Não há pacificação à vista na França em crise política, com Macron a manobrar para dar a volta à tripla derrota eleitoral que sofreu e com os três principais blocos políticos (esquerdas, centro e direita ultra) incapazes para o diálogo necessário num parlamento onde só há maiorias se for para recusar.
O folhetim político francês está assim à beira de entrar em episódios com alta turbulência anunciada: manifestações de rua, a primeira a 7 de setembro, das esquerdas que acusam o presidente de Macron de estar a tentar um golpe de Estado ao recusar um governo do Nouveau Front Populaire (NFP), a frente de esquerdas que conseguiu impor-se como o bloco mais votado nas eleições legislativas - embora com maioria apenas relativa, a quase 100 deputados da absoluta no parlamento com 577 lugares.
Entre 9 de junho e 7 de julho os franceses foram por três vezes a eleições (primeiro as europeias, depois as duas voltas das eleições legislativas) e um facto comum às três votações é a rejeição das políticas do presidente Macron e do partido (Ensemble) que ele patrocina.
Macron perdeu mas mostra que não aceita a derrota e quer continuar, com o partido dele, no centro da governação da França.
Nos sete anos e cinco meses que leva como presidente, Macron já teve quatro chefes de governo: Édouard Philippe, Jean Castex, Elizabeth Borne e Gabriel Attal. Todos escolhidos na maioria parlamentar de que Macron dispunha com o partido presidencial. Em França, o regime é presidencial, o presidente preside aos conselhos de ministros, os escolhidos (quando a maioria é, como quase sempre acontece, presidencial) têm o encargo de colaborar, sintonizados, com o presidente e executar o roteiro dele.
Neste verão a realidade política francesa mudou. Primeiro, em 9 de junho, com as eleições europeias: perante o triunfo do Rassemblement, o partido de extrema-direita liderado por Le Pen e Bardella, logo na noite das eleições Macron ousou o risco político de convocar eleições legislativas antecipadas. Colocou a França política ainda mais na corda-bamba.
É facto que ele esperava, com a dramatização da ameaça de governo ultra à direita (Marine Le Pen encabeça todas as sondagens), conseguir o sobressalto que lhe permitisse recuperar força eleitoral. Falhou. Na primeira volta das legislativas, em 30 de junho, não só não recuperou como perdeu ainda mais e a extrema-direita ficou com hipóteses de conseguir a maioria absoluta.
Perante esse cenário de governo ultra, a França voltou à mobilização republicana (união de todos os partidos contra a extrema-direita) que já antes, em eleições destes últimos 22 anos, tinha barrado os Le Pen, pai e filha, da possibilidade de chegada ao poder.
Agora, as esquerdas, apesar de muito divergentes, uniram-se para esse objetivo essencial numa frente (NFP) de conveniência eleitoral.
Na sequência dos resultados da primeira das duas voltas eleitorais, esta aliança NFP juntou-se ao centro-direita macronista (Ensemble) e até com candidatos da direita republicana (LR) com a aspiração de uma vez mais barrarem Le Pen. Tudo passou por acordos de desistência para que o candidato melhor colocado para bater a candidatura ultra pudesse recolher o máximo de votos de todos os eleitores que recusam Le Pen.
O sobressalto republicano, uma vez mais, funcionou. Na finalíssima eleitoral, em 7 de julho, o Rassemblement de Le Pen e Bardella ficou no terceiro lugar que nenhuma sondagem previra, com 143 dos 577 deputados, e surgiu a surpresa de a aliança NFP das esquerdas alcançar o primeiro lugar em eleitos, com 182 deputados, enquanto o Ensemble macronista elegia 168 e a direita moderada LR conseguia 46 deputados.
O sistema de desistências levou a que candidatos da esquerda mais à esquerda se retirassem da eleição para favorecer um candidato macronista. Foi assim que, por exemplo, o ministro cessante do Interior, Gérald Darmanin, uma personagem da ala mais à direita no partido presidencial garantiu a eleição beneficiando da desistência de um candidato das esquerdas. O recíproco também aconteceu com candidatos de centro-direita a desistirem a favor da candidatura das esquerdas, para derrotar o Rassemblement de Le Pen e Bardella.
Quase toda a gente ficou surpreendida por a dinâmica deste movimento levar a aliança NFP das esquerdas a grupo com mais deputados.
Macron também terá sido apanhado pela surpresa e, apesar de há dois meses ter patrocinado a mobilização republicana envolvendo o NFP, agora recusa nomear para a chefia do governo alguém proposto pelo maior partido que integra a coligação das esquerdas ganhadoras – que é o dos insubmissos da LFI, do controverso Mélenchon.
Macron passa por cima dos resultados eleitorais e recusa ter no governo gente da LFI de Mélenchon, tal como recusa o Rassemblement de Le Pen.
François Hollande, o socialista muito social-democrata, antecessor de Macron na presidência francesa, acusa o atual presidente de estar a cometer uma “falha institucional” ao recusar nomear para a chefia do governo a pessoa indicada pelo partido com mais deputados.
Macron sustenta essa recusa com o argumento de que a esquerda NFP não vai conseguir formar maioria para governar. Tudo aponta, de facto, nesse sentido, e isso porque o NFP e os macronistas (juntos fariam maioria), apesar de terem sido cúmplices com êxito na segunda volta das eleições (o sistema de desistências funcionou para derrotar Le Pen), agora recusam negociar qualquer entendimento.
As esquerdas argumentam que como ganharam o programa eleitoral tem de ser, sem cortes, o programa de governo.
Os macronistas porque recusam sentar-se com os insubmissos de Mélenchon.
O presidente Macron, que faz tudo para continuar com todo o poder político, começou por ganhar tempo. Serviu-se da anestesia do deslumbramento geral francês com os Jogos Olímpicos para deixar correr grande parte do mês de agosto sem que se falasse de política e da crise. Mas com um objetivo em fundo: abrir uma cisão na aliança NFP e conseguir que socialistas e verdes se juntem ao Ensemble macronista e à histórica direita republicana (LR) para formar um governo ao centro - esse cenário teria maioria absoluta.
Na prática, o que Macron está a querer é dar vida a uma coligação de perdedores nesta última eleição (o partido macronista e o republicano) com recurso ao rompimento da aliança NFP das esquerdas, de modo a ter maioria com socialistas e eventualmente os verdes.
A líder dos verdes já garantiu que o partido está totalmente envolvido com a aliança das esquerdas, não descola.
O líder dos socialistas repete a declaração de coesão no grupo NFP.
É assim que a França política, quase dois meses depois das eleições, segue bloqueada.
Porque os partidos recusam negociar e porque o presidente Macron recusa nomear para primeira-ministra a proposta pelo grupo com mais deputados.
Macron continua a manobrar. O macronismo tem sondado autarcas socialistas mais desalinhados da direção partidária. É a procura de um nome que possa levar a bancada socialista a aceitá-lo por ser um dos seus. Não vai ser fácil.
Em exploração de outra alternativa, Macron está a consultar figuras reconhecidas mas sem filiação partidária. É o caso de um antigo presidente do Tribunal de Contas e do presidente do grupo Renault. Macron explora a possibilidade de conseguir um Mario Draghi francês, inspirado no bom exemplo que teve durante dois anos a governação Draghi em Itália.
A esquerda NFP opõe-se ativamente a qualquer solução que não seja um governo NFP. Já está convocada uma “grande manifestação das esquerdas que ganharam as eleições” para sábado, 7 de setembro. É o anúncio de uma espécie de terceira volta das eleições, agora na rua.
A França está em risco de entrar em fase de alta tensão política e social. Está na memória recente o modo como a França ficou bloqueada pelo protesto dos “gilets jaunes” [https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/gilets-jaunes-a-inquietante-rutura-entre-povo-e-representantes]. Agora, os coletes amarelos desfraldam as bandeiras vermelhas das esquerdas que se queixam de golpe de Estado desencadeado por Macron.
Aviva-se em França a discussão sobre a necessidade de mudar o sistema político presidencialista que funciona desde o tempo de Charles de Gaulle. Crescem as vozes que reclamam o sistema proporcional para a eleição dos deputados. É o clamor, por exemplo, de Marine Le Pen que, num sistema eleitoral como o português, estaria agora com a maioria dos deputados.
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