Nunca antes tinha sentido tristeza ao afirmar que Maradona foi o melhor futebolista de todos os tempos. Hoje, porém, expresso-o não como uma afirmação, mas como um rescaldo. Encurtou-se o tempo para o melhor de todos os tempos. Chegou o dia de recordar o inesquecível.
Há muito que a distinção de “melhor” vinha sendo atribuída a Diego Armando, mas nunca com a consensualidade que agora se verifica. Recataram-se os que preferem Pelé, ajuizaram-se os que arriscam Messi ou Ronaldo. O luto tem destas coisas, destas mesuras. Mas o luto, às vezes, só maquilha - ignoramos os defeitos, e exacerbamos qualidades ao ponto de se descaracterizar o finado, e acabarmos a velar uma entidade que já não é a pessoa que ali jaz. Ontem, caso raro, a etiqueta lutuosa não nos conduziu à mentira, nem à fábula, antes à realidade: Maradona, o melhor futebolista de todos os tempos.
Quando passar o período de nojo, sintam-se à vontade para discordar da minha premissa. Agradeço até que o façam, já que a subjectividade é essencial para apurar o ponto que aqui trouxe. Nada disto é estatístico, nada disto tem que ver com palmarés. É subjectivo, é afectivo, é arrebatador (como as coisas deste domínio têm de ser). El Pibe nasceu artista, e um tratado de estética estará mais próximo de interpretá-lo do que um almanaque desportivo.
Pensar o futebol como Arte, se não chega a ser polémico, é certamente um exercício foleiro. Concordo, e até por isso urge tratar Maradona como excepção. Caracterizá-lo como praticante duma modalidade, ou profissional dum desporto, é uma verdade míope, uma verdade tão impostora quanto qualquer mentira. O que Diego Armando fazia em campo - a afagar a bola, a servir os colegas, ou a acordar as redes - não se cinge a linguajares técnicos ou adjectivos futeboleiros
Ele queria ganhar, é claro que queria ganhar. Queria tanto ganhar que nem sempre se preocupava em fazê-lo com lisura ou justiça. Mas mesmo esse lado utilitário rumo à vitória (o objectivo natural de um desafio de futebol) exacerba o génio. A História tem destes iluminados: gente que almeja a utilidade e, pelo caminho, não consegue evitar a Arte - é uma matéria que tem entusiasmado os filósofos desde a Grécia Antiga. Em campo, Maradona adornava porque era esse o seu pragmatismo; deslumbrava porque desconhecia outra maneira; transcendia o jogo porque lhe era inevitável.
Bem sei que o futebol continua a fazer franzir sobrolhos. É cultura descartável por favorecer incultura, ou um desporto de (e para) canhestros (não forçosamente canhotos). Nem é que eu acredite nisto que acabo de declarar, mas antevejo sempre as portagens sobranceiras - cancelas que nunca quererão deixar passar a excepção artística de Maradona. Para cabeças com monóculo e cartola será sacrilégio imaginar um Mikhail Baryshnikov nascido na lama de Buenos Aires, terceiro de cinco filhos numa família pobre. Negar-se-á a Diego Armando o dom da coreografia imediata, o critério perfeito de cada temps lié, a artisticidade virtuosa de um pé esquerdo.
Este classismo que nos atira, pessoas comuns, mais aos bancos da Bombonera que aos do Bolshoi, não é tópico de somenos. Foi a consciência desse classismo que mais determinou Diego nas suas declarações políticas, mas também vem desse classismo a motivação do seu futebol (que insisto em chamar de outra coisa). Maradona fez do relvado uma galeria de Arte acessível aos desafortunados - àqueles a quem nem sequer se permite a ideia de gostar de Arte, ou de chamar Arte ao que se gosta. Contrabandeou elevação num jogo rasteiro, e permitiu-se ser rasteiro para que não duvidássemos que ali estava só um indigente como nós.
Foi pela noção do classismo, do menosprezo e da opressão, que Diego Armando combateu o preconceito dum país inteiro. Foi com relva e com bola nos pés que El Pibe de Oro, número 10 do Nápoles, deu voz a um Sul de Itália desprezado, e castigou hegemonias e sobrancerias do Norte. A voz de muitos resgatada pelos pés de um só. E pés que faziam apenas coisas de pés, mas com perfeição que entusiasma, Arte que empodera.
Recordo que em 1986 o futebol pouco me dizia. Contudo, nem a indiferença pela modalidade me impermeabilizou para o grande fenómeno de que todos falavam. Durante o Campeonato do Mundo no México, Maradona não me tornou um fã da bola, mas tornou-me fã do espectáculo que só Maradona podia dar. Vi-o vencer em 86 com a naturalidade dum herói que não pode conhecer outro desfecho. Vi-o perder em 1990 com a tragédia que assola só os heróis. Vi-o desabar em 1994 com a queda dos heróis corrompidos.
É notório que escrevo este texto impregnado por memória afectiva. Mas se me limito a considerar apenas o Maradona dentro de campo, é porque comporto outras memórias que não pretendo celebrar. Há demasiada matéria na vida pessoal e pública de Diego Armando que me impede de efectivá-lo como bom exemplo. Nunca lhe chamarei “Deus” – esse epíteto sacrílego que camufla a tremenda humanidade do seu génio. Nunca lhe chamarei “Deus” porque creio residir na idolatria a raiz de todos os seus males. Foi a idolatria que lhe germinou o sentimento de impunidade, lhe acercou o impermissível. Foi a idolatria que facilitou cadência a esta estrela.
O melhor de sempre nem sequer chegou a ser tudo o que podia. Génio ilimitado numa figura que muito se limitou. E será que aquilo que Maradona foi fora do futebol corrompe a memória das maravilhas que fez em campo? A questão de separar o homem da obra, como tão bem sabemos hoje em dia, é uma problemática reservada aos artistas. Reservemos-lhe, portanto, a questão. No fim, no triste rescaldo, amontoam-se contradições: morreu agora o homem, morreu já há muito o artista, é para sempre o melhor de sempre.
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