A actualidade persegue-nos. Mesmo que não queiramos prestar atenção, as situações entram-nos pela porta dentro e é impossível ignorá-las. Não são só os acontecimentos em si, mas também aquilo que os acontecimentos sugerem que vai acontecer a seguir. Um desatino.

Há quem prefira preocupar-se ou entusiasmar-se com “fait divers”, o custo do azeite ou o futebol, para evitar interiorizar o que se está a passar à nossa frente ao vivo e a cores - felizmente, na televisão. para a maioria, por enquanto. Cidades destruídas, crianças ensanguentadas, homens poderosos a quem não demos nenhum mandato a extravasar os seus egos provocando desgraças inauditas; 2023 foi um ano tão repulsivo que até parece que o período imediatamente anterior da pandemia (2019-21) foi um passeio de barco à vela - solitário e confinado, mas com vistas idílicas.

Estou a mostrar-me assustador, exagerado? Digo-lhes já que sou uma pessoa optimista, que ainda tem aquela ilusão utópica de que a humanidade tem futuro e se há-de safar dos seus próprios disparates. As coisas que considero más - ou mesmo más sob qualquer consideração - podem ser vistas como tropeços na caminhada da espécie para um futuro misterioso mas não inevitavelmente catastrófico.

Além disso, definir os eventos que marcaram o ano é sempre uma escolha parcial e deixa de fora áreas que são importantes para uns e inexistentes para outros.

Posto isto, e seguindo o maior número de fontes que me é possível - ainda são bastantes - 2023 foi um ano que interrompeu muitas narrativas do correr dos tempos. Pode ser ou, não ser, um “ano-charneira” entre uma ordem e outra, mas foi sem dúvida um manancial de surpresas.

O pano de fundo, impossível de ignorar, são as catástrofes naturais e as alterações climáticas.

Em Fevereiro, um dos maiores terramotos do século destruiu cidades inteiras no sul da Turquia, matando 56 mil pessoas - e mais 6 mil na vizinha Síria. Em Setembro, outro tremor de terra em Marrocos - o mais devastador na história da cordilheira do Atlas - reduziu a nada uma quantidade ainda não definida de vilas e aldeias e matou pelo menos três mil pessoas. O número exacto, muito maior, nunca se saberá. A incerteza deve-se à resposta miserável das autoridades marroquinas, que recusaram ajuda internacional e não agiram atempadamente, nem sequer para fazer o balanço do desastre. Já no final do ano, e ainda a decorrer, uma série de erupções vulcânicas excepcionais na Islândia obrigou à evacuação de várias localidades. Como a Islândia é um país civilizado e está habituada a grande actividade vulcânica, as evacuações preventivas evitaram vítimas, mas ainda não se sabe o grau de destruição material.

As alterações climáticas manifestaram-se em temperaturas nunca sentidas - no Brasil, 44,8ºC perto de Belo Horizonte 42,5 no Rio de Janeiro e 37,8 em São Paulo; no Mali a temperatura média chegou aos 28,83ºC. No mundo inteiro o calor médio anual foi de 28,83ºC - não parece muito, mais há que notar que é uma média, ou seja, inclui as quatro estações. Outubro como um todo foi 1,7°C mais quente do que uma estimativa da média realizada para o período 1850-1900, ou seja, o período de referência pré-industrial. O planeta ultrapassou os mais de 1,5°C de elevação média da temperatura, im valor que só se esperava para 2050.

A onda de calor provocou estiagem sem precedentes e uma série de incêndios nunca vistos em Rodes e Corfu (Grécia) além de 18 milhões de hectares de floresta no Canada, para só falar nos mais divulgados. O fumo vindo das florestas canadianas chegou a Nova Iorque, a três mil quilómetros de distância! A subida de temperatura nos oceanos provocou o degelo de grandes massas de gelo nas calotas norte e e sul, o que por sua vez provocou uma subida da água dos oceanos. A ilha da Palau, situada na Oceânia, com cerca de 450Km2, já começou a fazer planos para evacuar os seus 21.000 habitantes. Os tufões (tornados), que aumentam de intensidade com o calor da superfície da água do mar, também se multiplicaram este ano. Nos Estados Unidos, o país tradicionalmente mais atingido, contaram-se mais de 1.200.

Não existem mais dúvidas na comunidade científica de que as subidas de temperatura se devem à a acção humana - dai que 2023 seja o terceiro ano de um novo período da Terra, chamado Antropoceno, nome que significa que, pela primeira vez na História do mundo, há um novo período geológico provocado pela acção do Homem.

O grande motor das alterações climáticas é o uso dos combustíveis fósseis - sobre isso também já não há dúvidas na comunidade científica - mas 2023 assistiu à maior palhaçada na pseudo-reacção a essas alterações - o COP28, a cimeira internacional para lidar com um problema que ameaça a extinção da espécie. Como já falei aqui noutra altura, decorreu num país produtor de petróleo, dirigida pelo director da petrolífera nacional, e com a presença de mais lobistas pró-pretróleo do que delegados nacionais. À última hora conseguiu-se uma declaração dúbia em que se fala de “transição” da energia fóssil para outros tipos não poluentes em 2050 - daqui a 27 anos. É a altura de lembrar que todos os objectivos acordados nos COP anteriores não foram alcançados, e assim caminhamos para o abismo com um sorriso hipócrita, incapazes de abdicar dos confortos que os produtos pretolíferos nos proporcionam.

Então, o ambiente é o cenário do espectáculo deste ano. É a altura de passar aos protagonistas. Ao nível internacional, os mais salientes foram, sem dúvida, Vladimir Putin, a sua nemésis Volodymyr Zelensky, o inevitável Donald Trump e o “enfant terrible” Mohammed bin Salman Al Saud. Fora estes, a lista depende muito dos interesses de quem a faça. Basta vasculhar a Internet para encontrar listas para todos os gostos. Por exemplo, uma delas, do site Legit coloca Cristiano Ronaldo em primeiro lugar. A revista Time, fez uma lista dos “100 mais influentes” do ano que inclui pessoas como o actor Michael B. Jordan, o cantor Shervin Hajipour e dezenas de outros que, para a maior parte do mundo, são desconhecidos. E houve figuras que encheram as manchetes durante parte do ano, como o líder russo Yevgeny Prigozhin e depois desapareceram (no caso dele, literalmente) e que para o ano já ninguém se vai lembrar.

Melhor do que avaliar o ano pelos protagonistas, é lembrar os acontecimentos. Como sempre, as guerras são os mais importantes; não há maneira de nos livrarmos delas. Há sempre algumas a decorrer, todos os anos - aliás, todos os dias - mas as duas que marcaram 2023, transitam para 2024 e nunca mais serão esquecidas, são, obviamente, a da invasão da Ucrânia pela Federação Russa e a destruição da faixa de Gaza por Israel. As duas produziram imagens que já não esperávamos ver no mundo - não esperávamos pela ingenuidade de pensar que o Homem tinha evoluído o suficiente para não destruir cidades à bomba, matar pessoas à fome e outras barbaridades à escala industrial.

Nem vou registar aqui os massacres que ocorreram um pouco por toda a parte durante 2023, do Darfur à China (os Uhigur), as guerras civis, os tiroteios que ocorrem diariamente nos Estados Unidos, os genocídios em Mianmar e Ruanda - nada disto será lembrado para o ano, quer continue, que acabe.

Atípica, em 2023, é a coincidência de pelo menos duas guerras com repercussões internacionais. Atípica é a crispação do radicalismo dentro dos países, quer seja por causa dos imigrantes, decadência dos serviços públicos e divergências políticas. Em 2023, todos os dias, quando ligávamos a televisão, acontecia alguma coisa nova e esquisita, senão deprimente, senão terrível. Políticos que venderam a cara para ficar no poder (como Pedro Sanchez em Espanha), dirigentes incompetentes que não se sentiam obrigados a demitir-se (como Kevin McCarthy nos Estados Unidos ou João Galamba  em Portugal, para dar dois exemplos nas antípodas)

Para mim, 2023 foi o ano em que percebi que “isto” - o meu país, o mundo de todos nós - não vai melhorar, só pode piorar. Já devia ter percebido há mais tempo, os sinais estavam todos lá, mas, não sei porquê, aconteceu este ano. Situações que não se podiam imaginar e, pior, não se vê como se poderão resolver. 2023 foi o ano em que o bom senso se extinguiu oficialmente.

Feliz Ano Novo!