Com o Natal regressam as histórias conspiratórias em torno da guerra fratricida entre o Pai Natal e o Menino Jesus, com ambas as partes a tentarem cancelar-se mutuamente como se fosse impossível às personagens conviverem no nosso imaginário natalício em verdadeiro espírito de fraternidade cristã.

Talvez por isto, ou decorrendo disto, um dos textos mais partilhados por estes dias, alegadamente da autoria de Francisco Moita Flores, começa assim: “Primeiro, levaram-nos o presépio, trocando-o por uma árvore. Depois, levaram o Menino Jesus, trocando-o por um indefinido Pai Natal promovido pela Coca-Cola, a seguir impingiram a ideia de que a troca de presentes da Noite de Natal, deveria estar ao serviço das grandes superfícies e consumos desenfreados que agradam aos grandes armazéns, mas perderam a dimensão do afecto”. Depois de ironizar, Moita Flores remata, apontando o dedo ao principal culpado: “O Deus consumista” que governa a quadra e fragiliza o sentido espiritual do Natal.

O tom, apesar de quase catastrofista, é legítimo, e até Greta Thunberg concordaria com o carácter nocivo das toneladas de desperdício que nesta altura invadem as ruas e que decorre directamente da febre consumista desta época. Será igualmente legítima outra ideia inerente ao texto: os fenómenos de consumo, materialistas na sua génese, eclipsam os valores espirituais e morais que o nascimento de Jesus Cristo representa, particularmente num contexto de redes sociais que, num exercício hábil de ilusionismo, mais separam do que unem.

A discussão já não é nova e a figura do Pai Natal aparece a maioria das vezes a assumir o papel do Deus consumista em que o dinheiro e o estômago dilatado são os seus principais atributos, e o consumo desenfreado a sua advocacia. Um vassalo do capitalismo, portanto. Ao conceber-se um Deus assim, ainda mais com um ar tão amigável, reforça-se a ideia tantas vezes repetida de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Mas como combater este fenómeno, recentrando as festividades natalícias nos valores espirituais, evitando a todo o custo cair em extremismos, designadamente religiosos? As tentativas de resposta são velhas e nunca suficientemente convincentes, e os resultados são raramente edificantes para quem os praticou.

Quem nos descreve e analisa detalhadamente uma dessas tentativas que alegadamente se propunha recuperar o verdadeiro significado cristão das festividades é o eminente e saudoso antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, no célebre artigo em torno de um Pai Natal “supliciado”. O Antropólogo descreve esse episódio real a partir dos registos do acontecimento tal como relatados na época pelo jornal “France Soir”, e que aqui se reproduz:

"Pai Natal Queimado no átrio da Catedral de Dijon perante crianças da catequese

Dijon, 24 de Dezembro

O Pai Natal foi enforcado ontem à tarde nas grades da Catedral de Dijon e queimado publicamente no adro. Esta execução espectacular ocorreu na presença de várias centenas de crianças da escola dominical. Foi decidido com o acordo do clero, que condenou o Pai Natal como usurpador e herege. Era acusado de paganizar a festa de Natal e de se ter instalado como um intruso, ocupando cada vez mais espaço. Ele é censurado principalmente por ter entrado em todas as escolas públicas das quais foi banido cuidadosamente o Presépio.

Domingo, às três horas da tarde, o infeliz de barba branca pagou, como muitos inocentes, pelo erro cometido por aqueles que aplaudiram a sua execução. O fogo incendiou a barba e fez com que se transformasse em fumo.

No final da execução, foi publicado um comunicado de imprensa, cujos principais pontos são os seguintes:

- Representando todas as famílias cristãs da paróquia que desejam lutar contra a mentira, 250 crianças, agrupadas em frente à porta principal da catedral de Dijon, queimaram o Pai Natal.

- Não foi organizado como espectáculo, mas como gesto simbólico. O Pai Natal foi sacrificado em holocausto. Na verdade, mentir não pode despertar sentimentos religiosos nas crianças e não é de forma alguma um método de educação. Os outros podem dizer e escrever o que quiserem sobre o Pai Natal, mas o facto é que ele é apenas o contrapeso de um Homem do Saco moderno. Para nós, cristãos, a festa do Natal deve permanecer o aniversário do nascimento do Salvador.’

A execução do Pai Natal na praça da catedral foi apreciada de modo diversificado pela população e provocou fortes comentários, até mesmo entre os católicos. Além disso, este evento corre o risco de ter consequências imprevistas para os seus organizadores.

(...)

O caso divide a cidade em dois.

Dijon aguarda a ressurreição do Pai Natal, assassinado ontem no pátio da catedral. Irá erguer-se esta noite, às 18h, nos Paços do Concelho. Um comunicado oficial anunciava, de facto, que as crianças eram convidadas a dirigirem-se à Praça da Libertação onde o Pai Natal iria falar para elas do alto dos telhados do edifício dos Paços do Concelho, onde circulará debaixo dos holofotes.

O cónego Kir, vice-presidente da Câmara de Dijon, absteve-se de tomar partido nesse assunto delicado."

O “suplício” do Pai Natal de Dijon transformou o Pai Natal num mártir dos tempos modernos, os seus torturadores em figuras ridículas e non gratas, e o episódio no primeiro grande circo mediático internacional em torno da figura do Pai Natal.

O carácter reaccionário dos promotores deste auto-de-fé esvaziou-o do seu espírito salvífico inicial, sobrando-lhes apenas uma humilhação que em nada beliscou o ímpeto comercial do Natal. Até pelo contrário, nunca, como desde então, o Natal representou de modo tão evidente o consumo e o materialismo puro das sociedades capitalistas que progressivamente vão-se deslocando das igrejas para os centros comerciais.

Porém, outros resistem sem terem de incinerar pais natais, celebram o Natal em família reduzindo ao mínimo os apelos puramente materialistas, colocam no centro das celebrações os ensinamentos sobre união, justiça e verdade que decorrem dos ensinamentos do primeiro presépio. Cultivam este tipo de sabedoria do espírito através da leitura e da meditação a partir de textos bíblicos, da escuta da música, de orações, são estes os verdadeiros mensageiros do Natal autêntico.

Voltando às duas personagens mais queridas desta época. Pelo seu inegável carácter universal, Pai Natal e Menino Jesus bem poderão dar uma lição de conciliação por representarem duas partes de um só: o primeiro pela sua comicidade e pelo seu lado lúdico, o segundo, pelo seu valor espiritual profundo, gerador da luz e da união entre pessoas e comunidades. Princípios fundamentais quando falamos da convivialidade equacionada a partir do espírito de fraternidade cristã.

Feliz Natal.