O emir também quis que o Qatar passasse a marcar a agenda desportiva: tratou de conquistar a organização de campeonatos mundiais, do ciclismo (no deserto) ao andebol (em pavilhões sumptuosos). O filão não poderia passar ao lado do futebol e a multimilionária família do emir tornou-se proprietária do Paris Saint-Germain, ao mesmo tempo que a companhia aérea de bandeira é patrocinadora principal do Barcelona de Messi e Iniesta. A maior glória para o Qatar é a conquista da organização do Mundial de 2022, ainda que por entre muita controvérsia e rumores de corrupção entre delegados da FIFA.

Mas a principal arma para a ambição de soft power do emir do Qatar foi um canal de televisão com notícias non-stop: a Al Jazeera nasceu em 1996, com base em Doha, capital do Qatar, com invejáveis meios técnicos e recursos humanos para emissões que começaram em língua árabe e, dez anos depois, também em língua inglesa, quase sempre com alto nível profissional. O emir atribuiu-lhe um fundo fundacional com valor equivalente a 112 milhões de euros. A Al Jazeera foi uma lufada de ar fresco que fez furor no amestrado mercado audiovisual árabe e impôs-se rapidamente pelo atrevido vigor informativo, pelo nível de liberdade de expressão, pelo profissionalismo e pelo diversificado acesso a fontes no opaco mundo árabe, parecendo, pelo menos no canal em inglês, livre de interferências do poder político-económico. Com uma delicada particularidade: raramente informa sobre assuntos internos do Emirato.

A Al Jazeera foi o primeiro media árabe a entrevistar em direto um porta-voz do governo de Israel. A rede Al Jazeera tem agora 3.000 trabalhadores e cultiva um jornalismo político impossível de sintonizar em qualquer outro país do Golfo. Ainda que, ultimamente a cometer pecados no pluralismo.

Os maiores atritos em volta dos canais TV e web da emissora do Qatar começaram durante as revoltas populares batizadas de “primavera árabes”, em 2011/12: a Al Jazeera colocou-se do lado do levantamento. Ficou logo debaixo de fogo do poder nas diferentes monarquias do Golfo e em outras ditaduras na bacia sul do Mediterrâneo. Enquanto a Al Jazeera aplaudia os valores da “primavera árabe” e criticava regimes que suprimem as liberdades e violam os direitos humanos, a Arábia Saudita e os militares egípcios foram os primeiros a colocar a televisão do Qatar na linha de mira: acusaram-na promover uma ideologia extremista e de ser uma arma para agitação e para dar oxigénio a grupos jihadistas.

Após o golpe de estado que levou o general Al-Sisi ao poder no Egito, o cerco à Al Jazeera nunca mais parou, com acusações de funcionar como porta-voz da Irmandade Muçulmana. Jornalistas do canal passaram a encontrar portas fechadas em vários países da região.. O boicote cresceu e alguns enfrentaram detenções.

A Arábia Saudita fechou os escritórios da Al Jazeera, revogou-lhe a licença para emitir no país e proibiu os hotéis de a oferecerem no menu de canais por satélite. A ditadura do Bahrein e o muito repressor Egito adotaram semelhantes medidas de censura.

O cerco gerou brechas. Alguns jornalistas afastaram-se e assumiram a saída com a acusação à Al Jazeera de ter deixado de fazer jornalismo para se tornar um instrumento do emir do Qatar e um centro de operações para a sublevação.

Nas poltronas de todas as monarquias do Golfo do Golfo vizinhas do Qatar a Al Jazeera passou a ser tomada como subversiva e inimiga. A abater.

É sabido que o Médio Oriente tem uma espantosa capacidade para gerar novos conflitos e novas crises. O último episódio tem a evidente bênção de Trump: quatro países árabes (Arábia Saudita, Emirados árabes Unidos, Bahrein e Egito) decidiram desencadear o imediato isolamento do Qatar. Os sauditas são os promotores deste cerco, que é diplomático, económico e de comunicações, com a acusação ao Qatar de “apoiar grupos terroristas que pretendem instabilizar a região, designadamente Isis, Hezbollah e Irmandade Muçulmana”, para além de “grupos terroristas ligados ao Irão”.

É generalizada a convicção de que, sim, o Qatar utilizou as suas elevadíssimas disponibilidades financeiras para apoiar gente do terrorismo. Mas também é evidente que a Arábia Saudita usa prática idêntica.

A nova crise em curso, com cerco ao Qatar, tem como alvo central o relançamento da ofensiva contra o Irão, inimigo nº1 da atual Casa Branca e de Israel. Acossar e enfraquecer Teerão é a prioridade absoluta para os sauditas, encorajados por Trump. Em causa está a ideologia religiosa xiita iraniana, e o Qatar é atacado por ser aliado do Irão, com quem partilha jazidas de gás no Golfo. O Qatar paga com o isolamento político o preço de não partilhar a ideia de que o Irão é a causa de todos os males na península arábica. Sendo que a Al Jazeera, vista nas monarquias árabes como ferramenta do inimigo, é o alvo imediato para a coligação formada com a varinha mágica dos sauditas e de Trump.

Com este ataque ao “Qatar power”está aberta a mais grave crise entre as petromonarquias do Golfo desde a invasão iraquiana do Kuwait em 1990. Está em jogo a hegemonia numa região estratégica. É um desafio simultâneo em vários tabuleiros. A revista The Economist já lhe chamou “a desordem do novo mundo do presidente Trump”. Um objetivo regional é o de acabar com a ameaça que constitui o poder da Al Jazeera. O emir do Qatar vai conseguir aguentar a carga e resistir a deixar cair esta arma televisiva?

Também a ter em conta:

A sociedade russa começa a deixar de estar adormecida? Centenas de pessoas, sobretudo jovens, foram detidas nesta segunda-feira após participarem em manifestações contra o autoritarismo e a corrupção no regime de Putin. Alexei Navalny, o promotor das manifestações em Moscovo, São Petersburgo e várias outras cidades da Rússia, foi de imediato condenado a 30 dias de prisão, por convocar manifestações não autorizadas. A oposição de ativistas internautas está a sacudir o regime. Ainda que o czar Putin pareça ter a reeleição garantida, no ano que vem, em formato triunfal.

100 fotografias da galeria da Time. Contam histórias que marcam o mundo.

Uma primeira página escolhida hoje: esta do Libération que mostra o deserto que a esquerda francesa tem pela frente. Macron sem oposição - maiorias assim costumam não ser boa coisa.