Ponto prévio. É legítimo e salutar que cada um de nós trabalhe apenas 35 horas por semana ou até menos. Funcionário público ou trabalhador no sector privado, homem ou mulher, novo ou velho, no campo ou na cidade.

Uma boa parte dos avanços civilizacionais das últimas décadas ocorreu, precisamente, na melhoria das condições de trabalho, na busca de uma melhor conciliação entre a vida profissional e a vida familiar e pessoal e nos apoios sociais que se desenvolveram para suportar essa mudança.

Se a trajectória ideal é esta, a questão que se segue é saber até que ponto podemos trabalhar menos e manter ou aumentar o nível de vida que também ambicionamos. Ou, dito de outra maneira, até que ponto a redução do horário de trabalho não compromete a produção, reduzindo-a ou aumentando o seu custo.

A discussão em curso sobre a redução do horário semanal de trabalho de 40 para 35 horas para toda a função pública - há áreas do Estado, como as autarquias, que mantêm as 35 horas - é sintomática de vários dos nossos problemas e vícios. E no final a Função Pública não sai bem na fotografia.

O primeiro vício é a qualidade da tomada de decisão.

O programa do Governo promete “o regresso ao regime das 35 horas semanais de período normal de trabalho para os trabalhadores em funções públicas sem implicar aumento dos custos globais com pessoal”. É suposto que o Governo prove previamente aos contribuintes, que são quem paga a factura, que o Estado vai, no mínimo, fazer o mesmo com toda a gente a trabalhar menos. Ou seja, que não haverá nem mais uma hora extraordinária paga para compensar a redução de horário nem um trabalhador admitido. É óbvio que isto não será possível, como, aliás, o ministro da Saúde já admitiu para a sua área.

Mas é fundamental estimar o custo da medida. O anterior governo, quando aumentou o horário semanal para 40 horas, estimou uma poupança inicial de 200 milhões de euros por ano e depois corrigiu-a para 153 milhões. Não é verdade? Foi menos? Foi mais? Que impacto teve na despesa pública e nos serviços que o Estado presta?

O ministro das Finanças tem-se mantido, e bem, no registo “se não houver custos” mas o primeiro-ministro já tratou de fixar uma data, 1 de Julho, para as 35 horas entrarem em vigor. Desconhece-se de que estudos dispõe António Costa que lhe garantam que a premissa do programa do Governo será cumprida. Não tem, obviamente. Mas o que é que isso importa? Depois logo se vê e no final os contribuintes pagam a factura, seja trabalho dentro do horário regular ou extraordinário. Não foi sempre assim?

Depois, não deixa de ser extraordinário que um agente económico admita que uma redução de 12,5% do horário dos seus trabalhadores sem equivalente redução de salário é feita sem custos. Então o que têm os funcionários públicos feito durante as 20 horas mensais adicionais em que estão no local de trabalho? Não trabalham? Ou trabalham mas o que produzem não tem valor e é economicamente irrelevante? É indiferente trabalhar sete ou oito horas por dia? Os organismos não precisam de reforços de pessoal para manterem o mesmo nível de serviço? Seguindo a mesma lógica e levando-a ao absurdo, podemos reduzir o horário para 30, 25 ou 20 horas semanais no Estado que o impacto será o mesmo, nulo?

Na função pública trabalha-se tão bem e tão mal como na generalidade das empresas privadas. Há de tudo, dos gestores ao último estagiário admitido. Há os incompetentes, os inadaptados, os preguiçosos mas há também profissionais como os melhores de qualquer organização. O problema no Estado é outro e está na ausência de racionalidade económica na decisão de políticas públicas e na forma como é gerido. Há pouca transparência nas contas, não há responsabilização por resultados, a avaliação de mérito é coisa de que ninguém quer ouvir falar e, no final, há sempre mais um imposto que se aumenta para pagar as ineficiências. Como o Estado não vai à falência, as contas não são para aqui chamadas.

Mas quando se diz que a função pública pode trabalhar menos 12,5% do tempo sem acréscimo de custos, não se está directamente a desvalorizar o trabalho no Estado, a sua qualidade e a produtividade dos funcionários?

Ah, já sei. Isto vai ser conseguido com “ganhos de produtividade”. Portanto, no dia 1 de Julho os serviços do Estado que reduzem o horário de trabalho vão aumentar a sua produtividade em 12,5% ou perto disso. Fantástico. Se o conseguem, porque não o fizeram nos últimos anos e décadas, no que teria sido um enorme contributo para evitar o “buraco” onde nos metemos?

Para dificultar um pouco as coisas, porque isto estava fácil demais de gerir, o Governo avança com a redução do horário semanal ao mesmo tempo que torna mais rígidas as regras de trabalho no Estado. Mobilidade de funcionários entre os vários departamentos, diz o Programa do Governo, só de forma voluntária e “sem excluir a adoção de incentivos especiais para este efeito”. Ou seja, mais dinheiro para cima do problema. Como é que o Governo garante que não há mais despesa se para acudir a uma área onde seja necessário reforçar quadros tem de pagar a funcionários que transitem de outros departamentos e, mesmo assim, tudo dependa da vontade destes?

Como se não bastasse, na última semana o Governo foi obrigado a assumir perante Bruxelas que vai continuar a reduzir o número de funcionários públicos em função das saídas para a reforma. Segundo as contas das Finanças, deverão aposentar-se este ano cerca de 20 mil trabalhadores o que, aplicando a regra do “só entra um por cada dois que saem” deverão deixar os quadros do Estado 10 mil trabalhadores, em termos líquidos.

Seria uma boa notícia se entretanto o Governo não se preparasse para carregar mais nos custos.

Menos 12,5% de horas de trabalho, menos 10 mil funcionários, ausência de mecanismos de mobilidade em benefício dos serviços, tudo sem mais despesa e com o mesmo nível de produção e serviços? A piada é boa. Mas agora a sério, quanto é que isto vai custar aos contribuintes?

OUTRAS LEITURAS

  • A TAP fecha rotas? Se o mercado existe outros ocupam rapidamente o lugar deixado livre. Na aviação isso é hoje mais verdade do que nunca, com a liberalização das rotas que nos levam a mais sítios por muito menos dinheiro.
  • Depois de ter desafiado a distribuição, o YouTube entra agora também na produção de conteúdos e hoje estreia quatro séries próprias. É o tradicional modelo de negócio da televisão que está em causa.