É facto que naquele ano de 1995 em que a internet se expandia e em que o SAPO foi criado, o mundo ainda estava confrontado com a traumática experiência de barbárie com massacres e crimes de guerra na então Jugoslávia. Também havia o choque causado pela impotência geral perante o genocídio dos tutsis no Ruanda. Angola ainda sofria com a guerra civil. A Palestina continuava a pôr o Médio Oriente em impasse. A vida em Espanha continuava atacada pela ETA e a Irlanda do Norte também ainda estava à mercê do terrorismo.

Mas a democracia nunca tinha estado tão ampla pelo mundo. A liderança de Nelson Mandela era um exemplo que inspirava esperança e confiança. Na América Latina, nesses anos 90 do século XX, consolidava-se, apesar de com turbulências, o avanço (iniciado na década anterior) da democracia e o recuo das ditaduras militares. No Leste da Europa, países que antes tinham a liberdade e a economia amarfanhadas e esclerosadas, evoluíam com regimes plurais democráticos, embora com vários vestígios de máfias corruptas.

Nesse ano de 1995, muito do foco da atenção global incidia sobre a Rússia. As derivas desorientadas de Ieltsin no topo do Kremlin faziam reforçar a nostalgia de Gorbachev, o herói que meia dúzia de anos antes estilhaçara e liquidara o bloco soviético e abrira portas à democracia e ao pluralismo.

A seguir começou a era de Putin. Era o tempo da blogosfera e foi em blogues que então apareceu uma fotomontagem que ficcionava a imagem de Putin (n.1952) aos 80 anos, com uniforme de comandante supremo militar, com o peito coberto de medalhas, numa transfiguração das imagens de Brejnev, símbolo do fechamento soviético entre 1964 e 1982.

Agora, Putin, dono há 20 anos de poder soberano e constituinte, já tratou as reformas constitucionais para se perpetuar no poder por três largas décadas, até 2036. Formado na escola dos serviços secretos, concentrou o poder em volta dele, servido por oligarcas e antigas elites do KGB, reconvertido em FSB. Putin fez abortar o embrião de Rússia moderna e aberta ao mundo deixado por Gorbachev.

Como novo czar, Putin reinstalou métodos soviéticos, com absoluto predomínio do Estado sobre a pessoa e é assim que está a urdir a restauração da Rússia imperial, com o maior país do mundo a impor-se também como superpotência militar. Putin insiste que os russos, os bielorrussos e os ucranianos são um só povo, e já se viu na Crimeia como ele quer dissolver fronteiras dentro desse bloco.

O envenenamento, em agosto, do principal opositor do Kremlin não tem novidade no método. Navalni foi atacado com um veneno de invenção soviética, o predileto dos serviços secretos de Moscovo para operações porcas de eliminação de adversários. Os peritos que tratam Navalni no hospital Charité, em Berlim, sentenciaram que “sem qualquer dúvida”, Navalnyj foi envenenado com Novichok.

A literatura científica esclarece que o Novichok é um agente químico que atua sobre o sistema nervoso, com efeito mortífero. Serviços de informação ocidentais garantem que esse Novichok foi desenvolvido nos anos 80 no laboratório soviético de armas químicas de Shikhany. Não é suposto que possa estar na mão de delinquentes fora do controlo do Estado russo.

Também foi o Novichok o agente usado para tentar eliminar o agente duplo Serghej Skripal e a filha Yulia, em março de 2018, em Salisbury, no Reino Unido. Então, um dos suspeitos na condução do atentado químico contra o espião que fazia jogo duplo foi Alexander Mishkin, um médico dos serviços secretos militares do Kremlin, antigo GRU agora renomeado como Direção Central do Estado Maior. O outro implicado foi um coronel também da espionagem militar russa. Ambos foram referenciados como tendo encontrado os Skripal em Salisbury, embora com recurso a outras identidades.

Também foi com um elemento químico, neste caso o polónio 210, que agentes de Moscovo envenenaram, num hotel de Londres, em 2006, o ex-espião russo Alexander Litvinenko.

Agora, Navalni foi atacado com Novichok. Por ordem de Putin? Foi uma operação de alguém dos serviços secretos sem o conhecimento de Putin? Foi manobra de um adversário para comprometer e incriminar Putin? Todas as hipóteses estão em aberto.

Logo que foi confirmado que Navalni tinha sido envenenado, a chanceler Angela Merkel, que neste semestre também lidera formalmente a presidência da União Europeia, levantou imediatamente a voz com rara dureza a exigir explicações da parte de Putin. Merkel foi cristalina ao afirmar que o adversário mais popular do líder russo “foi vítima, na Rússia, de um crime com a intenção de o silenciar”. Merkel insistiu, como porta-voz das democracias ocidentais: “Esperamos uma resposta do presidente russo. O envenenamento suscita perguntas a que só a Rússia pode dar resposta”.

O respeito pelos princípios leva a que estejam em cima da mesa novas sanções à Rússia. É uma opção controversa. A prática mostra que não é com sanções que um regime autoritário se converte à democracia.

Aliás, a equação geopolítica atual é delicada, com vários fatores: há a crise da Bielorrússia, com Lukachenko protegido por Putin e há a alta tensão lançada por Erdogan no Mediterrâneo Oriental.

O papel de Merkel é complexo. A chanceler alemã está atada de pés e mãos a Putin para que continue a avançar e fique concluído no próximo ano o mega-projeto Nord Stream 2, 1222 quilómetros de gasoduto subaquático no Báltico, que é considerado determinante para confortar o abastecimento energético da Alemanha e de países vizinhos.

Também foi Merkel quem ofereceu ao “sultão” de Ankara o acordo que coloca a Turquia como país de acolhimento de migrantes, arma poderosa que Erdogan passou a ter para o confronto com a Europa. Acresce uma outra tensão, a decorrente da morte de Ebru Timtik, a advogada turca, ativista de direitos humanos, que estava em greve da fome em protesto contra a condenação que lhe foi aplicada de alegado terrorismo.

Vai ser precisa muita sabedoria na gestão política e diplomática destas crises, com respeito pelos valores fundamentais. Os riscos estão enormes.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, fez crescer a ilusão de que a fratura Leste/Oeste e o longo tempo da Guerra Fria tinha acabado. Afinal, caiu a Cortina de Ferro mas estão do lado de lá chefes autoritários que com despótico punho de ferro abusam do poder, violam direitos humanos, liberdade e normas de Estado democrático assentes na supremacia da lei e dos tratados.

O trio de Moscovo, Minsk e Ankara está a envenenar a convivência. Mas não são só eles.

A TER EM CONTA:

Segunda vaga da covid? 25 mil contágios em três dias em França. Um intensivista de Marselha alerta: “O que mete medo é o aumento exponencial de casos graves”. Espanha, que sofreu 29.418 óbitos (19.900 em lares) nos últimos seis meses, confirma 46.867 contágios nos últimos sete dias. Anda no ar a especulação de que as vacinas poderão estar próximas – importa analisar essas informações com grande prudência.

O terreno minado que ameaça as eleições presidenciais em novembro nos EUA.

A “Mostra”, o festival de cinema de Veneza continua a mostrar os filmes que temos para ver. Nesta segunda-feira a Mostra exibe Narciso em Férias, documentário sobre o tempo que Caetano Veloso passou preso no Brasil, acusado de terrorismo cultural, no tempo da ditadura militar. Em agenda nalgum ecrã perto de nós já está A Voz Humana, Cocteau por Almodóvar.

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