Chama-se Éric Zemmour e deve a sua fama à televisão, tal como Trump – aliás, já lhe chamam o “Trump francês”. Mas a comparação não faz sentido; física e ideologicamente, nada os assemelha. Zemmour é um homem franzino, sorridente, sempre à vontade, que debita as suas barbaridades como se estivesse a contar uma piada no café. Desde 2019 que apresenta um programa, “Face à l’Info” no canal CNews, com audiências sempre crescentes. Nesse palco privilegiado, construiu uma imagem de nacionalista radical, contra os imigrantes magrebinos, contra os judeus (logo ele, que é judeu de origem magrebina...) e contra o enfraquecimento dos valores masculinos dos franceses e masculinização das mulheres. Muitas vezes exagerava; depois do ataque terrorista ao Bataclan em Paris, disse: “Em vez de bombardear o Iraque, a França devia bombardear Molenbeek (o bairro muçulmano de Bruxelas) de onde vieram os 13 comandos.”

Contudo, se enquanto apresentador chocava, também divertia a audiência, incrédula com a petulância, e prestava-se ao diálogo com os convidados que era, acima de tudo, um animado momento televisivo.

Tudo poderia arrumar-se na pluralidade de opiniões que se espera da televisão, não fosse Zemmour entusiasmar-se com o seu sucesso e resolver candidatar-se às próximas eleições presidenciais francesas. De repente, o bobo reacionário tornou-se um político significante no espectro da direita. Passou de apresentador a convidado num ápice, instigando os apresentadores de outros programas, geralmente de esquerda, e cultivando nestes o desejo de o deitarem abaixo. O resultado foi, sem surpresa, uma audiência ainda maior; no programa “Elysée 2022” do canal France 2, por exemplo, bateu recordes de audiência.

Sempre sorridente, como se estivesse a falar de banalidades recreativas, Zemmour defendeu a teoria da “grande substituição”: existe uma conspiração para tornar os franceses “legítimos” uma minoria dentro do país. Enquanto apresentador, foi multado e acusado judicialmente seis vezes desde 2010. Por racismo e incitamento à discriminação, mas sempre absolvido. Agora, como candidato à presidência do mais alto cargo da nação gaulesa, pode dizer o que quiser ao abrigo da nobre liberté que ele próprio tanto quer restringir.

A candidatura foi anunciada em Dezembro do ano passado, com o lançamento de um novo partido, “Reconquista”. A substância do seu pensamento está publicada em quinze livros com títulos sugestivos, o primeiro datado de 1995: “O primeiro sexo” (2006) uma clara apropriação do título do livro de Simone de Beauvoir “Le deuxième sexe”, considerado o pilar intelectual da luta das mulheres por uma sociedade mais equalitária, sobre a efeminização do macho gaulês; “O suicídio francês” (2014) e “A França ainda não disse a última palavra” (2021), talvez um piscar de olho a uma rábula dos romanos, ao interpelarem Astérix e Obélix, na sua “Volta à Gália”, quando compravam o doce típico de Cambrai “bêtise”, que quer igualmente dizer “asneira” em francês: “Gaulois, ce sont vos dernières bêtises”.

Na verdade, Zemmour tornou-se o porta-voz de correntes reacionárias, anti-semitas e anti-muçulmanas, que sempre existiram em França. O anti-semitismo, particularmente, vem pelo menos do século XIX e atingiu o ápice com o regime de Vichy, na II Guerra Mundial.

A comunicação social francesa está em brasa com este recém-chegado à arena política, mas o significado lúgubre da sua presença já atravessou o Atlântico. O The New York Times dedica-lhe um longo artigo. Para o jornal norte-americano, que tem assistido com pesar ao descarrilamento da democracia no seu próprio país, a França é um farol da trilogia que originou em 1789, a sua divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, inspirando assim democracias mais jovens. Não deixa de mostrar apreensão pelo facto de Zemmour estar a subir meteoricamente nas sondagens, ultrapassando Le Pen pela direita.

Dizem os autores da peça, intitulada “O velho preconceito francês encontra um novo rosto”:

“Do mesmo modo que os anti-semitas do passado acusavam os maléficos e omnipotentes judeus de todo o tipo de crimes, incluindo as cheias do Sena, para o Sr. Zemmour não há crime de que os muçulmanos não sejam culpados. O problema da gentrificação, que obriga as famílias trabalhadoras a viver longe dos locais de trabalho? É o resultado dos imigrantes ocuparem as cidades e os subúrbios mais próximos. A disseminação das drogas? Todos os imigrantes menores desacompanhados são dealers. A falta de recursos nos hospitais? São os imigrantes a explorarem um sistema para o qual não contribuem.”

O artigo também levanta um raciocínio interessante: pelo facto de ser judeu, Zemmour de certo modo retira o estigma de anti-semitismo que a direita francesa tem desde as deportações de Vichy.

O “The New Yorker”, num artigo igualmente longo, considera a candidatura ”bizarre” (sic.) e compara a figura francesa a Trump. Há semelhanças na desfaçatez e pouca-vergonha, mas são dois maléficos diferentes; como seria de esperar, Zemmour é mais intelectual e os seus argumentos, embora fátuos e desbragados, encontram ressonância num público que pode ser reaccionário, mas é certamente mais informado.

As últimas sondagens dão 12% a Zemmour, mas com tendência crescente. Marine Le Pen está estagnada nos 17%. Uma outra recém-chegada à direita, Valérie Pécresse, conta 19%, mas é muito menos conhecida que Zemmour e provavelmente não se aguentará tão próxima dos 24% de Macron. (Pécresse, ex-ministra de Chirac e Sarkozy, dirige o partido “Soyons Libres” e também é anti-imigração, contra o casamento gay e a liberalização da canábis. Ao contrário de Zemmour, não leva a coisa na reinação.)

Macron, neste contexto de “fartar, vilanagem” até fica como um candidato centrista, enquanto a esquerda, toda junta, não vai além dos 19%.

Portanto, e presumindo que não haverá uma alteração de tendências até 24 de Abril, a segunda volta ocorrerá entre um candidato da extrema-direita (Le Pen, Zemmour ou Pécresse) e Macron, enquanto a esquerda é cada vez mais irrelevante.

Imigrantes magrebinos, e até judeus, o melhor é começarem a pensar em mudar de país...