O fiscal da imigração pegou meu passaporte na chegada a Lisboa, avistou várias páginas, não perguntou nada, carimbou e o estendeu em minha direção a dizer: “Portugal não é mais novidade para si”. Isso aconteceu há mais de 20 anos, quando tive a grata experiência de viver em Portugal, não como um imigrante que vai tentar a vida em outro país, mas como um executivo expatriado por uma das maiores empresas da minha área.

Condição confortável que me permitiu colocar tudo do país em perspetiva: do estilo de vida ao comportamento, da péssima relação de alguns de seus cidadãos com o próprio país ao orgulho de muitos pela pátria, das parvoíces e chatices aos encantos e genialidades. No começo estranhava quando ouvia alguns portugueses citar a Europa como um continente onde não estávamos, depois percebi que se tratava de um trauma de inferioridade que pode se transformar em raiva.

A jabuticaba é o fruto de uma árvore nativa da Mata Atlântica brasileira. É um produto tão brasileiro quanto é português, o pastel de nata. Ambos podem ser usados para representar, de maneira alegórica, a identidade de cada um dos dois países, num espetro cheio de nuances em comum que não se desconectaram com a declaração da Independência. Nesse leque de congruências, a cómoda cegueira histórica tem papel central para sustentar uma narrativa falsa em ambos os lados do Atlântico, e manter esses laços com a montra de colonizador e colonizado em amor eterno. Que lindo. Mas que mentira.

No contexto da mentira que repetida várias vezes vira verdade, enaltecer os desbravamentos gerados pelo pioneirismo português na expansão marítima a dizer tratar-se de uma ação pacífica com ampliação da fé cristã, serviu para que o povo olhasse o país com lentes de heroísmo e altruísmo. O português mediano enxerga Portugal heroico e desbravador, sem se dar conta de que o povo não enriqueceu com isso, só a elite e uma coroa perdulária que só fazia gastar suas mesadas. O país, de fato, se arrastou pobre, sem rodovias – só há 30 anos, em 1991 a A1, que liga Lisboa ao Porto, foi inaugurada. Como dizem os divertidos memes brasileiros: Devolvam o meu ouro!

A história da colonização que ninguém lembra é composta de uma guerra contínua para ocupar o território e dominar seus povos, não com espelhinhos, mas com espada. Quando os índios chegaram à exaustão pelos trabalhos forçados e se rebelaram, os colonizadores começaram a trazer negros escravizados da África, com a desculpa de que os índios recusavam o trabalho, porque eram preguiçosos. Era mentira. Os índios foram mortos e explorados pelo trabalho escravo até escassear essa mão-de-obra. Isso é um fato incontestável e essa escravatura era sustentada por uma base jurídica estabelecida pela monarquia que legitimava esse processo.

Monarquia da qual D. Pedro I (Pedro IV, em Portugal), com seu coração ambulante, viria a ser o representante. Além disso, havia a participação e a bênção da santa igreja católica, para quem aqueles que recusaram a fé mereciam ser “guerreados e escravizados” para terem “salvas as suas almas”. Entretanto, quem resistisse deveria ser morto. Ouvi um amém, igreja?

Grosso modo essa é a história, mal resumida, mas é necessário recordar alguns pontos, para minorar meu espanto quando soube que estavam a trazer ao Brasil, a pedido do governo Jair Bolsonaro, o coração de D. Pedro I para as cerimónias de comemoração de 200 anos da Independência, dos 300 de domínio – que terão lugar a menos de um mês das eleições presidenciais. Para completar esse combo de ações que exemplificam o significado da expressão “dissonância cognitiva”, comemorações pela “Independência do Brasil” ocorrerão em sítios como Lisboa, Porto, Cascais e Coimbra, entre outros. Depois dessa, se me disserem que a equipa do Porto vai comemorar o título do último nacional no estádio de Alvalade, vou achar natural.

Entretanto, se o propósito for a desconstrução do pensamento dominador que inibe a diversidade e não aceita o outro como ele é, porque não representa as expectativas, a culminar na xenofobia existente hoje, então ok. Porque, se num ambiente académico, como na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, alunos promoveram uma manifestação xenofóbica a oferecer pedras grátis para serem atiradas aos “brazucas”, imagine o português (daqueles que pouco leram) como pensa, tendo sido submetido desde sempre a uma lavagem cerebral de conquistas e dominação a subjugar as pessoas que têm origem nas ex-colónias.

D. João VI, após arrumar confusão com Napoleão e fugir para o Brasil, fez um trabalho e tanto na construção da Nação. De seguida, anos mais tarde, seria a vez de D. Pedro I exercer um papel importante na Independência e no nascimento de um Brasil unido e grandioso, e merece ser recordado ao se falar em Independência do Brasil. Mas uma figura da nobreza é deixada de lado nessa história, provavelmente por ser mulher e teve um papel decisivo.

Trata-se da Imperatriz Maria Leopoldina. Ela estava à frente do governo como regente, quando convocou o Conselho de Estado no dia 2 de setembro de 1822 e sancionou a deliberação do grupo: proclamar a independência do Brasil. Enviou emissários com a deliberação a D. Pedro I para que ele assinasse e uma carta que dizia: “Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças, se partirmos agora para Lisboa. O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece.” Ela atuou como autêntica gestora de crise.

Ele assinou e proclamou a independência. Que mulher! Há no Brasil de hoje uma lei que de certeza D. Pedro I não promulgaria. Chama-se Lei Maria da Penha, que diz em seu artigo 5º o seguinte: “...configura violência ... contra a mulher qualquer ação ... que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico...”. A pena? Cadeia sem direito à liberdade sob fiança.

O dono do coração viajante, quatro anos após essa fantástica gestão de crise, deitou porrada em sua esposa que a deixou cheia de hematomas. Leopoldina, que teve papel fundamental na Independência do Brasil, estava grávida e, um mês depois, sofreria um aborto que culminaria, dias depois, em sua morte aos 29 anos de idade. Que coração do bem esse que está de férias aqui no Brasil! Ainda bem que toda essa bondade está aprisionada para sempre numa caixa, espero que cheia de cachaça.

Coração bom mesmo D. Pedro I teve com o pai, o rei D. João VI, que havia retornado a Portugal com sua corte a deixar apenas vento nos cofres do Brasil. Ele levou todo dinheiro da coroa. Num acordo de pai para filho, D. Pedro I concordou que o Brasil teria de pagar dois milhões de libras esterlinas para que Portugal aceitasse a independência. Hoje esse valor não representa muito, mas à época foi um absurdo que deu início à dívida externa brasileira que duraria dois séculos. Em resumo, o Brasil se libertava de seu “colonizador” - ou invasor - e pagava uma multa por isso. Faltou pedir desculpas. Hoje esse ato seria chamado de sequestro e resgate. Ou até mesmo corrupção, em outros cantos.

Já agora, considero um sacrilégio com o nobre defunto, que o seu coração esteja a transitar por aí como se fosse um estandarte, numa ação tão bizarra quanto de profundo mau gosto. A sorte do dia é que Luís XVI (o francês decapitado) não foi o signatário da Independência do Brasil. Ufa!