Vem a pergunta a propósito da proposta na legislação Mais Habitação, segundo a qual quem tiver depósitos, seguros de capitalização, PPR, Certificados de Aforro e Tesouro, ou outros produtos de poupança que ultrapassem os 29.786 euros não tem direito a apoio do Estado na bonificação dos juros em créditos à habitação.

“Depende” é capaz de ser a resposta mais acertada a esta pergunta. E é verdade. Depende do que estamos a falar e depende do que queremos avaliar. 29 mil euros é muito dinheiro para ter de poupança aos 66 anos quando a reforma média em Portugal é de 1336 euros, em trabalhadores da administração pública, e 594,41 euros se usarmos o valor médio das novas pensões de velhice na Segurança Social?

Os anos que se seguem, para uns e para outros, são, maioritariamente, de redução de rendimentos. Se não houver doenças que obriguem a cuidados maiores ou uma cirurgia urgente ou especialmente complexa que obrigue a procurar solução fora do SNS, num cenário desejável de se viver com saúde até aos 100 anos, 29  mil euros de poupança - caso se decida gastar – são cerca 2.127,5 euros por ano entre os 66 e os 80 anos, idade da esperança média de vida.

2.127,5 euros por ano são 177 euros por mês. Não se fazem viagens por aí além, mas pode levar-se a família mais próxima a jantar fora uma vez por mês, a 4 ou 5 pessoas, num restaurante que não seja mais caro do que a extravagância de 20 euros por pessoa - e ainda sobra, imagine-se.

29 mil euros é muito dinheiro para dar de entrada numa casa? Vamos dizer uma primeira casa, um T1, em Lisboa. Além do teto dos 29.786 euros em poupanças, a bonificação não se aplica a créditos superiores a 200 mil euros. Se pesquisarmos T1 em Lisboa até 220 mil euros (assumindo uma entrada de 29 mil e impostos), o portal imobiliário Idealista devolve-nos 316 casas.

Façamos então o exercício de simulação para a compra de uma casa de 45 metros quadrados tomando como referência um preço médio por metro quadrado em Lisboa de 4947 euros, o que resultaria num valor de venda de 222.615 euros. 10% para entrada são 22.261 euros, a que acrescem os impostos, que facilmente fazem o valor global de entrada ultrapassar o tal teto dos 29.786 euros.

Assumindo que o comprador é um jovem que ganha o salário médio em Portugal (sendo que a maioria não ganha sequer esse valor) – 1361 euros brutos, que equivale 924 euros líquidos – e que o banco validaria o crédito, estaríamos a falar de uma prestação a rondar os 826 euros. Ou seja, uma taxa de esforço acima dos 50% se for só uma pessoa, o que à partida inviabilizaria a concessão de crédito, mesmo com 29.786 euros de poupança e sem juros bonificados porque, lá está, ultrapassou o limiar definido como suscetível de apoio social.

Estas contas ajudam-nos a traduzir na vida de todos os dias uma discussão que se tornou um ping-pong de acusações na estafada divisão esquerda-direita. Que é na prática uma discussão estéril, à esquerda e à direita e, sobretudo, ao centro que nos governou nos últimos quase 50 anos de democracia. Por vezes, é só mais simples aceitar que duas coisas que são apresentadas como incompatíveis ou até contraditórias podem estar simultaneamente certas.

Neste caso, significa que é certo considerar que os mais pobres devem ser uma prioridade de apoio social, não apenas na habitação, como noutras matérias. Mas também significa que, se ao fim de quase 50 anos de democracia, 29 mil euros de poupança configuram uma situação suficientemente abastada para alguém ficar excluído de bonificação na compra de habitação – que é hoje o maior fator de desigualdade social - , não só há qualquer coisa de errado na ideia de bonificação social, como se atiça um confronto ideológico que torna a pobreza uma espécie de troféu de quem a exibe como argumento moral.

A aproximação do salário mínimo ao salário médio é uma boa – e justa - notícia para quem ganha menos e para a sociedade como um todo. O que não é boa notícia é que o inverso seja verdade e que o salário médio se aproxime do mínimo, em vez de progredir para uma média mais próxima do patamar de um país desenvolvido. Dizem-nos os dados do Eurostat que, em 2021, o salário médio bruto em Portugal foi de 19.300 euros, o 10º mais baixo de toda a União Europeia, cuja média foi de 33,5 mil euros.

Este é o momento em que na tal discussão estafada da esquerda-direita ouvimos que a culpa é das empresas. Porque se aumentassem os trabalhadores em linha com os ganhos de produtividade, o salário médio seria melhor. E, imagine-se, também neste ponto é possível ter razão e não ter. Porque, contrariamente ao aumento do salário mínimo, decretado pelo Governo, o que as empresas pagam em salários depende uma variedade de circunstâncias, que vai do setor, da concorrência global e de fatores extemporâneos como pandemias e guerras que podem mudar rapidamente as contas. Claro que também depende da qualidade da gestão, e há muito a progredir nessa matéria, e da avareza e sentido de justiça dos donos, acionistas ou gestores, e seria mais fácil generalizar que esse é “todo” o problema. O problema é que não é.

Por outro lado, quando fazemos contas, seja na nossa vida pessoal, seja numa empresa, seja no país, não importa apenas o que ganhamos, mas também o que gastamos.

A definição de qualidade de vida pode ter diferentes interpretações, de acordo com as opções de cada um, mas em todas custa dinheiro. Ter uma casa, ter acesso à educação, própria ou para filhos e netos, ter acesso à saúde, própria ou para filhos e netos, poder comprar livros, ir ao cinema e viajar não são luxos asiáticos, mas sim, em doses ajustadas ao que cada um valoriza, ambições legítimas de “qualidade de vida”.

E o que gastamos atualmente para ter uma casa, em crédito bancário ou arrendamento, compromete todas as outras contas mensais.

O que devíamos estar a discutir é por que razão não tivemos até aqui a capacidade, enquanto país, de sair dos níveis de pobreza que persistem e por que razão há quem desvie a conversa para um lugar moral em que se procura que nos envergonhemos por ambicionar uma qualidade de vida ao nível de um país desenvolvido. Que são os mesmos que consideram que a preocupação com os jovens que ganham acima do salário médio é uma afronta porque  são uma minoria. O problema é serem uma minoria e o objetivo deveria ser que não fossem e, sim, implica melhores salários nas empresas e nas entidades públicas, estranhamente unidas nas premissas de que isso só é possível com crescimento económico e com melhor distribuição da riqueza. E, imagine-se de novo, é possível defender a justeza das duas premissas.

Queremos acabar com os pobres ou queremos acabar com os ricos é a velha frase que resume batalhas ideológicas, mas que continua a deixar no limbo aquele cidadão médio, que não quer ser pobre, que provavelmente não vai ser rico, mas que tem a ambição legítima de ter qualidade de vida. Este cidadão faz parte de uma imensa maioria que já tem problemas suficientes, não precisa de ficar envergonhado porque juntou 29 mil euros e por causa disso ficará excluído da bonificação de juros para compra de uma casa.

Escrevi que a habitação é o maior fator de desigualdade social e isso é especialmente verdade na geração mais qualificada de sempre, como não nos cansamos de repetir. Um salário médio líquido de 924 euros (que, recorde-se, é ainda menor entre os mais jovens) é sustentável para quem herdou uma casa ou pode, por alguma circunstância, não ter de pagar renda. Para quem procura comprar a primeira casa, nomeadamente nas principais cidades, a opção passa a ser entre ficar em casa dos pais e ter vida (não é qualidade de vida, porque ter uma casa a que chama sua deve ser parte dessa definição) e sair de casa dos pais e trabalhar para pagar a renda.

Se com isto tudo alguém se espanta que emigrem ou desistam de ser melhores nas empresas onde trabalham, é porque está desligado da natureza humana.

"Faça o que fizer, vou continuar a viver mal e ainda assim querem que corra mais?"

Só mesmo nos contos morais, mas lembrem-se que já não são crianças.