Quando pensamos em dúvida, interrogação ou pergunta as nossas reações são normalmente duas. Existem assim, se quisermos, dois tipos de grandes dúvidas para qualquer pessoa.
A primeira que nos vem à cabeça é a dúvida paralisante, a que incapacita e que nos incomoda. A dúvida que nos leva a perguntar "serei capaz?", "sou suficiente?", "sou pior do que o outro?". Esta dúvida é muito particular e dolorosa porque nos leva a questionar a nossa própria personalidade, as escolhas que fizemos e a olhar para fora (para outros duvidosos, já se sabe) com inveja e ciúme. É a dúvida que nos acompanha diariamente e é a que trago enquanto escrevo este texto (será suficiente para o jornal?) ou a dúvida que o leitor sente ao lê-lo (“mas quem é este tipo para escrever num jornal?”).
É a dúvida pessoal ou de confiança.
Há depois uma segunda dúvida, bonita, alegre e construtiva, que é a dúvida científica. Essa surge mais raramente, em momentos de grande reflexão ou de inspiração. É uma dúvida combativa que nos leva a perguntar coisas como "será que o mundo se explica mesmo assim e só assim?" ou "não haverá mesmo nada que possamos fazer pela paciente?". Esta dúvida tem um carácter coletivo e eleva-nos por isso o nosso espírito. É uma dúvida cuja beleza advém do desconhecimento em massa que nos une e do sentimento de orgulho que nos toma ao sentirmo-nos timoneiros do barco do Conhecimento. É a dúvida das grandes descobertas e dos momentos eureka, que nos fazem escrever livros de filosofia e de física quântica. É uma dúvida de descoberta coletiva de um futuro partilhado.
É a dúvida universal ou científica.
Há, no entanto, uma terceira dúvida, um ser viscoso sem forma que teima em colar-se aos nossos pensamentos nos momentos mais difíceis. É a dúvida que nos toma de assalto quando estamos mais frágeis, quando temos de ultrapassar um obstáculo global que vem na nossa direção enquanto humanidade. É a dúvida provocada pelas crises financeiras, pela fome, ou pelas pandemias. Este tipo de dúvida instala-se nos nossos corpos da forma mais sorrateira possível perguntando apenas: "tens a certeza de que isso é verdade?"
Só isso. "Tens a certeza de que isso é verdade?"
Numa única pergunta a destruição da totalidade do nosso ser.
Esta é a dúvida que destruirá o mundo. Tem as características atraentes da dúvida pessoal e da científica e isso torna-a tão perigosa. Por um lado, tem a individualidade característica da primeira, aquela que destrói a nossa confiança quando nos questionamos sobre se somos capazes ou se somos suficientes. Instala quase de imediato os irresponsáveis mais clássicos da nossa mente - o ego e a vergonha - e atira-nos de rompante para um forte "queres ver que fui enganado?!". Por outro lado, tem toda a dimensão coletiva da segunda, do desconhecimento em massa que nos conforta, da beleza das grandes perguntas cuja resposta nos leva a ponderar "queres ver que o mundo está todo enganado e só eu é que descobri?".
Os efeitos são uma hecatombe de reações químicas. A dúvida transforma-se em dever cívico de partilha nas redes sociais para que outros saibam da boa nova; respeito, admiração e likes endorfinam-nos o espírito e reforçam a boa decisão; a rejeição por parte dos nossos inimigos, através de comentários contra os factos que apresentamos, confirma a importância de falar sem papas na língua.
3,2,1, a dúvida instalou-se.
A consequência é letal. A dúvida corroeu a fundamental relação que nos une enquanto humanidade: a de que existem factos e opinião e de que os dois são amigos próximos (às vezes dormem juntos até), mas têm vidas independentes um do outro. Quando a dúvida que destruirá o mundo se instala quebra-se essa linha da separação e fica só o emaranhado da descrença e o desequilíbrio de pensarmos "bolas, já não posso acreditar em nada".
Deste momento ao final dos tempos vai um fósforo. Nós sabemos isto porque já lemos sobre outros finais dos tempos, uma e outra vez, quando totalitarismos se levantaram e os factos científicos tornaram opinião racista ou classista ou antissemita. A verdade morre primeiro do que o Homem.
Receio que hoje, no contexto da pandemia e da crise que lhe sucederá, a dúvida que destruirá o mundo volte a aparecer e tente dobrar a verdade a seu bel-prazer. Gostava que fossemos mais fortes desta vez e que substituíssemos uma dúvida má por uma boa. Que a curiosidade infetasse a desinformação e a tomasse de assalto com a verdade.
A dúvida que destruirá o mundo chega devagarinho e sem se dar por ela. Estejamos alerta.
Comentários