Há formas de governo que desafiam todas as definições. A Coreia do Norte é uma monarquia comunista. O Reino Unido é uma democracia aristocrática.

O que distingue uma “democracia aristocrática” duma autocracia pura e simples? Não é a rainha, que não manda nada, ao contrário do rei da Coreia do Norte. É antes um sistema inteligentemente montado para que um país eminentemente classista e racista se possa orgulhar de ser “a mais antiga democracia ocidental”, anterior às democracias constitucionais saídas da Revolução Francesa.

Uma das características mais notórias duma autocracia é a presença constante e inevitável do autocrata – o homem que manipula o sistema político para se manter eternamente no poder.

Mas uma autocracia pode não ser exercida por um só homem, mas também por um grupo. No caso de Mianmar, são os militares – como acontece em tantos países africanos, por exemplo. No caso britânico, o poder está nas mãos duma classe dominante, tão marcante que até se distingue pela maneira de falar. São os meninos que estudaram nas escolas privadas da elite (muito britanicamente chamadas de “públicas”, ao contrário das escolas da ralé, que se chamam “privadas”...), meninos esses filhos de outros meninos que estudaram nessas mesmas escolas e que dão pelo nome de “chums” – “amigalhaços”, numa tradução livre. É a chamada “chumocracy”; segundo o dicionário, a elite dirigente formada por pessoas com a mesma origem social que frequentaram as mesmas escolas e universidades e se relacionam socialmente.

Para sobreviver e dar uma aparência democrática, esta elite está constantemente a acrescentar elementos das classes menos afortunadas que se destacam pela sua inteligência e empreendedorismo. Essa ascensão, sendo difícil, não é de todo impossível e dá às massas a aparência de igualdade social e a esperança de que qualquer um, até mesmo o questionável Mick Jagger ou o fura-vidas Richard Branson, se podem tornar lordes.

Por outro lado, o poder oficial está nas mãos dum Parlamento cujos deputados podem vir de qualquer classe social. Por acaso, apenas por acaso, a maioria deles fazem parte da chumocracy, ou estão já em vias de entrar. Só os círculos eleitorais das berças, que não têm nenhum aristocrata, são representados por “plebeus”, pessoas em ascensão social para se tornar chums – se não conseguirem, desaparecem ao fim de uma ou duas legislaturas.

Num outro teatro democrático, os britânicos têm desde há muito uma grande liberdade de opinar, protestar e até insultar os “chums”; esta é outra diferença evidente entre autocracia e democracia, e a elite tem tido o cuidado de manter essas liberdades para as massas.

De fora do grupo dos plebeus ficam os imigrantes, que muito dificilmente conseguem chegar mesmo ao escalão inferior – são uma casta à parte, que trabalha e paga impostos, mas não consegue naturalizar-se. Um caso chocante, que estourou em 2018, foi o da “geração Windrush”, negros das Antilhas que vieram para Inglaterra em 1948 para suprir a mão de obra desqualificada perdida na II Grande Guerra, e aos quais nunca foi reconhecida cidadania. O governo começou a deportar os seus filhos e netos porque não eram ingleses, o que causou grande indignação, mas o caso ainda não foi resolvido.

Depois do Brexit, a fobia anti-imigrante chegou a todas as classes e muitos dos que estavam integrados, inclusive centenas de enfermeiros portugueses, começaram a ser insultados nas ruas e a sentir-se excluídos. Tal como a tão cantada democracia grega, que era democrática só para os cidadãos atenienses e excluía as mulheres e os escravos.

Mas não foi para analisar o passado e presente da democracia britânica que contamos estas histórias. O que se passa é que o Governo de Boris Jonhson tem em carteira uma série de leis que vão efectivamente cristalizar o sistema do Reino Unido num Estado muito semelhante a outras autocracias ou “democracias iliberais”. Como o Partido Conservador tem maioria no Parlamento, não há nenhuma razão para esperar que estas leis sejam rejeitadas.

Uma é a Lei Policial (“Policing Bill”) que criminaliza os protestos públicos, organizados ou expontâneos, pequenos ou grandes, e que permite à polícia deter e revistar qualquer pessoa ou pessoas que cometam a imprudência de bradar em público. Pena máxima: 51 semanas de prisão.

Outra, é uma lei que exige Bilhete de Identidade para votar. Como é sabido, até agora no Reino Unido não existia nenhum tipo de Cartão de Cidadão ou similar; só os estrangeiros é que precisavam de um documento de identificação. Com esta legislação, o documento não será obrigatório mas é imprescindível, sob pena de ter de ir à esquadra dar explicações e não poder votar.

Ainda outra, impensável, é a Lei da Nacionalidade e Fronteiras, pela qual o Governo pode retirar a nacionalidade inglesa a uma pessoa e, evidentemente, expulsar das ilhas um não-inglês, sem recurso judicial.

Uma adenda ao Decreto-Lei dos Segredos Oficiais limitará as notícias da comunicação social e os denunciantes de más práticas no aparelho de Estado.

Além disso, está em discussão uma lei com 200 anos que criminaliza a “vadiagem”, ou seja, as pessoas que não têm abrigo. A propósito de repeli-la, o Governo prepara-se para a reforçar. Uma provisão sobre os locais onde os “vagabundos” podem instalar-se atinge directamente os ciganos e outros que parem, mesmo que provisoriamente, em terrenos e casas abandonadas sem autorização.

Tudo isto, saliente-se, sem a possibilidade de recurso judicial. São actos do Governo sem apelo, ponto final.

Estas novas leis juntam-se às já existentes a partir do Brexit. Entre elas, e sem relação particular com a saída da União Europeia, há a que impede escrutínio das rendas avulsas recebidas pelos parlamentares e outra que torna opacos os donativos feitos aos políticos para apoiar as suas campanhas – ou gastarem como lhes aprouver, certamente a troco de “favores”.

E também já estão em vigor leis que tornam a vida dos imigrantes impossível, e impossíveis os pedidos de asilo dos refugiados.

Há quem diga que este leque de legislação autoritária se destina a desviar as atenções para o escândalo provocado pela descoberta de que o Governo organizou várias festas no auge das restrições sanitárias devidas à pandemia. Sabe-se que houve uma festa em casa do primeiro-ministro na véspera do funeral do Duque de Edimburgo e outra numa altura em que os ingleses não podiam sair de casa e estavam limitados a encontrar-se com uma pessoa na rua. Perante as notícias, Johnson pediu desculpa no Parlamento, mas acrescentou que esperava o resultado duma comissão de inquérito que confirmasse que se tratava de reuniões de trabalho...

Contudo, sendo uma manobra de diversão ou não, o facto é que as leis estão aí para aprovação e o resultado é inexorável.

A talhe de foice, não deixa de ser estranho que esta fobia anti-migratória parta de um Governo que é o primeiro do Reino Unido a incluir quatro filhos de imigrantes e um imigrante. Rishi Sunak, o Ministro das Finanças (“Chancellor”), é filho de imigrantes indianos do Quénia; Priti Patel, Ministra da Administração Interna e anti-imigrante ferrenha, é filha de imigrantes indianos do Uganda; os pais de Sajid Javid, Ministro da Saúde, são imigrantes paquistaneses; e Kwasi Kwarteng, negro e Ministro do Comércio, descende de imigrantes do Gana; Nadhim Zahawi, Ministro da Educação, é curdo e nasceu em Bagdade.

Boris Jonhson, que cada vez mais observadores consideram que está numa situação insustentável, consegue simultaneamente irritar os ingleses mais radicais de direita, ao incluir tantos ministros “estrangeiros” no seu Gabinete; e os liberais e de esquerda, ao preparar leis draconianas contra as liberdades mais básicas.

Assim vai o Reino Unido, na altura em que o Príncipe Andrew está envolvido num escândalo sexual à escala internacional, e a Rainha Isabel se prepara para comemorar o reinado mais longo da História.

O mundo – e, concretamente, o Reino Unido – é cheio de contrastes. Se isto é uma subida ao céu ou uma descida ao inferno, que venha o diabo e decida...