São disso exemplo a Alemanha, com os jogos olímpicos de 1936. Esta queria mostrar uma imagem forte e unida ao mesmo tempo que mascarava políticas racistas e antissemitas. O mundial de futebol realizado na Argentina em 1978 foi acolhido pelo ditador Videla. Em 2018 foi a Rússia de Putin a anfitriã do maior evento de futebol do mundo, comunicando-se como país maravilhoso e cheio de diversidade. A Amnistia Internacional apresentou mais uma equipa, simbólica e ausente daquele mundial e dos estádios e que era composta por algumas das muitas pessoas prisioneiras de consciência naquele país.

Hoje o mundo certamente perceberá melhor a farsa que a Rússia tentou promover no mundial de 2018.

Agora, a caravana do mundial organizado pela FIFA segue para o Qatar. País que era bem conhecido pela repressão dos direitos das mulheres, das pessoas LGBTQI+ e da falta de direitos para com os trabalhadores no Qatar, praticamente todos estrangeiros.

A forma de votação e escolha do país anfitrião de cada mundial de futebol de seleções é conhecida e os escândalos de corrupção à volta do processo também.

A escolha do Qatar foi criticada amplamente e desde o primeiro anúncio. As consequências estão à vista: centenas de milhares de trabalhadores migrantes nas construções dos estádios e outras infraestruturas para o mundial do futebol trabalharam praticamente como escravos, sendo-lhes cobradas taxas de recrutamento ilegais, continuam ainda hoje com salários não pagos, sofreram ferimentos e, nos piores casos, a morte. Milhares, perderam a vida em consequência das condições de trabalho.

O atual presidente da FIFA, Giani Infantino - que passou de secretário-geral da UEFA a presidente da FIFA por afastamento de Sepp Blatter e do seu provável sucessor Michel Platini, suspendidos por suspeitas de corrupção e pagamentos milionários - vinha com ares de renovação, mudança e transparência, mas tudo continua a parecer na mesma.

Até agora recusou-se a falar na questão dos direitos humanos no Qatar e a promover um mecanismo de compensação aos trabalhadores. Além disso, instou às seleções de futebol que se concentrassem no futebol e colocassem de lado as preocupações com direitos humanos. A FIFA chegou mesmo a proibir que algumas seleções utilizassem equipamentos de treino, de jogo, até as braçadeiras dos capitães e treinadores, com referências a direitos humanos no Qatar.

Dizem os senhores da FIFA que isso é política e que a FIFA não se mete em política.

Os Direitos Humanos não são questão de opinião política. São leis firmadas em declarações, tratados e protocolos internacionais. São protegidos por mecanismos de tutela e de governança internacional.

É uma pena o silêncio da FIFA, mas não só. É uma pena o silêncio de tantas federações e de tantos dos protagonistas do futebol, verdadeiros influenciadores que com as suas palavras podem mudar o mundo e fazer as pessoas que são apaixonados pelo jogo ficarem em sintonia com os direitos humanos.

O futebol tem o poder de mudar o mundo e a simples exigência aos países anfitriões dos campeonatos do mundo, a que cumpram os direitos humanos como condição obrigatória para acolher os eventos seria, por si só, um agente de transformação enorme.

Por agora, a Amnistia Internacional e outras ONG apelam à FIFA e ao Qatar para que se comprometam publicamente a estabelecer um programa de reparação de todos os abusos relacionados com a preparação do Campeonato do Mundo e para o financiamento de programas destinados a evitar novos abusos. Posteriormente, a FIFA e o Qatar devem trabalhar em conjunto com outros; incluindo trabalhadores, sociedade civil, sindicatos e a Organização Internacional do Trabalho para definir os pormenores e a execução do programa.

O montante que pedimos ao Qatar e à FIFA que envolvam na prossecução destes programas é de 433 milhões de dólares, uma parte ínfima dos 5,9 mil milhões de dólares que se estima em receitas da FIFA com o evento.

Com tão poucos esforços financeiros para estes gigantes se poderiam compensar tantas centenas de milhares de trabalhadores e das suas famílias. Trabalhadores tão importantes para o torneio quanto os atletas que andarão a correr nos estádios a fazer acontecer um jogo de equipa que evoca a arte a força de pessoas que se juntam por uma causa.

Que entre os goleadores deste mundial, esteja também os da Justiça e Direitos Humanos.

* Pedro Neto é diretor-executivo da Amnistia Internacional em Portugal