Podemos começar pela conclusão: não, 2022 foi um ano marcante.
Os acontecimentos têm uma qualidade material, mas também uma componente psicológica, muitas vezes mais forte e perdurável. Ficam na memória mesmo depois de terem ocorrido e até quando as suas consequências “físicas” já se desvaneceram. Quando acontece muita coisa ao mesmo tempo, as pessoas sentem-se mais desnorteadas, sem direcção à vista.
2022 deu a sensação de que o mundo deu várias voltas ao Sol em 365 dias. Aconteceram situações suficientes para preencher vários anos “neutros”, ou “indiferentes” - como lhes queiram chamar. Estou a falar ao nível mundial, ou internacional, porque os casos individuais só aos indivíduos dizem respeito, cada um é que sabe, os efeitos ficam por ele e pelos seus próximos e não interessam a mais ninguém.
A grande surpresa infeliz do ano foi, evidentemente, a invasão da Ucrânia pela Rússia, logo em Fevereiro. Em termos históricos, não havia um ataque em grande escala, não provocado, contra um país soberano, desde 1939. De 1945, quando acabou a II Guerra Mundial, até 2022, passaram 77 anos, o mais longo período de paz dos tempos modernos. Claro que sempre houve guerras localizadas - não se passa um dia sem que haja algum conflito numa parte qualquer do planeta -, mas nenhum com as proporções e, sobretudo, com consequências tão profundas e disseminadas. Muitos deles foram seguidos ao minuto, como as guerras dos Balcãs e do Afeganistão (primeiro com os russos, depois com os americanos), o Iraque, a Síria, a Tunísia, as guerras civis, tribais e telecomandadas de fora, os estertores do fim do colonialismo o fim dos velhos imperialismos e o começo da nossa Guerra Colonial. Sangue, suor e lágrimas é o que nunca falta, contudo houve sempre uma localização, com consequências menores para as situações que agora sabemos serem básicas: a energia, os circuitos comerciais e financeiros. O quadro ideológico que justifica os conflitos também mudou, com o fim da Guerra Fria e o surgimento dos chamados conflitos “assimétricos” entre forças convencionais e guerrilhas. Mas nada que se compare globalmente com a “operação militar especial” russa. As consequências, cada uma por si (embora todas interdependentes) começaram ou metastizaram em 2022 e vão marcar os próximos anos.
Uma delas foi as subidas das taxas de juros e a turbulência dos circuitos económicos que afectaram, e continuarão a afectar, a estabilidade a todos os níveis, nacionais e individuais. Não são só os muito ricos sentem a incerteza e, logo, investem menos. Quem tem muito pouco e depende do crédito dificilmente poderá esquivar-se de custos cada vez mais longe das suas possibilidades. E a subida dos juros nos países ricos forçou a mesma tendência nos pobres, que sofrem mais com o aumento do preço dos alimentos.
Outra vertente, foi o disparar da inflação, mesmo em países que não têm uma relação directa com conflitos militares. O aumento da média mundial foi de 1,5% em relação ao ano anterior, o que não acontecia desde os 2,81% de 1994. Repare-se que estamos a falar de aumento em relação ao ano precedente, que é um valor mais pequeno do que o aumento bruto. E também estamos a falar da média global; em certos países industriais a taxa de inflação passou dos 10%, como no Reino Unido (11,1%), Na Argentina, por exemplo, foi de 72,4%; no Sudão atingiu os 154,9%. Pode argumentar-se que tanto a Argentina como o Sudão têm inflações altas endémicas, mas este ano foram multiplicadas pela subida de preço de bens básicos. Ficámos a saber que a Rússia e a Ucrânia, juntos, são o maior produtor de cereais do mundo.
A escassez de energia e subsequente aumento do seu valor, consequência directa da invasão, acabou por se alastrar por toda a parte, uma vez que os mercados são cada vez mais interdependentes. Uma má consequência é o custo, outra é a escassez. Ou seja, não só se tem de pagar mais para manter a maquinaria industrial ou o aquecimento das casas, como, em geral, nem pagando mais se consegue obter o gás, gasolina, petróleo ou a electricidade quando se precisa. Não são só os ucranianos que gelam com a destruição da infraestrutura eléctrica; os ingleses, cuja infraestrutura não sofreu danos, estão a pagar mais 80% para aquecer as suas casas.
A pandemia de Covid-19 também sofreu alterações significativas este ano. Nos países industriais tornou-se endémica e deixou de ser um factor de isolamento. Muito provavelmente será lembrada como a “peste” de 2019-22. Mas na China passou-se precisamente o contrário; neste final do ano, o Governo, pressionado pela crescente impopularidade, decidiu abandonar a política “zero-covid”, expondo uma população de 1,4 mil milhões de pessoas, com baixo índice de vacinação, à situação que se verificou na Europa em 2020. Segundo informações vindas de Pequim, os hospitais estão sobrelotados e as cremações aumentaram. Não é por acaso que o nível de confiança internacional nos investimentos na China chegou em Novembro ao valor mais baixo dos últimos dez anos. Mesmo assim, as opiniões internacionais são unânimes em considerar que, num futuro não muito longínquo, a China será um inimigo dos direitos humanos muito mais importante do que a Rússia.
Na vertente política, o ano também ficou marcado por uma sucessão de situações de charneira - no verdadeiro sentido da palavra, a criação de um “antes” e um “depois”. Morreu Isabel II, simbolicamente a última rainha da Inglaterra imperial. E também morreu Mikhail Gorbachev, simbolicamente o último dirigente da União Soviética. Tanto o Império como a União das Repúblicas Socialistas foram-se antes deles, mas o morte dos protagonistas tem um simbolismo especial.
Também deve ter morrido politicamente, embora ainda não tenha percebido, Donald Trump, a mais séria ameaça ao sistema (mais ou menos) democrático norte-americano desde a Guerra Civil de 1861-65. Trump, cujos candidatos endossados por ele perderam espetacularmente as eleições deste ano, tem vários processos civis e criminais às costas e as sondagens indicam uma baixa da sua famigerada base de apoio. Se Trump concorrer e ganhar às eleições de 2024, o mundo muda outra vez. Infelizmente, quem é o Presidente dos Estados Unidos faz diferença tanto para quem gosta como para quem detesta o poderio norte-americano. Imaginem só como estariam os ucranianos se Trump fosse presidente este ano... A radicalização entre as democracias e as autocracias é uma constante em que as primeiras parecem que estão a perder.
Houve muitas mudanças de governo, umas pacíficas outras nem tanto, mas duas podem marcar uma diferença; o regresso de Lula da Silva no Brasil, o que significa a sobrevivência da floresta amazónica (para não falar de outras significâncias que só interessam ao Brasil) e Benjamin Netanyahu retomou o comando de Israel com um governo radical de direita, o que decerto trará mudanças perigosas na região, desde a situação dos palestinianos ao conflito latente com o Irão, passando pelo fim da diplomacia de apaziguamento com os países árabes. Na China, Xi Jinping consolidou o seu poder com um inédito terceiro mandato à frente do Partido Comunista da China, aumentando a hipótese de uma invasão de Taiwan.
Em França, Macron derrotou novamente a extrema-direita de Marine le Pen, compensando, digamos assim, a vitória de Georgia Meloni em Itália.
Na Pérsia, o cenário mudou bastante este ano, com a vaga contínua de protestos contra a teocracia de Teerão, provocada, como tantas vezes acontece, por um único incidente, a morte de uma rapariga por não usar o véu islâmico a preceito.
No que toca a direitos humanos, 2022 marca dois recuos tristes: a decisão do Supremo Tribunal norte-americano de criminalizar o aborto e a adopção da Indonésia de um novo código jurídico que criminaliza o sexo fora do casamento, limita a liberdade de imprensa e aumenta a ortodoxia religiosa. Em compensação, o executivo norte-americano conseguiu legalizar o casamento de pessoas do mesmo sexo - a luta pelos direitos continua e não se vê fim à vista.
O Mundial de Futebol no Qatar provavelmente marcará o apogeu do sistema corrupto que funciona há anos na FIFA, mas ainda é cedo para saber se o maior espectáculo do mundo vai finalmente entrar numa linha de decência, ou se continua tudo na mesma.
No campo das alterações climáticas e da biodiversidade - dois conceitos diferentes -, os resultados do ano são desanimadores. A COP27, que decorreu no Egipto, os compromissos difíceis e irrealizáveis demonstram, mais uma vez, de que não haverá avanços significativos na batalha pela sobrevivência climática. Na COP 15 (que não tem nada a ver com a 27, pois trata da perda de biodiversidade), que decorreu no México, também não se conseguiu um consenso global, por razões tanto políticas como científicas.
Todos os anos morrem figuras públicas que fizeram diferença, mas em 2022 perderam-se algumas que fizeram uma diferença ainda maior: da Rainha Isabel II a Mikhail Gorbachev, do escritor Javier Marias a incontáveis artistas - músicos, actores, realizadores, artistas plásticos. Se quer chorar um bocadinho, veja esta lista. Se, como eu, gosta de rock’n’roll, chore ainda mais com esta. É o desaparecimento daquelas pessoas que, não sendo importantes numa escala política, nos tocam emocionalmente e fazem sentir uma perda mais dolorosa. É o caso, entre tantos exemplos, do humorista Sempé, um observador delicado e contundente da condição humana. Ou de Franz Mohr, um completo desconhecido que foi durante décadas o responsável pela qualidade dos pianos Steinway.
Há também factos positivos, muito positivos mesmo, como a descoberta do Universo pela sonda James Webb, ou o anúncio dos primeiros passos para tornar exequível a fusão nuclear, uma forma de energia infinita e não poluidora. São avanços numa longa caminhada e não pontos fulcrais que possam ficar ligados a um ano em particular. Mas, pelo menos, não há só más notícias.
Certamente que me esqueci de muitos factos e pessoas que cuja importância o futuro mostrará. Pode ser que tenha nascido este ano o primeiro homem a por os pés em Marte!
Por mais desanimador que seja o presente, o futuro é sempre promissor.
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