo”, defende.
O professor universitário considera que “houve alguma arrogância e falta de preparação das autoridades europeias” na reação económica à pandemia de Covid-19, sendo primeiramente “de choque, de negação”, estando atualmente as autoridades europeias a comportarem-se como se estivessem a passar os estágios psicológicos de uma reação a um “choque ou uma dor profunda”.
“E lentamente se começa a perceber que esta situação tem potencial para se tornar uma grande depressão”, alertou.
"Lay-off", um presente envenenado
“Acho contraproducentes as medidas do Governo que basicamente incentivam as empresas a recorrer ao ‘lay-off’ [suspensão temporária do contrato de trabalho], porque mesmo empresas que poderiam pagar o salário têm um incentivo […] a colocar toda a gente em ‘lay-off’ e fechar portas, vender a empresa, ou distribuir dividendos”, defendeu.
Ricardo Cabral deu o exemplo “uma empresa que consegue pagar os salários mas tem um incentivo do Estado a dizer para pôr os trabalhadores em ‘lay-off’ pagando só 30% dos salários”, considerando que “na prática o Estado está a dar dinheiro aos acionistas para pôr os trabalhadores em ‘lay-off’”.
Paralelamente, o professor na Universidade da Madeira (UMa) lembra que “ao reduzir os salários, o choque inicial que afetou a atividade da empresa propaga-se para os trabalhadores, que por sua vez ficam com menos rendimento e vão alterar o seu comportamento”, reduzindo a despesa, criando “um choque se que propaga pelo resto da economia”.
“Já vimos esta política de corte dos salários a ser aplicada recentemente, nomeadamente pela ‘troika’ [durante o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro]. Foi exatamente a mesma coisa, cortar os salários à maior parte das pessoas empregadas em Portugal”, referiu.
Ricardo Cabral crê que desta vez o choque “será ainda maior, dependendo da adesão a estes programas, nomeadamente ao ‘lay-off’ do Governo”.
Como alternativa, o professor universitário sugeriu doações públicas a microempresas e Pequenas e Médias Empresas (PME) de menor dimensão, bem como a existência de empréstimos convertíveis em capital, para empresas de maior dimensão, referindo ainda que, para muitos empresários, será demasiado arriscado pedir um empréstimo para continuar o negócio em tempos de incerteza.
“O empréstimo convertível em capital, com uma taxa de juro zero ou mesmo negativa, significa que a empresa recebe esse capital e assume essa dívida. Contudo, se o negócio evoluir desfavoravelmente, o risco para os acionistas é reduzido. O acionista passa a ser o Estado, que também se envolve e também sofre perdas como acionista, se a empresa não for capaz de pagar. Deixa de ser obrigação da empresa e, em alguns casos, do acionista - através de garantias pessoais - pagar essa dívida, a dívida desaparece”, explicitou, abrindo ainda a ‘porta’ a “injeções de capital diretas, dívida subordinada e doações” pelo Estado.
Para Ricardo Cabral, “o objetivo deveria ser gastar 1% ou 2% do PIB [Produto Interno Bruto] por mês nos próximos dois ou três meses para assegurar que tudo fica mais ou menos em ‘stand-by’”, para não se perder “muita capacidade produtiva e muito emprego”, admitindo porém que ‘congelar’ a economia no tempo “não vai ser possível”.
O economista reconheceu que “numa crise há sempre muito pânico”, e que “muitos empresários podem considerar que mais vale fechar portas e esperar para ver, e depois, se for necessário, recomeçar de novo”.
O primeiro-ministro anunciou na quinta-feira que os inspetores da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) terão poderes para suspender despedimentos ilegais, evitando abusos cometidos por entidades patronais na vigência do estado de emergência para combater a covid-19.
O ‘lay-off’ simplificado entrou em vigor em 27 de março e é uma das medidas excecionais aprovadas pelo Governo para manutenção dos postos de trabalho no âmbito da crise causada pela pandemia covid-19.
As empresas que aderirem podem suspender o contrato de trabalho ou reduzir o horário dos trabalhadores que, por sua vez, têm direito a receber dois terços da remuneração normal ilíquida, sendo 70% suportada pela Segurança Social e 30% pela empresa.
A remuneração tem como limite mínimo o salário mínimo nacional (635 euros) e como máximo três salários mínimos (1.905 euros).
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