Hong Kong tornou-se uma questão subitamente, a 31 de Março, quando o mundo foi relembrado de que a situação da cidade-estado no contexto da China não era estática e que os seus habitantes não estavam nada satisfeitos com uma alteração nas suas leis.

Até esse dia fatídico, desde o movimento chamado dos “guarda-chuvas”, em Setembro de 2014, que a situação parecia estável.

Hong Kong, convém lembrar, ganhou o seu estatuto especial, dentro da política a que os chineses chamam de “um país, dois sistemas”, com o acordo entre a China e o Reino Unido de 1997. Outro tratado, com Portugal, em 1999, colocou Macau numa situação análoga.

Estas recuperações de território chinês foram preparadas na década de 1980, quando Deng Xiaoping inventou a expressão para justificar a integração de Hong Kong, Macau e da Formosa (mais conhecida como Taiwan) no território da República Popular da China. As duas primeiras, sendo colónias de países europeus, foram minuciosamente negociadas até se chegar a um acordo que “salvasse a face” de todas as partes e não assustasse os habitantes.

Basicamente, as duas cidades mantinham o sistema legal dos colonizadores – a common law britânica e o Código Civil português, e gozavam de um sistema institucional autónomo, com eleições e divisão de poderes.

Quanto a Taiwan, a situação é muito diferente. A ilha, com cerca de 36.000 km2, foi o último refúgio dos nacionalistas contra os comunistas durante a guerra civil de 1946-49. Tornou-se num país independente nesse ano, e uma democracia do tipo ocidental, semi-presidencial, em 1990. Durante a década de 1960 promoveu um forte desenvolvimento industrial e tornou-se a 21ª economia mundial, com destaque para o fabrico de componentes electrónicos. Em 1971, na sequência do reconhecimento da República Popular como a única China – um acordo fechado entre Richard Nixon e Mao Tse-Tung um ano mais tarde – Taiwan foi expulsa das Nações Unidas e passou a ter um estatuto nebuloso. Reconhecida por apenas 18 países sem peso internacional, continua um grande país exportador para nações que não lhe reconhecem a existência, e tem umas forças armadas musculadas, com equipamento comprado na Europa e Estados Unidos. Até ao final do século passado, Taiwan era uma economia muito mais desenvolvida do que a China.

É evidente que Taiwan não quer ser integrada na China; mas os chineses, que pensam a longo prazo, estão convencidos que um dia os taiwaneses se integrarão voluntariamente. Esta presunção tem uma enorme importância no que está a acontecer neste momento em Hong Kong, como veremos.

Ao integrar as duas cidades, Pequim aproveitou as suas potencialidades para lhes dar diferentes destinos. Hong Kong, que sempre fora o centro financeiro da Ásia, passou a servir para as transacções internacionais da China, que Pequim não tem flexibilidade política para efectuar. O inglês continuou a ser a língua principal. Macau, uma vila pacata com dois casinos (o jogo é legal desde 1850), tornou-se no maior centro de jogo do mundo, com mais casinos e maior volume de “negócios” que Las Vegas. O nosso idioma, que nunca chegou a toda a população, continua a ser uma das duas línguas oficiais, mas é cada vez menos usado.

Assim, enquanto a ex-colónia inglesa tem muitos expatriados estrangeiros altamente qualificados e naturais com formação financeira, a ex-colónia portuguesa mantém uma população autóctone com habilitações mais baixas, que serve o turismo e os casinos.

Xi Jinping tem vários problemas importantes em mãos. O mais pujante é sem dúvida a guerra comercial com os Estados Unidos, mas há outros no fundo: o controle político da população, a absorção forçada da minoria muçulmana, a consolidação do Tibete (que já tem uma população maioritariamente chinesa), a implementação da iniciativa da “Nova Rota da Seda” e a expansão militar no mar da China, para nomear apenas alguns. Não precisava desta inesperada agitação em Hong Kong.

A “ligeira” mudança jurídica em Hong Kong era mais um pequeno passo para uma maior integração na China. Já em 2014, foi outra “leve” modificação legislativa que levou a protestos, mas, como dissemos, os chineses pensam a longo prazo. Passo a passo, anos que seja preciso, o destino de Hong Kong e de Macau é serem apenas mais duas cidades da realidade chinesa.

Enquanto Hong Kong luta para se manter diferente, o que acontece em Macau? Basicamente, nada. Tal como Carrie Lam, a chefe do executivo de Hong Kong, foi escolhida por Pequim, também o macaense Fernando Chui, oficialmente eleito por uma assembleia de políticos e homens de negócios, é um mandatário da República Popular. Foi escolhido pela segunda vez em 2014, para um mandato de cinco anos. Os macaenses, de acordo com afirmações de várias testemunhas, não só não votam no seu executivo como não sentem grandes incómodos pelo facto de serem tutelados à distância. Os negócios são o mais importante e uma administração estável é essencial para os negócios. Além disso, desde 2008 cada um dos 660 mil habitantes recebe um bónus anual de 1.123 euros para residentes permanentes e 750 euros para não permanentes (valores de 2018), o que certamente contribui para uma certa complacência em relação à autoridade.

Entretanto os manifestantes de Hong Kong – 1,7 milhões no protesto pacífico do último domingo – alargaram as suas reivindicações para lá da lei de extradição de arguidos para a República Popular sem acordo prévio. Agora querem a libertação dos protestantes detidos, um inquérito independente à violência policial e, evidentemente, a demissão de Carrie Lam e eleições por sufrágio universal para chefe do Executivo e para o Conselho Legislativo, o parlamento de Hong Kong. O receio de serem completamente integrados na China, que sempre esteve latente, atingiu o clímax.

Pequim tem vindo a aumentar as ameaças ao movimento, ao mesmo tempo que estaciona tropas junto à fronteira. A esperança é que a situação acalme, tanto com a prisão de supostos líderes como pelo cansaço da “maioria silenciosa” da população, que se começa a sentir prejudicada com a instabilidade nas ruas. Se Xi Jinping ainda não agiu, é porque lhe convém dar sinal ao mundo, e especialmente a Taiwan, de que a integração pode ser feita de forma pacífica e os sobressaltos ultrapassados sem intervenção militar. Também não pode eliminar o centro financeiro internacional da China; caso interviesse, os estrangeiros com certeza sairiam da cidade e a Bolsa de Hong Kong perderia importância.

Quanto à interferência exterior no movimento de protesto, muito se especula, mas pouco se sabe. Alguns macaístas vieram para Hong Kong para se juntar ao movimento, uma vez que em Macau não ocorreu nenhuma manifestação de solidariedade. São atitudes pessoais, a mando de ninguém. Os serviços de espionagem ocidentais talvez estejam envolvidos; a prisão de um funcionário da Embaixada Britânica, mantida em segredo por duas semanas, tanto pode indicar essa interferência como apenas o receio de que ocorra. Mas o Reino Unido não tem possibilidades práticas de fazer nada, para além de brandas admoestações de Whitehall. Quanto aos americanos, Trump começou por fazer afirmações circunstanciais e, embora tenha mudado ligeiramente o tom, não está realmente interessado no que se passa em Hong Kong; é improvável que a situação na cidade lhe traga alguma vantagem numa guerra comercial que tem muito mais importância.

É evidente que Pequim está a medir minuciosamente os passos a dar. Demitir Carrie Lam está fora de questão; seria ceder aos manifestantes e dar um sinal de fraqueza. O mais provável é ela não ser re-“eleita”, pois não mostrou a eficiência requerida nesta crise, mas por ora tem de ficar. Também está fora de questão ceder as outras exigências, o que seria “perder a face”. Mas Xi Jinping, que recentemente se tornou Presidente eterno e é reconhecidamente um autoritário, também não deixará que a situação se prolongue indefinidamente, vencendo apenas pelo cansaço. Precisa de ser paciente, mas também tem de mostrar determinação. Quando e como o fará, é uma questão em aberto.