Muitos dizem por aí que a língua portuguesa sofre das maiores patifarias por essa Internet fora, como se o espaço online fosse especialmente propenso aos erros e à falta de conhecimento da língua. Depois, muitos desses tais continuam por aí fora, embalados pela retórica catastrofista, e afirmam que «isto está cada vez pior». Por fim, as ideias misturam-se, o discurso enovela-se e já estamos a afirmar que a culpa é mesmo da Internet: fala-se mal, escreve-se cada vez pior — e tudo isto é por causa deste mundo cibernético.
Porquê? Porque é assim que nos parece a uma primeira vista muito superficial, rapidamente transformada em certeza absoluta e muito lúcida, constantemente alimentada pelo nosso cérebro sempre propenso a reparar mais naquilo que confirma as suas crenças (a famosa tendência de confirmação).
Agora, recue-se um pouco e olhe-se para tudo com alguma serenidade. Será que a Internet dá cabo da língua? Talvez — digo eu em alternativa — se dê o caso de termos acesso aos escritos de muito mais pessoas, que escrevem de forma despreocupada pelos facebooks deste mundo, e que nem todos têm o mesmo talento ou a mesma experiência de escrita — ou, diga-se, o mesmo interesse em escrever bem.
Pergunto ainda: não será que isto, afinal, sempre foi assim — ou talvez tenha sido até muito pior? (Sacrilégio!)
Ora, reparem nas ementas dos restaurantes, nos sinais escritos às portas das mercearias, nos avisos pregados em certos terrenos onde sempre foi proibido «votar lixo». Tudo isto existe há muito tempo — pelo menos desde que grande parte da população aprendia a escrever mal e porcamente(*) e pouco usava tal saber para lá desses avisos que tantos de nós gostamos de achincalhar, porque sabe bem sentirmo-nos superiores a esses pobres diabos, não é verdade?
Nas últimas décadas, há cada vez mais gente a escrever muito e, se tivesse de apostar numa hipótese, diria que não se escreve pior, se olharmos para toda a população e não só para o rarefeito mundo dos cronistas e escrevinhadores de certas ruas de certas cidades.
Também há isto: todos contactamos com muito mais textos e provavelmente 90 % desses textos não prestam (é a chamada Lei de Sturgeon: 90 % de tudo o que se faz não é grande coisa...). Daí a ficarmos convencidos que «antigamente é que era bom» vai um pequeno passo, porque do passado lembramo-nos dos 10 % muito bons e, no presente, estamos inundados pelos 90 % muito maus.
Ora, vai-se a ver e 90 % de tudo o que se escreve, escreveu ou escreverá é mau — na Internet e nos papéis dos séculos anteriores. Ora, tal como no passado, também por essa internet fora haverá os tais 10 % de boa escrita, que é preciso ter alguma paciência para encontrar. Como em tudo.
(*) A expressão «mal e parcamente» parece surgir apenas em textos que a propõem como alternativa supostamente correcta de «mal e porcamente». A expressão popular realmente usada na nossa língua é «mal e porcamente».
(Baseado em capítulo do livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.)
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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